Vozes sobre o povo e a democracia na ‘Enciclopédia’ de Diderot e D’Alembert

Da Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios. Paris, 1783 d.C.

Tradução: Maria das Graças de Souza. Editora Unesp. Volume 4: Política.

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Povo (Governo político)

Jaucourt [I2, 475]

Povo, nome coletivo difícil de se definir, pois há diferentes ideias de povo nos diversos lugares, nos diversos tempos e segundo a natureza dos governos.

Os gregos e os romanos, que eram conhecedores dos homens, faziam grande caso do povo. Entre eles, o povo votava nas eleições dos primeiros magistrados e generais, nos decretos de proscrição e triunfos, nos regulamentos de impostos, nas decisões da paz ou da guerra, numa palavra, em todas as questões que diziam respeito aos grandes interesses da pátria. Esse mesmo povo entrava aos milhares nos vastos teatros de Roma e Atenas, dos quais os nossos são apenas fracas imagens, e acreditava-se que ele era capaz de aplaudir ou vaiar Sófocles, Eurípides, Plauto e Terêncio. Se lançarmos os olhos sobre alguns governos modernos, veremos que, na Inglaterra, o povo elege os representantes da Câmara dos Comuns, e que, na Suécia, a ordem dos camponeses é considerada nas assembleias nacionais.

Outrora, na França, o povo era tido como a parte mais útil, mais preciosa e, consequentemente, a mais respeitável da nação. Acreditava-se, então, que o povo podia ocupar um lugar nos Estados Gerais, e os parlamentos do reino transformavam numa só a razão do povo e sua própria razão. As ideias mudaram, e a classe dos homens que compõem o povo diminui cada vez mais. Antigamente, o povo era o estado geral da nação, oposto simplesmente aos nobres e aos grandes. Dele faziam parte os agricultores, os operários, os artesãos, os negociantes, os financistas, os literatos e os homens das leis. Mas um homem de muito espírito, que publicou há mais ou menos vinte anos uma dissertação sobre a natureza do povo, julga que esse corpo da nação se limita atualmente aos operários e aos camponeses. Relatemos suas próprias reflexões sobre esse assunto, tanto mais que elas são cheias de imagens e de quadros que servem para provar seu sistema.

Os homens das leis, diz ele, se retiraram da classe do povo ao se eno¬ brecerem sem o auxílio da espada. Os literatos, assim como Horácio, consideraram o povo profano. Não seria honesto chamar de povo aqueles que cultivam as belas-artes nem mesmo deixar na classe do povo essa espécie de artesãos, ou melhor, de artistas maneirosos que trabalham com produtos de luxo. Mãos que pintam divinamente um veículo, que montam perfeitamente um diamante, que ajustam uma vestimenta de modo superior, tais mãos não se parecem com as mãos do povo. Evitemos, também, misturar os negociantes com o povo, já que se pode adquirir nobreza com o comércio. Os financistas se elevaram tanto que se encontram lado a lado com os grandes do reino. Eles se infiltraram, se confundiram com eles, aliados aos nobres, sustentados por eles, aos quais dão pensões e frequentemente tiram da miséria. Mas, para que se possa ainda julgar melhor o quanto seria absurdo confundi-los com o povo, bastará considerar por um momento a vida dos homens dessa revoada e a vida do povo. Os financistas moram sob ricos tetos. Usam ouro e seda para suas roupas. Exalam perfumes, procuram o apetite na arte dos cozinheiros. E quando o repouso sucede à sua ociosidade, adormecem indolentemente sobre plumas. Nada escapa a esses homens ricos e curiosos. Nem as flores da Itália, nem os papagaios do Brasil, nem as telas pintadas de Masulipatam, nem os macacos da China, a porcelana de Saxe, Sève e Japão. Vede seus palácios na cidade e no campo, suas roupas de gosto, seus elegantes móveis, suas rápidas carruagens, isto tudo cheira a povo? Esse homem que soube surpreender a fortuna pela porta das finanças come nobremente numa refeição o alimento de cem famílias do povo, varia sem cessar seus prazeres, reforma um verniz, aperfeiçoa um lustre com a ajuda de um homem da profissão, organiza uma festa e dá novos nomes às suas carruagens. Seu filho se entrega a um cocheiro fogoso para assustar os passantes. Amanhã, ele mesmo se faz de cocheiro para fazê-los rir.

