Uma carta sobre a tolerância – Estado e Igreja

Extratos da carta de John Locke a Phillipp van Limborch. Londres, 1689 d.C.

 

1. Introdução à verdadeira religião

Honrado senhor,

Uma vez que lhe aprouve inquirir quais são meus pensamentos sobre a mútua tolerância dos Cristãos em suas diferentes profissões de fé, sinto-me na obrigação de responder-lhe livremente que eu estimo ser a tolerância a característica principal da verdadeira Igreja. Pois seja lá do que alguns se jactem a respeito da antiguidade dos lugares e nomes, ou da pompa de seu culto exterior; outros, da reforma de sua disciplina; toda ortodoxia da sua fé – pois todo mundo é ortodoxo para si mesmo – estas coisas, e todas as outras dessa natureza, são muito mais marcas de homens lutando por poder e império uns sobre os outros do que da Igreja de Cristo. Que a reivindicação de qualquer um sobre todas essas coisas seja mais verdadeira do que nunca, ainda assim se ele estiver destituído de caridade, mansidão e boa vontade em geral para com a humanidade, mesmo para aqueles que não são cristãos, ele está certamente longe de ser ele mesmo um verdadeiro cristão. “Os reis dos gentios exercitam a liderança sobre eles,” disse nosso Salvador aos seus discípulos, “mas convosco não será assim.” O negócio da verdadeira religião é bem outro. Ela não é instituída a fim se de erigir uma pompa externa, nem para a obtenção de domínio eclesiástico, nem para o exercício da força coercitiva, mas para a regulamentação da vida dos homens, de acordo com as regras da virtude e da piedade. Quem quiser alistar-se a si mesmo sob a bandeira de Cristo, deve, em primeiro lugar e acima de todas as coisas, mover guerra contra suas próprias luxúrias e vícios. É vão para qualquer homem usurpar o nome de “cristão”, sem santidade de vida, pureza de maneiras, benignidade e mansidão do espírito. “Que todo aquele nomeado em nome de Cristo aparte-se da iniquidade”. “Tu, quando te converteres, fortalece teus irmãos,” disse nosso Senhor a Pedro. Seria deveras muito difícil para alguém que parece descuidado quanto à sua própria salvação me persuadir de que está extremamente preocupado com a minha. Pois é impossível se aplicar sincera e honestamente a fazer com que outros sejam cristãos, quando não se acolheu realmente a religião cristã em seu próprio coração. Se podemos crer no Evangelho e nos apóstolos, nenhum homem pode ser um Cristão sem caridade e sem a fé que trabalha, não pela força, mas pelo amor.

2. Sobre a força e a persuasão: fronteiras entre o Estado e a Igreja

A tolerância daqueles que diferem de outros em questões de religião é tão concorde ao Evangelho de Jesus Cristo, e à genuína razão da humanidade, que parece monstruoso que um homem seja tão cego a ponto de não perceber a necessidade e a vantagem disso numa luz tão clara. Não pretendo aqui por à prova o orgulho e a ambição de alguns, a paixão e o zelo pouco caridoso de outros. Estas são faltas das quais os afazeres humanos podem talvez a duras penas se ver perfeitamente livres; mas elas são de tal natureza que ninguém suportaria que lhes fossem imputadas, sem encobri-las com alguma cor especiosa, pretendendo assim a uma comenda, enquanto é levado por suas próprias e irregulares paixões. Contudo, que ninguém venha colorar seu espírito com a perseguição e a crueldade não cristã presumindo-se zeloso da prosperidade pública e da observação das leis; e que outros, sob a presunção religiosa, não busquem impunidade para a sua libertinagem e licenciosidade; numa palavra, que ninguém as imponha sobre si mesmo ou sobre outros, presumindo lealdade e obediência ao príncipe, ou ternura e sinceridade no culto de Deus; eu estimo como necessário acima de todas as coisas distinguir exatamente o negócio do governo civil daquele da religião e estabelecer os justos limites que recaem sobre um e outro. Caso isso não seja feito, não poderá haver um fim a essas controvérsias que sempre se levantarão entre aqueles que têm, ou ao menos que presumem ter, por um lado, uma preocupação pelo interesse da alma dos homens, e, do outro lado, um cuidado pela comunidade civil, a commonwealth.

A commonwealth me parece ser uma sociedade de homens constituídos somente para buscar, preservar, e avançar seus próprios interesses civis.

Interesses civis eu chamo vida, liberdade, saúde e indolência do corpo; e a posse de coisas exteriores, como dinheiro, terras, casas, móveis e coisas assim.

