Extratos em torno ao coração humano tirados dos Pensamentos de Monsieur Pascal sobre a religião e sobre alguns outros temas, que foram encontrados após sua morte entre seus papéis, editados por Guillaume Desprez. Port-Royal, 1670 d.C.
Tradução de Marcelo Consentino
I. DE CORAÇÃO A CORAÇÃO
19 palpites sobre o coração humano
1. O que só se revela ao coração
(Do Capítulo I “Contra a indiferença dos Ateus”, página 3)
Que aqueles que combatem a Religião aprendam ao menos o que ela é antes de a combater. Se esta Religião se gabasse de ter uma visão clara de Deus, e de o possuir descoberto sem véu, a combateria quem dissesse que não se vê nada no mundo que o mostre com evidência. Mas dado que ela diz ao contrário que os homens estão nas trevas, e afastados de Deus, que ele se escondeu ao conhecimento deles, e que este é o nome mesmo que ele se dá nas Escrituras, Deus absconditus: e enfim que ela trabalha igualmente para estabelecer as duas coisas; que Deus pôs marcas sensíveis na Igreja para se fazer reconhecer àqueles que o buscam sinceramente; e que ele as recobriu não obstante de tal sorte que ele não será percebido senão por aqueles que o buscam com todo o coração; que vantagem acaso poderão eles tirar, quando na negligência onde fazem profissão de fé de buscar a verdade, eles gritam que ninguém a mostra; dado que esta obscuridade onde estão, a qual eles objetam à Igreja, não faz senão estabelecer uma das coisas que ela sustenta sem tocar à outra, e confirma sua doutrina bem longe de a arruinar?
2. Uma coisa monstruosa
(Do Capítulo I, página 12)
Nada é mais importante para o homem do que o seu estado; nada lhe é tão temível quanto a eternidade. E assim, que ele se encontre entre homens indiferentes à perda de seu ser, e ao risco de uma eternidade de miséria, isso não é natural. Eles são totalmente diferentes em relação a todas as outras coisas: eles temem até as mais minúsculas, eles as preveem, eles as sentem; e este mesmo homem que passa os dias e as noites na cólera e no desespero pela perda de um cargo, ou por qualquer ofensa imaginária à sua honra, é aquele mesmo que sabe que vai perder tudo para a morte, e que permanece não obstante na sua inquietude, sem tribulação, e sem emoção. Esta estranha insensibilidade pelas coisas mais terríveis em um coração tão sensível às mais ligeiras, é uma coisa monstruosa; é um feitiço incompreensível, e um torpor sobrenatural.
3. Corações baixos e corações razoáveis
(Do Capítulo I, páginas 16 e 17)
Nada revela mais uma estranha fraqueza do espírito que não reconhecer qual é a miséria de um homem sem Deus. Nada ressalta mais uma extrema baixeza de coração que não desejar a verdade das promessas eternas. Nada é mais covarde do que bancar o valente contra Deus. Que deixem portanto estas impiedades àqueles que são suficientemente mal nascidos para ser verdadeiramente capazes dela: que sejam ao menos gente honesta, se não podem ainda ser cristãos: e que reconheçam enfim que não há senão dois tipos de pessoas que se pode chamar razoáveis; ou aquelas que servem Deus com todo seu coração, porque o conhecem; ou aquelas que o buscam com todo seu coração, porque ainda não o conhecem.
4. Inclinações do coração
(Do Capítulo VI “Fé sem raciocínio”, página 50)
Não vos espanteis ao ver pessoas simples crerem sem raciocínio. Deus lhes dá o amor à sua justiça e o ódio a si mesmos. Ele inclina o coração deles a crer. Não creremos jamais com uma crença útil e com a fé, se Deus não inclinar o coração, e creremos quando ele o inclinar. É o que Davi sabia bem quando dizia: Inclina cor meum, Deus, in testimonia tua.