Na massa do povo, portanto, restam apenas os operários e os camponeses. Contemplo com interesse sua maneira de viver. Acho que esse operário mora ou sob a palha ou em algum reduto que a cidade lhe entrega porque tem necessidade de sua força. Levanta-se com o sol e, sem olhar para a fortuna que ri acima dele, pega sua roupa de todas as estações, escava nossas minas e pedreiras, seca nossos pântanos, limpa nossas ruas, constrói nossas casas, fabrica nossos móveis. A fome chega, qualquer coisa lhe serve. O dia acaba, ele se deita duramente nos braços da fadiga.

O camponês, outro homem do povo, antes da aurora já está inteiramente ocupado a semear nossas terras, cultivar nossos campos, regar nossos jardins. Tolera o calor, o frio, a altivez dos grandes, a indolência dos ricos, a extorsão dos arrecadadores de impostos, a pilhagem dos comissários, a devastação causada pelos animais selvagens, os quais não ousa expulsar das plantações em respeito aos prazeres dos poderosos. É sóbrio, justo, fiel, religioso, sem considerar o que ganhará com isso. Lucas se casa com Colete porque a ama. Ela dá seu leite aos filhos sem conhecer o preço do frescor e do repouso. As crianças crescem, e Lucas, abrindo a terra diante delas, lhes ensina a cultivá-la. Ele morre e lhes deixa seu campo para ser repartido igualmente entre os filhos. Se Lucas não fosse um homem do povo, o campo ficaria inteiro para o mais velho. Tal é o retrato dos homens que compõem o que chamamos povo e que formam sempre a parte mais numerosa e mais necessária da nação.

Quem acreditaria que, em nossos dias, alguém ousou afirmar essa máxima de uma política infame, segundo a qual esses homens não podem viver comodamente se quisermos que sejam trabalhadores e obedientes? Se esses pretensos políticos, esses belos gênios tão cheios do sentimento de humanidade, viajassem um pouco, veriam que a indústria não é em nenhum lugar tão ativa quanto nos países nos quais o baixo povo vive bem, e que em nenhum outro lugar cada gênero de trabalho atinge perfeição maior. Não é que homens entorpecidos pelo peso da miséria habitual não possam afastar-se por algum tempo do trabalho se todas as imposições cessarem imediatamente. Mas, além da diferença sensível entre a mudança do povo e o caráter excessivo dessa suposição, não se deveria atribuir ao bem-estar esse momento de preguiça, mas à sobrecarga que o precedeu. Esses mesmos homens, voltando a si após o entusiasmo de uma alegria inesperada, logo sentiriam a necessidade de trabalhar para subsistir, e o desejo natural de uma melhor subsistência os tornaria mais ativos. Ao contrário, nunca se viu e nunca se verá homens empregar toda a sua indústria e toda sua força se estiverem acostumados a ver as taxas engolirem o produto de novos esforços que poderiam fazer; eles se limitariam à manutenção de uma vida sempre abandonada sem nenhuma espécie de queixa.

Em relação à obediência, é uma injustiça caluniar assim uma multidão infinita de inocentes. Pois os reis não têm súditos mais fiéis e, se ouso dizê-lo, melhores amigos. Talvez haja mais amor público nessa ordem do que nas outras. Não porque ela é pobre, mas porque é muito bom que a autoridade e a proteção do príncipe sejam as únicas garantias de sua segurança e bem-estar, malgrado sua ignorância. Enfim, porque, com o respeito natural dos pequenos pelos grandes, com esse apreço, particular à nossa nação, pela pessoa de seus reis, eles não têm outros bens a esperar. Em nenhuma história se encontra um único traço que prove que o bem-estar do povo pelo trabalho tenha prejudicado sua obediência.

Concluamos que Henrique IV tinha razão de desejar que seu povo tivesse bem-estar e de assegurar que ele trabalharia para propiciar a todo trabalhador os meios para ter boa comida em seu prato. Se se passar muito dinheiro para as mãos do povo, uma quantidade proporcional desse dinheiro que ninguém lamentará refluirá para o tesouro público. Mas arrancar pela força o dinheiro que ele ganhou por seu trabalho e sua indústria é privá-lo de sua saúde e de seus recursos.

(MGS)

 

Democracia (Direito político)

Jaucourt [4, 816]

A democracia é uma das formas simples de governo, na qual o povo, em corpo, detém a soberania. Toda república na qual a soberania reside nas mãos do povo é uma democracia. E se o poder soberano residir somente nas mãos de uma parte do povo, temos uma aristocracia. Ver Aristocracia.