É dever do magistrado civil [o representante do poder público], pela execução imparcial das leis iguais, assegurar a todas as pessoas em geral e a cada um de seus súditos em particular a posse justa destas coisas pertencentes a essa vida. Se um sujeito qualquer pretende violar as leis da justiça e da equidade públicas, estabelecidas para a preservação destas coisas, tal pretensão deve ser ameaçada com o medo da punição, consistindo na privação ou diminuição de seus interesses civis, ou bens, que de outro modo ele poderia e deveria gozar. Mas dado que nenhum homem se submeteria voluntariamente a ser punido com a privação de qualquer parte de seus bens, e muito menos de sua liberdade ou vida, arma-se o magistrado com a força e o poder de todos os seus súditos, a fim de punir aqueles que violarem quaisquer direitos de algum outro homem.

Pois bem, que toda jurisdição de um magistrado alcança somente estas questões civis, e que toda lei, direito e domínio civis estão delimitados e confinados exclusivamente à promoção destas coisas; e que eles nem podem nem devem de nenhum modo ser estendidos à salvação das almas, as considerações a seguir me parecem demonstrar abundantemente.

Primeiro, porque o cuidado das almas não foi conferido ao magistrado civil, mais do que a qualquer outro homem. Não foi conferido a ele, quero dizer, por Deus; pois não parece que Deus tenha alguma vez conferido qualquer autoridade desse tipo a um homem sobre o outro de forma a coagir qualquer um à sua religião. Nem pode qualquer poder desse tipo ser investido ao magistrado pelo consentimento do povo, porque nenhum homem pode abandonar tanto o cuidado de sua própria salvação a ponto de cegamente deixar à escolha de qualquer outro, seja príncipe ou súdito, determinar a fé ou o culto aos quais ele deve se comprometer. Toda a vida e o poder da verdadeira religião consistem na persuasão interior e completa da mente; e a fé não é fé sem a crença. Qualquer que seja a profissão de fé que façamos, qualquer que seja o culto exterior ao qual nos conformamos, se não estamos plenamente convencidos em nossa própria mente de que a primeira é verdadeira e o segundo é agradável a Deus, tal profissão e tal culto são de fato grandes obstáculos à nossa salvação. Pois desta maneira, ao invés de expiarmos nossos pecados pelo exercício da religião, quero dizer, oferecendo a Deus Todo Poderoso um culto que julgamos agradável a Ele, acrescentamos ao número de nossos pecados também aquele da hipocrisia e do desrespeito à Sua Divina majestade.

Em segundo lugar, o cuidado das almas não pode pertencer ao magistrado civil, porque o seu poder consiste somente na força exterior; mas a verdadeira religião, a religião que salva, consiste na persuasão interior da mente, sem a qual nada pode ser aceitável a Deus. E tal é a natureza do entendimento, que ele não pode ser compelido à crença de qualquer coisa pela força exterior. Confisco de propriedade, encarceramento, tortura, nada dessa natureza pode ter qualquer eficácia no sentido de levar os homens a mudarem o juízo interior com o qual enquadram as coisas.

Haverá, com efeito, quem alegue que o magistrado pode usar de argumentos, e, através disso, conduzir o heterodoxo no caminho da verdade, buscando a sua salvação. Concedo; mas isto ele tem em comum com outros homens. Ao ensinar, instruir e reorientar a razão errônea, ele pode certamente fazer o que cabe a cada homem de bem fazer. A magistratura não o obriga negligenciar nem a humanidade nem o Cristianismo; mas uma coisa é persuadir, outra ordenar; uma coisa é pressionar com argumentos, outra com castigos. Esta última coisa o poder civil e só ele tem o direito de fazer; quanto à primeira, a boa vontade é autoridade suficiente. Todo homem tem a responsabilidade de admoestar, exortar, convencer outro homem do erro, e, arrazoando, conduzi-lo à verdade; mas legislar, ser obedecido e coagir com a espada, isso pertence a ninguém mais senão ao magistrado. E, nestas bases, eu afirmo que o poder do magistrado não se estende à determinação de quaisquer artigos de fé, ou formas de culto, pela força de suas leis. Pois as leis não têm qualquer força sem penalidades, e penalidades nesse caso são absolutamente impertinentes, porque elas não são adequadas para se convencer a mente. Nem a profissão de quaisquer artigos de fé, nem a conformidade a qualquer forma exterior de culto (como já foi dito), podem servir à salvação das almas, a menos que a verdade da primeira e a aceitabilidade da segunda ante Deus sejam coisas nas quais aqueles que as professam e praticam creem totalmente. Mas penalidades não podem de modo algum provocar uma tal crença. Somente a luz e a evidência podem operar uma mudança nas opiniões dos homens; a qual luz não pode de modo algum surgir de sofrimentos corporais ou de qualquer outra penalidade exterior.