5. Disposição do coração
(Do Capítulo VI, página 51)
Aqueles que creem sem ter examinado as provas da Religião, é porque eles têm uma disposição interior toda santa, e aquilo que eles ouvem dizer de nossa Religião é conforme a ela. Eles sentem que um Deus os fez. Eles não querem amar senão ele. Eles não querem odiar senão a si mesmos. Eles sentem que eles não têm a força; que eles são incapazes de ir a Deus; e que se Deus não vem a eles, eles não podem ter nenhuma comunicação com ele. E eles ouvem dizer em nossa Religião que não se deve amar senão Deus, e não odiar senão a si mesmo; mas que estando todos corrompidos e incapazes de Deus, Deus se fez homem para se unir a nós. Não é preciso mais para persuadir homens que têm esta disposição no coração, e este conhecimento de seu dever e de sua incapacidade.
6. Tenção e tensão do coração pascalino
(Do Capítulo VII “Que é mais vantajoso crer do que não crer
naquilo que ensina a Religião Cristã”, páginas 64 e 65)
Olho por todas as partes, e não vejo em tudo senão trevas. A natureza não me oferece nada que não seja matéria de dúvida e inquietude. Se eu não visse nada que sinalizasse os sinais de uma divindade, eu me determinaria a não crer em nada. Se eu visse por toda parte os sinais de um Criador, eu repousaria em paz na fé. Mas vendo muito para negar, e muito pouco para me assegurar, eu estou num estado lamentável, e no qual eu espero cem vezes que se um Deus sustenta a natureza, ela o sinalize sem equívoco, e que se os sinais que ela dá dele forem enganosos ela os suprima totalmente; que ela diga tudo, ou nada, a fim de que eu veja qual partido devo seguir. Ao passo que no estado em que me encontro, ignorando aquilo que sigo, e aquilo que devo fazer, eu não conheço nem minha condição, nem meu dever. Meu coração tende totalmente inteiro a conhecer onde está o verdadeiro bem para o seguir. Nada me seria tão caro quanto isso.
7. Pureza, humildade e conversão do coração
(Do Capítulo X “Judeus”, página 77)
Jesus Cristo veio no tempo predito, mas não no esplendor esperado [pelos judeus]; e assim eles não pensaram que ele fosse [o Messias]. Após sua morte São Paulo veio ensinar aos homens que todas as coisas tinham vindo em figuras; que o Reino de Deus não está na carne, mas no espírito; que os inimigos dos homens não eram os Babilônios, mas suas paixões; que Deus não se comprazia nos templos feitos pela mão dos homens, mas em um coração puro e humilhado; que a circuncisão do corpo era inútil, mas que era necessária a do coração etc.
8. O espírito, a letra e o fundo do coração de cada um
(Do Capítulo XIII “Que a fé foi figurativa”, páginas 98 e 99)
A letra mata; tudo vinha em figuras; era preciso que o Cristo sofresse: um Deus humilhado: circuncisão do coração: verdadeiro jejum: verdadeiro sacrifício; verdadeiro templo: dupla lei: dupla tábua da lei: duplo templo: dupla catividade: eis a cifra que ele nos deu.
Ele nos ensinou enfim que todas as coisas não passavam de figuras, e o que é verdadeiramente livre, verdadeiro israelita, verdadeira circuncisão, verdadeiro pão do Céu etc. Nessas promessas cada um encontra aquilo que tem no fundo de seu coração, os bens temporais, ou os bens espirituais, Deus, ou as criaturas, mas com esta diferença, que aqueles que nelas buscam as criaturas, as encontram, mas com muitas contradições, com a proibição de as amar, com a ordem de não adorar senão Deus, e de não amar senão ele: ao passo que aqueles que nelas buscam Deus, o encontram, e sem nenhuma contradição, e com o mandamento de não amar senão ele.
9. As três ordens, ou: Os olhos do coração
(Do Capítulo XIV “Jesus Cristo”, páginas 106 a 109)
A distância infinita dos corpos aos espíritos figura a distância infinitamente mais infinita dos espíritos à caridade, pois ela é sobrenatural.
Todo esplendor das grandiosidades não tem lustre para as pessoas que estão nas buscas do espírito.