Embora não pense que a democracia seja a forma mais cômoda e mais estável de governo; embora esteja persuadido de que ela não é vantajosa para os grandes Estados, creio, todavia, que ela é uma das formas mais antigas, entre as nações que adotaram como justa a máxima seguinte: “Que aquilo que interessa a todos os membros da sociedade seja administrado por todos em comum”. Falando de Atenas, sua pátria, Platão disse que a equidade natural que existe entre nós faz que procuremos em nosso governo uma igualdade que seja conforme à lei e que, ao mesmo tempo, nos submetamos àqueles dentre nós que têm mais capacidade e sabedoria.

Parece-me que não é sem razão que as democracias se vangloriam de serem elas que alimentam os grandes homens. Com efeito, como não há ninguém nos governos populares que não participe da administração do Estado, cada um segundo sua qualidade e seu mérito; como não há ninguém que não participe da felicidade ou da infelicidade dos acontecimentos, todos os particulares se dedicam e se interessam sem cessar pelo bem comum, pois não podem acontecer revoluções que não sejam úteis ou prejudiciais a todos. Além disso, as democracias elevam os espíritos porque mostram o caminho das honras e da glória mais aberto a todos os cidadãos, mais acessível e menos limitado do que sob o governo de poucas pessoas e sob o governo de um só, nos quais mil obstáculos impedem que isso aconteça. São essas felizes prerrogativas da democracia que formam os homens, as grandes ações, as virtudes heroicas. Para nos convencermos disto, basta lançar os olhos sobre as repúblicas de Atenas e de Roma, que, por sua constituição, se elevaram acima de todos os impérios do mundo. E, por onde quer que sigamos sua conduta e suas máximas, elas produzirão mais ou menos os mesmos efeitos.

Não é, pois, indiferente investigar as leis fundamentais que constituem as democracias, e o princípio que pode conservá-las e mantê-las. É o que me proponho a esboçar aqui.

Mas, antes de passar adiante, é necessário observar que, numa democracia, cada cidadão não tem o poder soberano, nem mesmo uma parte dele. Esse poder reside na assembleia do povo convocada segundo as leis. Assim, o povo, numa democracia, é, em certos aspectos, soberano, e em outros, súdito. É soberano pelos sufrágios, que são suas vontades, e súdito enquanto membro da assembleia revestida de poder soberano. Como, pois, a democracia só se forma propriamente quando cada cidadão remeteu a uma assembleia composta por todos o direito de regulamentar todos os negócios comuns, disto resultam diversas coisas absolutamente necessárias para a constituição desse gênero de governo.

1) É preciso que haja um certo lugar e um certo tempo regulamentados para deliberar em comum sobre os negócios públicos. Sem isto, os membros do conselho soberano poderiam nunca se reunir, e então não providencia¬ riam nada, ou reunir-se em tempos e lugares diversos, do que nasceriam facções que romperiam a ínidade essencial do Estado.

2) E preciso estabelecer como regra que a pluralidade dos sufrágios passará a ser considerada a vontade de todo o corpo. De outro modo, não se poderia terminar nenhum processo, porque é impossível que um grande número de pessoas tenha sempre a mesma opinião.

3) É essencial à constituição da democracia que haja magistrados que sejam encarregados de convocar a assembleia do povo nos casos extraordinários e de fazer que se executem os decretos da assembleia soberana. Como o conselho soberano não pode estar sempre reunido, é evidente que não poderia providenciar tudo por si mesmo. Pois, quanto à democracia pura, ou seja, aquela na qual o povo em si e por si executa sozinho todas as funções do governo, não conheço nenhuma assim no mundo, a não ser que seja num lugar pequeno como San Marino, na Itália, onde quinhentos camponeses governam uma rocha que ninguém deseja possuir.

4) É necessária à constituição democrática dividir o povo em certas clas¬ ses, [817] e sempre foi disto que dependeram a duração e a prosperidade da democracia. Sólon dividiu o povo de Atenas em quatro classes. Conduzido pelo espírito da democracia, não estabeleceu essas classes para determinar quem devia eleger, mas quem poderia ser eleito. Deixando a cada cidadão o direito de sufrágio, quis que cada uma dessas quatro classes pudesse eleger juízes, mas que somente as três primeiras classes, compostas de cidadãos abastados, pudessem eleger magistrados.

As leis que estabelecem o direito de sufrágio são, pois, fundamentais nesse governo. Com efeito, é tão importante regulamentar como, por quem, a quem, sobre o que os sufrágios devem ser dados, quanto é importante numa monarquia saber quem é o monarca e de que maneira ele deve governar. Ao mesmo tempo, é essencial fixar a idade, a qualidade e o número de cidadãos que têm o direito de sufrágio. Sem isto, correr-se-ia o risco de ficar sem saber se foi o povo ou apenas uma parte dele que se manifestou.