Em terceiro lugar, o cuidado com a salvação das almas dos homens não pode pertencer ao magistrado, porque, ainda que o rigor das leis e a força das penalidades fossem capazes de convencer e mudar a mente dos homens, ainda assim isso não ajudaria em absoluto a salvação das suas almas. Pois não havendo senão uma verdade, um caminho para o céu, que esperança pode haver de que mais homens serão conduzidos a ele se não tiverem outra lei que a religião da corte, sendo postos sob a necessidade de abandonar a luz de sua própria razão e se opor aos ditames de suas próprias consciências, resignando-se cegamente a servir a vontade de seus governantes e a religião que nem a ignorância, nem a ambição, nem a superstição tiveram ocasião de estabelecer nos países onde eles nasceram? Na variedade e na contradição de opiniões em religião, onde os príncipes do mundo estão tão divididos em seus interesses seculares, o caminho estreito seria estreitado ainda mais; só um país estaria certo, e todo resto do mundo restaria sob a obrigação de seguir seus príncipes de maneiras que levam à destruição; e assim, algo que vai às raias do absurdo e serve muito mal à noção de Divindade, os homens ficariam a dever sua felicidade ou miséria eterna aos locais de sua natividade.

Estas considerações, para omitir muitas outras que poderiam ser arroladas com o mesmo propósito, parecem-me suficientes para concluir que todo poder do governo civil se relaciona somente aos interesses civis dos homens, está confinado ao cuidado das coisas deste mundo, e não tem nada a ver com o mundo por vir.

Consideremos agora o que é uma igreja. Entendo que uma igreja é uma sociedade voluntária de homens, unindo-se entre si por seu próprio acordo a fim de prestar o culto público a Deus de tal maneira que julguem aceitável a Ele, e eficaz para a salvação de suas almas.

Digo que é uma sociedade livre e voluntária. Ninguém nasce um membro de qualquer igreja; de outro modo a religião dos pais seria legada aos filhos pelo mesmo direito de herança que as suas propriedades temporais. Nenhum homem é vinculado por natureza a qualquer igreja ou seita em particular, mas cada um se une voluntariamente àquela sociedade na qual ele crê ter encontrado a profissão de fé e o culto que são realmente conformes à vontade de Deus. A esperança de salvação, sendo a única causa de sua entrada nesta comunidade, por esse mesmo motivo é a única razão de sua permanência nela. Pois se posteriormente ele vier a descobrir qualquer coisa ou errônea na doutrina ou incongruente no culto desta comunidade à qual aderiu, por que ele não deveria ter a liberdade de sair tal como teve a de entrar? Nenhum membro de uma sociedade religiosa pode ser vinculado por qualquer outro vínculo que não aquele provém da expectativa convicta da vida eterna. Uma igreja, portanto, é uma sociedade de membros voluntariamente unidos para esse fim.

A partir daí devemos considerar qual é o poder desta igreja e as leis às quais ela está submetida.

(…) Uma vez que a congregação de diversos membros nesta igreja-sociedade, como já foi demonstrado, é absolutamente livre e espontânea, segue-se necessariamente que o direito de fazer as suas leis não pode pertencer a mais ninguém salvo à própria comunidade; ou, ao menos (o que dá no mesmo), àqueles a quem a comunidade de comum acordo autorizou para tanto.

 

3. O escopo e o poder da autoridade religiosa

O escopo de uma comunidade religiosa (como já foi dito) é o culto público a Deus e, através disso, a aquisição da vida eterna. Toda disciplina deveria, portanto, tender a tal fim, e todas as leis eclesiásticas deveriam ser delimitadas por ele. Nada deveria nem poderia ser negociado nesta sociedade com relação à posse de bens civis e mundanos. Nenhuma força deveria ser utilizada aqui em qualquer que seja a ocasião. Pois a força pertence somente ao magistrado civil, e a posse de todos os bens exteriores é sujeita à sua jurisdição.