A grandiosidade das pessoas de espírito é invisível aos ricos, aos Reis, aos conquistadores, e a todos estes grandes da carne.
A grandiosidade da sabedoria que vem de Deus é invisível aos carnais, e às pessoas de espírito. São três ordens de diferentes gêneros.
Os grandes gênios têm seu império, seu esplendor, sua grandiosidade, suas vitórias, e não têm nenhuma necessidade das grandiosidades carnais, que não têm nenhuma relação com aquelas que eles buscam. Elas são vistas pelo espírito, não pelos olhos; mas é suficiente.
Os Santos têm seu império, seu esplendor, suas vitórias, e não têm nenhuma necessidade das grandiosidades carnais ou espirituais, que não são da sua ordem, e que não acrescentam e nem tiram nada à grandiosidade que eles desejam. Eles são vistos por Deus e pelos Anjos, e não pelos corpos nem pelos espíritos curiosos: Deus lhes basta.
Arquimedes sem nenhum esplendor de nascimento terá e mesma veneração. Ele não legou batalhas, mas ele deixou a todo universo invenções admiráveis. Ó! como ele é grande e esplendoroso aos olhos do espírito!
Jesus Cristo sem bens e sem nenhuma produção de ciência exterior, está na sua ordem de santidade. Ele não deixou invenções; ele não reinou; mas ele foi humilde, paciente, santo diante de Deus, terrível aos demônios, sem nenhum pecado. Ó! como ele veio em grande pompa, e numa prodigiosa magnificência aos olhos do coração, que veem a sabedoria!
(…)
Mas há quem não possa admirar senão as grandiosidades carnais, como se não houvesse as espirituais; e outros que não admiram senão as espirituais, como se não houvesse infinitamente mais altas na sabedoria.
Todos os corpos, o firmamento, as estrelas, a terra, e os Reinos não valem o menor dos espíritos; pois ele conhece tudo isso, e si mesmo; e o corpo nada. E todos os corpos e todos os espíritos juntos, e todas as suas produções não valem o menor movimento da caridade; pois ela é de uma ordem infinitamente mais elevada.
Com todos os corpos juntos não seria possível extrair o menor pensamento: isso é impossível, e de uma outra ordem. Todos os corpos e os espíritos juntos não conseguiriam produzir um movimento da verdadeira caridade: isto é impossível, e de uma outra ordem sobrenatural.
10. O coração da questão
(Do Capítulo XV “Provas de Jesus Cristo pelas profecias”, páginas 122 e 123)
O Messias devia somente ele produzir um grande povo, eleito, santo, e escolhido; conduzi-lo, alimentá-lo, introduzi-lo no local de repouso e de santidade; rendê-lo santo a Deus, fazê-lo templo de Deus, reconciliá-lo a Deus, salvá-lo da cólera de Deus, libertá-lo da servidão do pecado que reina visivelmente no homem; dar leis a este povo, gravar suas leis em seu coração, se oferecer a Deus por eles, se sacrificar por eles, ser uma hóstia sem mancha, e ele mesmo sacrificador; ele devia se oferecer por si mesmo, e oferecer seu corpo e seu sangue, e não obstante oferecer pão e vinho a Deus. Jesus Cristo fez tudo isso.
11. Pendores do coração dos homens
(Do Capítulo XVI “Diversas provas de Jesus Cristo”, página 126)
Para não crer nos Apóstolos, é preciso dizer que eles foram enganados, ou são enganadores. Um e outro é difícil. Pois, primeiro, não é possível se enganar a ponto de tomar um homem por ressuscitado. E depois, a hipótese de que tenham sido ardilosos, é estranhamente absurda. Que sigam ela até o fundo. Que imaginem estes doze homens reunidos após a morte de Jesus Cristo, organizando o complô de dizer que ele ressuscitou. Eles atacam assim todas as potências. O coração dos homens é estranhamente pendente à leviandade, à mudança, às promessas, aos bens. Tão logo algum deles fosse desmentido por um desses atrativos, e outros fossem às prisões, às torturas, e à morte, eles estariam perdidos. Que sigam por aí.