Uma outra lei fundamental da democracia diz respeito às regras do sufrágio. Ele pode ser dado por sorte ou escolha, ou por ambos. A sorte deixa a cada cidadão a esperança razoável de servir a sua pátria. Mas, como esse sistema é defeituoso em si mesmo, os grandes legisladores sempre se dedicaram a corrigi-lo. Nesse sentido, Sólon determinou que só poderiam ser eleitos aqueles que se apresentassem, que aquele que tivesse sido eleito seria examinado por juízes e que qualquer um poderia acusá-lo sem indignidade. Isto era válido tanto para a sorte quanto para a escolha. Quando terminava o tempo da magistratura, era preciso ser submetido a novo julgamento, sobre a maneira como o magistrado tinha se comportado em sua função. As pessoas sem capacidade, observa aqui Montesquieu, deveriam sentir repugnância em dar seu nome para serem tirados na sorte.

Uma terceira lei fundamental da democracia fixa como deve ocorrer o sufrágio. A esse respeito, levanta-se uma grande questão, quero dizer, a de saber se os sufrágios devem ser públicos ou secretos. Pois tanto um quanto outro método é praticado de modo diverso nas diferentes democracias. Parece que eles deveriam ser sempre secretos o bastante para garantir a liberdade e públicos o suficiente para torná-los autênticos, para que o povo miúdo fosse esclarecido sobre seus principais e contido pela gravidade de certos personagens. Em Genebra, na eleição dos primeiros magistrados, os cidadãos votam publicamente e depois escrevem seu voto em segredo, de sorte que, assim, a ordem é mantida juntamente com a liberdade.

O povo que possui poder soberano deve fazer por si mesmo tudo o que puder fazer bem, e o que não puder fazer bem deve fazê-lo através de seus ministros. Ora, esses ministros só são seus ministros se forem nomeados. Portanto, uma quarta lei fundamental desse governo é que o povo nomeie seus ministros, ou seja, seus magistrados. Assim como os monarcas, e mais que eles, o povo tem necessidade de ser guiado por um conselho ou senado. Mas, para que tenha confiança nos membros desse conselho, é preciso que os eleja, seja por escolha, como em Atenas, seja através de algum magistrado que estabeleceu para elegê-los, assim como se praticava em Roma em algumas ocasiões. O povo é muito capaz para escolher aqueles a quem deve confiar parte de sua autoridade. Se se pudesse duvidar dessa capacidade que ele tem para discernir o mérito, bastaria lembrar a sequência contínua de escolhas feitas pelos gregos e romanos, que, sem dúvida, não poderiam ser atribuídas ao acaso. Todavia, como a maioria dos cidadãos que têm capacidade para eleger não a tem suficiente para ser eleita, do mesmo modo o povo, que tem capacidade para exigir que se prestem contas da gestão dos outros, não é apto a gerir por si mesmo nem a conduzir os negócios de modo que estes caminhem num certo movimento que não seja rápido demais nem lento demais. Algumas vezes, com 100 mil braços, ele destrói tudo; outras vezes, com 100 mil pés, anda como os insetos.

Enfim, é uma lei fundamental da democracia que o povo seja legislador. Há, entretanto, mil ocasiões em que é necessário que o senado possa estatuir. Frequentemente, é mesmo oportuno experimentar uma lei antes de estabelecê-la. A constituição de Atenas e a de Roma eram muito sábias. Os decretos do senado tinham força de lei durante um ano. Só se tornavam perpétuos pela vontade do povo. Mas, embora toda democracia necessariamente deva ter leis escritas, ordenações e regulamentos estáveis, nada impede que o povo, que os fez, os revogue ou os mude todas as vezes que considerar necessário, a menos que tenha jurado observá-los perpetuamente. E, mesmo nesse caso, o juramento só obriga aqueles que pessoalmente o fizeram.

Tais são as principais leis fundamentais da democracia. Falemos agora da força, do princípio apropriado para a conservação desse gênero de governo. Esse princípio não pode ser outro a não ser a virtude, e é só por ela que as democracias se mantêm. A virtude nas democracias é o amor às leis e à pátria: esse amor, exigindo uma renúncia de si, uma preferência contínua pelo interesse público sobre o próprio interesse, dá oíigem a todas as virtudes particulares, que não são nada mais do que essa preferência. Esse amor conduz aos bons costumes, e os bons costumes levam ao amor pela pátria. Quanto menos podemos satisfazer nossas paixões particulares, mais nos entregamos às paixões gerais.