Mas, poderão perguntar, por quais meios então as leis eclesiásticas hão de ser estabelecidas, se devem ser de tal forma destituídas de qualquer poder coercitivo? Respondo: elas devem ser estabelecidas através dos meios adequados à natureza de tais coisas, em relação à qual a profissão de fé exterior e a observância – se não provierem de uma íntima convicção e da aprovação da mente – são totalmente inúteis e obsoletas. Os braços e armas através dos quais os membros dessa comunidade devem ser mantidos dentro de seus deveres são exortações, admoestações e conselhos. Se através de tais expedientes os ofensores não forem retificados, e os equivocados não forem convencidos, já não resta mais nada a fazer, exceto que essas pessoas obstinadas e teimosas, que não dão sinais de esperança em relação à sua recuperação, devem ser expulsas e separadas da comunidade. Esta é a última e mais extrema força da autoridade eclesiástica. Nenhuma outra punição pode portanto ser infligida senão esta, resultando no fim da relação entre o corpo e o membro que é extirpado. A pessoa condenada de tal forma deixa de ser parte da igreja em questão.

4. Relações promíscuas entre religião e política

Não foi a diversidade de opiniões (que não pode ser evitada), mas sim a recusa a tolerar aqueles que têm uma opinião diversa (que deveria ter sido concedida), aquilo que produziu todas as convulsões e guerras que aconteceram no mundo cristão por conta da religião. As cabeças e os líderes da Igreja, movidos pela avareza e pelo insaciável desejo de domínio, fazendo uso de uma ambição imoderada dos magistrados e das superstições crédulas da multidão ignara, os bajularam e os excitaram contra aqueles que discordavam de si, pregando-lhes, contrariamente às leis do Evangelhos e os preceitos da caridade, que os cismáticos e heréticos fossem espoliados de suas posses e destruídos. E assim misturaram e confundiram duas coisas que são em si mesmas muito diferentes, a Igreja e a commonwealth. Ora, como é muito difícil que os homens suportem pacientemente serem despojados dos bens que conquistaram com sua honesta indústria, e, contrariamente às leis da equidade, tanto humanas quanto divinas, serem entregues como uma presa à violência e à rapina de outros homens; especialmente quando são absolutamente inocentes; e quando a ocasião pela qual são assim tratados não pertence de modo algum à jurisdição do magistrado, mas totalmente à consciência de cada homem individual pela conduta da qual ele deveria prestar contas somente a Deus; o que mais se poderia esperar senão que esses homens, exaustos dos males sob os quais labutam, acabassem no fim por considerar legítimo resistir com a força, e defender seus direitos naturais (os quais não são confiscáveis em nome da religião) com armas o tanto quanto lhes fosse possível? Que esse foi até então o curso ordinário das coisas é abundantemente evidente na história, e que continuará a ser assim doravante é mais do que aparente na razão. Não poderia, com efeito, ser diferente enquanto o princípio da perseguição pela religião prevalecer, tal como ocorreu até então, junto aos magistrados e aos povos, e enquanto aqueles que deveriam ser os pregadores da paz e da concórdia continuarem com toda a sua arte e poder a excitar os homens às armas e a soarem o trompete da guerra. Mas que os magistrados suportem estes incendiários e perturbadores da paz pública é algo que deveria nos espantar se acaso não tivessem sido convidados por eles a participar dos espólios, considerando assim conveniente se valer de sua cobiça e orgulho como meios para aumentar seu próprio poder. Pois quem não vê que esses homens bondosos são, com efeito, mais ministros do governo do que ministros do Evangelho e que, bajulando sua ambição e favorecendo o domínio de príncipes e homens em autoridade, eles buscam com todo o seu poder promover aquela tirania na commonwealth que de outra forma eles não seriam capazes de estabelecer na Igreja? Este é o infeliz acordo que vemos entre a Igreja e o Estado. Ao passo que se cada um deles se contivesse a si mesmo em seus próprios limites – um ocupando-se do bem-estar mundano da commonwealth, o outro da salvação das almas – é impossível que qualquer discórdia viesse a ocorrer entre os dois. Sed pudet haec opprobria etc. [Mas é vergonhoso que tais reprovações etc.] Deus Todo Poderoso permita, eu lhe suplico, que o evangelho da paz seja largamente pregado, e que os magistrados civis, cada vez mais preocupados em conformar suas próprias consciências à lei de Deus e cada vez menos prontos a obrigar as consciências dos outros homens com leis humanas, possam, como pais de seu País, dirigir todos os seus conselhos e esforços a promover universalmente o bem-estar civil de todos os seus filhos, com a única exceção daqueles que são arrogantes, ingovernáveis, e injuriosos para com os seus irmãos; e que todos os homens eclesiásticos, que se jactam de serem sucessores dos Apóstolos, caminhando pacífica e modestamente nos passos dos Apóstolos, sem se imiscuir nas Questões de Estado, se devotem completamente a promover a salvação das almas.

ADEUS.