12. Sístole-diástole, claro-escuro, quente-frio
(Do Capítulo XVIII “Desígnio de Deus de se esconder
a uns, e de se descobrir a outros”, página 135)
Deus quis resgatar os homens, e abrir a salvação àqueles que o buscariam. Mas os homens se fazem tão indignos, que é justo que ele recuse a alguns em razão de seu endurecimento aquilo que ele dá aos outros por uma misericórdia que não lhes é devida. Se ele quis se sobrepor à obstinação dos mais endurecidos, ele o pôde, descobrindo-se tão manifestamente a eles, que eles não puderam mais duvidar da verdade de sua existência, e é assim que ele aparecerá no último dia, com tantos raios e trovões, e com tantas reviravoltas da natureza, que os cegos o verão.
Não foi deste jeito que ele quis aparecer em seu advento de doçura; porque com tantos homens fazendo-se indignos de sua clemência, ele quis deixá-los na privação do bem que eles não querem mais. Não seria portanto justo que ele aparecesse de uma maneira manifestamente divina, e absolutamente capaz de convencer todos os homens; mas não seria justo também que ele viesse de uma maneira tão escondida que não pudesse ser reconhecido por aqueles que o buscassem sinceramente. Ele quis se fazer perfeitamente reconhecível a estes: e assim querendo aparecer a descoberto àqueles que o buscam com todo o seu coração, e às escondidas àqueles que fogem dele com todo o seu coração, ele tempera seu conhecimento, de modo que ele deu sinais de si visíveis àqueles que o buscam, e obscuros àqueles que não o buscam
13. Do que preenche o coração
(Do Capítulo XX “Não se conhece Deus utilmente
salvo por Jesus Cristo”, página 152)
A divindade dos cristãos não consiste em um Deus simplesmente autor de verdades geométricas e da ordem dos elementos, essa é a parte dos pagãos. Ela não consiste simplesmente em um Deus que exerce sua providência sobre a vida e sobre os bens dos homens, para dar uma feliz sequência de anos àqueles que o adoram; é a parte dos Judeus. Mas o Deus de Abraão, e de Jacó, o Deus dos cristãos, é um Deus de amor e consolação: é um deus que preenche a alma e o coração daqueles que ele possui: é um Deus que lhes faz sentir interiormente sua miséria e sua misericórdia infinita; que se une ao fundo de sua alma, que a preenche de humildade, de alegria, de confiança, de amor; que lhes faz incapazes de outro fim senão ele mesmo.
14. A miséria e a glória, ou: A qualidade mais inapagável do coração do homem
(Do Capítulo XXIII “Grandeza do homem”, página 178)
Temos uma ideia tão grande da alma do homem, que não podemos suportar ser desprezados, e não ser estimados por outra alma: e toda a felicidade dos homens consiste nesta estima.
Se de um lado esta falsa glória que os homens buscam é um grande sinal de sua miséria, e de sua baixeza, é também de sua excelência. Pois mesmo com algumas posses que ele tem sobre a terra, com alguma saúde e comodidade essencial que ele goza, ele não fica satisfeito se não está na estima dos homens. Ele estima tão grande a razão do homem, que mesmo com alguma vantagem que venha a ter no mundo, ele se crê miserável, se não for colocado vantajosamente na razão do homem. É o mais belo lugar do mundo: nada pode desviar este desejo; e é a qualidade mais inapagável do coração do homem. Tanto que aqueles que mais desprezam os homens e que os igualam às bestas, ainda querem ser admirados, e se contradizem a si mesmos pelo seu próprio sentimento; sua natureza que é mais forte que toda razão os convence mais fortemente da grandeza do homem, do que a razão os convence de sua baixeza.
15. Raízes cardiovasculares
(Capítulo XXIV “Vaidade do homem”, página 182)
A vaidade é tão enraizada no coração do homem, que um pilantra, um borra-botas, um gatuno se vangloria, e quer ter seus admiradores. E os próprios filósofos o querem. Aqueles que escrevem contra a glória, querem ter a glória de ter bem escrito; e aqueles que o leem, querem ter a glória de tê-lo lido; e eu que escrevo isto, tenho talvez este anseio; e talvez aqueles que o lerão o terão também.