A virtude numa democracia encerra ainda o amor pela igualdade e pela frugalidade. Como cada um nesse governo usufrui da mesma felicidade e das mesmas vantagens, deve-se experimentar nele os mesmos prazeres e as mesmas esperanças, coisas que só podem ser esperadas da frugalidade geral. O amor pela igualdade limita a ambição à felicidade de prestar maio¬ res serviços à pátria que os outros cidadãos. Eles não podem todos prestar serviços iguais, mas devem todos igualmente prestar serviço. Assim, na democracia, as distinções nascem do princípio da igualdade, mesmo quando esta parece ter desaparecido por causa de serviços bem-sucedidos ou talentos superiores. O amor pela frugalidade limita o desejo de possuir ao que é necessário para a família e ao que é supérfluo para a pátria.

A própria igualdade e frugalidade, quando se vive num estado onde as leis estabelecem tanto uma quanto a outra, excitam extremamente o amor por ambas. Todavia, há casos em que a igualdade entre os cidadãos pode ser eliminada numa democracia, para utilidade da própria democracia.

Os antigos gregos, persuadidos da necessidade dos povos que viviam sob seu governo de serem educados na prática das virtudes necessárias à manutenção das democracias, estabeleceram instituições singulares para inspirar essas virtudes. Quando lemos na vida de Licurgo as leis que ele deu aos lacedemônios, pensamos estar lendo a história dos sevarambos. As leis de Creta eram o original das leis da Lacedemônia, e as de Platão eram sua correção.

A educação particular deve também ser extremamente atenta em inspirar as virtudes das quais falamos. Mas há um meio seguro para adquiri-las: que os pais as tenham eles mesmos.  Somos senhores de dar aos nossos filhos nossos conhecimentos. Nós o somos mais ainda de lhes dar nossas paixões. Se isto não acontece, é porque aquilo que foi feito em casa foi destruído lá fora. Não é que o povo nascente se degenere. Ele só se perde quando os homens feitos já estão corrompidos.

O princípio da democracia se corrompe quando o amor pelas leis e pela pátria começa a degenerar, quando a educação particular e a geral são negligenciadas, quando o trabalho e os deveres passam a ser considerados incômodos. Então, a ambição entra no coração dos que podem recebê-la, e a avareza entra em todos. Essas verdades são confirmadas pela história. Atenas tinha em seu seio as mesmas forças tanto enquanto dominou com tanta glória como enquanto serviu com tanta vergonha. Tinha 20 mil cidadãos quando defendeu os gregos contra os persas, quando disputou o império com a Lacedemônia e quando atacou a Sicília. Tinha os mesmos 20 mil quando Demétrio de Falero os enumerou, como num mercado em que se compram escravos. Quando Filipe ousou dominar na Grécia, os atenienses o temeram não como o inimigo da liberdade, mas como o inimigo dos prazeres. Tinham feito uma lei que punia com a morte aquele que propusesse converter para uso da guerra o dinheiro destinado aos teatros.

Enfim, o princípio da democracia se corrompe não apenas quando se perde o espírito de igualdade, mas também quando este é levado ao extremo, quando cada um é levado a querer ser igual àquele que escolheu para comandá-lo. A partir daí, o povo, não podendo suportar o poder que confiou a outro, quer fazer tudo por si mesmo, deliberar no lugar do Senado, executar no lugar dos magistrados, despojar os juízes. Esse abuso da democracia é com razão chamado de oclocracia. Vide essa palavra. Nesse abuso, não há mais amor pela ordem nem pelos costumes; numa palavra, não há mais virtude. Surgem então os corruptores, os pequenos tiranos que têm todos os vícios de um só. Logo um único tirano eleva-se acima dos outros, e o povo perde tudo, até as vantagens que acreditava obter da corrupção.

Seria uma coisa bem boa se o governo popular pudesse conservar o amor pela virtude, a execução das leis, os costumes e a frugalidade. Se pudesse evitar os dois excessos, entendendo por excessos o espírito de desigualdade que leva à aristocracia e o espírito de igualdade extrema que leva ao despo¬ tismo de um só. Mas é raro que a democracia consiga preservar-se desses dois obstáculos durante muito tempo. É o destino desse governo admirável em seu princípio de quase infalivelmente tornar-se a presa da ambição de alguns cidadãos, ou da ambição de estrangeiros, e de passar de uma liberdade preciosa para a maior servidão.

Eis aqui quase um resumo do livro O espírito dafleis sobre esse assunto. E em qualquer outra obra que não esta, basta remeter àquela. Aos leitores que quiserem aprofundar-se mais no assunto, sugiro que consultem o Cavaleiro Temple, em suas Obras póstumas, o Tratado sobre o governo civil, de Locke, e o Discurso sobre o governo, de Sydney.

(MGS)