16. Sentimentos e impressões no coração
(Do Capítulo XXVIII “Pensamentos cristãos”, página 241)
Aqueles a quem Deus deu a Religião por sentimentos do coração são bem felizes, e bem persuadidos. Mas para aqueles que não a tem, nós não podemos concedê-la senão através do raciocínio, esperando que Deus a imprima neles por si mesmo no coração, sem o que a fé é inútil para a salvação.
17. Sobre as razões do coração e os sentimentos da razão
(Do Capítulo XXVIII, página 263)
O coração tem suas razões, que a razão não conhece. Sentimos isso em mil coisas. É o coração que sente Deus, e não a razão. Eis o que é a fé perfeita, Deus sensível ao coração.
18. Sobre a ordem do espírito e a ordem do coração
(Do Capítulo XXXI “Pensamentos diversos”, página 326)
O espírito tem sua ordem, que é por princípios e demonstrações; o coração tem outra. Não se pode provar que alguém deve ser amado, expondo em ordem as causas do amor: isso seria ridículo.
Jesus Cristo e São Paulo seguiram muito mais esta ordem do coração, que é aquela da caridade, do que a do espírito; pois o fim principal não era instruir, mas aquecer. Santo Agostinho igualmente. Esta ordem consiste principalmente na digressão sobre cada ponto, que tem relação com o fim, para o mostrar sempre.
19. Comunidade cardíaca
(Do Capítulo XXXI, página 329)
Quando um discurso natural pinta uma paixão ou um efeito, encontramos em nós mesmos a verdade daquilo que ouvimos, que estava lá sem que soubéssemos; e nos sentimos levados a amar àquele que nos fez senti-la. Pois ele nos dá não uma mostra do seu bem, mas do nosso: e assim o que foi bem feito nos faz amáveis; além disso esta comunidade de inteligência que temos com ele inclina necessariamente o coração a amá-lo.
II. BATE O CORAÇÃO
6 orações cordiais de Pascal
(Extratos da “Oração para pedir a Deus
o bom uso das doenças”)
1. Vós me destes a saúde para vos servir…
Vós me destes a saúde para vos servir; e eu fiz um uso totalmente profano. Vós me enviais agora a doença para me corrigir: não permiti que eu a use para vos aborrecer com minha impaciência. Eu usei mal minha saúde, e vós me punistes com justiça. Não tolereis que eu use mal a vossa punição. E já que a corrupção da minha natureza é tal que ela torna vossos favores perniciosos, fazei, ó meu Deus, com que vossa graça toda poderosa faça com que vossos castigos me sejam salutares. Se eu tive o coração pleno de afeição ao mundo, enquanto ele teve algum vigor, aniquilai este vigor para minha salvação, e fazei-me incapaz de gozar o mundo, seja por fraqueza do coração, seja por zelo da caridade, para não gozar senão vós e mais nada.
2. Ó Deus, diante de quem eu devo prestar uma conta exata…
Ó Deus, diante de quem eu devo prestar uma conta exata de todas as minhas ações no fim da minha vida, e no fim do mundo! Ó Deus que não deixa subsistir o mundo e todas as coisas do mundo senão para exercitar vossos eleitos, ou para punir os pecadores ! Ó Deus, que deixa os pecadores endurecidos no uso delicioso e criminoso do mundo! Ó Deus que faz morrer nosso corpo, e que na hora da morte separa nossa alma de tudo aquilo que ela amava no mundo! Ó Deus, que me arranca a este último movimento de minha vida, de todas as coisas às quais eu me agarrei, e onde pus meu coração! Ó Deus, que heis de consumir no último dia o céu e a terra, e todas as criaturas que eles contêm, para mostrar a todos os homens que nada subsiste senão vós, e que assim nada é digno de amor senão vós, pois nada dura senão vós! Ó Deus que heis de destruir todos estes ídolos vãos, e todos estes funestos objetos de nossas paixões! Eu vos louvo, meu Deus, e eu vos bendirei todos os dias de minha vida, por aquilo que vós decidistes prevenir em meu favor neste dia pavoroso, ao destruir a meu favor todas as coisas, no enfraquecimento ao qual vós me reduzistes. Eu vos louvo, meu Deus, eu vos bendirei todos os dias de minha vida, por que quisestes me diminuir na incapacidade de gozar as doçuras da saúde, e os prazeres do mundo; e por aquilo que vós aniquilastes de algum modo, a meu favor, os ídolos enganosos que vós aniquilareis efetivamente para a confusão dos perversos, no dia de vossa cólera. Fazei, Senhor, com que eu me julgue a mim mesmo após esta destruição que realizastes a meu favor; a fim de que vós não me julgueis vós mesmos após a inteira destruição à qual levareis minha vida e a do mundo. Pois, Senhor, assim como no instante de minha morte eu me encontrarei separado do mundo, desnudado de todas as coisas, só em vossa presença; para responder à vossa justiça com todos os movimentos do meu coração; fazei com que eu me considere nesta doença como uma espécie de morto, separado do mundo, desnudado de todos os objetos de meus apegos, só na vossa presença para implorar por vossa misericórdia a conversão do meu coração; e que assim eu tenha uma extrema consolação por isso que me enviais agora, uma espécie de morte, para exercer vossa misericórdia, antes que me envieis efetivamente à morte para exercer vosso julgamento. Fazei, então, ó meu Deus, que tal como previstes minha morte, eu preveja o rigor de vossa sentença; e que eu me examine a mim mesmo antes do vosso julgamento, para encontrar misericórdia em vossa presença.
3. Fazei, ó meu Deus, com que eu adore em silêncio…
Fazei, ó meu Deus, com que eu adore em silêncio a ordem de vossa Providência sobre a conduta de minha vida; como vosso flagelo me consola; e como, tendo vencido no amargor de meus pecados durante a paz, eu gozo as doçuras celestes de vossa graça durante os males salutares com os quais me afligis. Mas eu reconheço, meu Deus, que meu coração está tão endurecido e pleno de ideias, de preocupações, de inquietudes e de apegos ao mundo, que a doença não mais que a saúde, nem os discursos, nem os livros, nem vossas Escrituras sacras, nem vosso Evangelho, nem vossos Mistérios mais santos, nem as esmolas, nem os jejuns, nem as mortificações, nem os milagres, nem o uso dos Sacramentos, nem o sacrifício do vosso Corpo, nem todos os meus esforços, nem aqueles do mundo inteiro juntos, não podem absolutamente nada para começar a minha conversão, se vós não acompanhardes todas as coisas com uma assistência totalmente extraordinária de vossa graça. É por isso, meu Deus, que eu me dirijo a vós, Deus Todo Poderoso, para vos pedir um dom que todas as criaturas juntas não podem me dar. Eu não teria a ousadia de vos dirigir meus gritos, se outro os pudesse satisfazer. Mas, meu Deus, como a conversão de meu coração que eu vos peço é uma obra que ultrapassa todos os esforços da natureza, eu não posso me dirigir senão ao autor e ao senhor todo poderoso da natureza, e do meu coração. A quem gritarei eu, Senhor, a quem recorrerei, senão a vós? Tudo aquilo que não é Deus não pode satisfazer meus anseios. É o próprio Deus que eu peço e que eu busco; é somente a vós que eu me dirijo para vos obter. Abri meu coração, Senhor; entrai neste lugar rebelde que os vícios ocuparam. Eles o mantêm submisso; entrai lá como na casa do homem forte; mas atai antes o forte e potente inimigo que a domina; e tomai em seguida os tesouros que lá estão. Senhor tomai meus afetos que o mundo roubou: roubai vós mesmo este tesouro, ou antes retomai-o, porque ele pertence a vós, como um tributo que eu vos devo, porque nele vossa imagem está gravada. Vós a formastes, Senhor, no momento de meu batismo que foi meu segundo nascimento; mas ela está totalmente apagada. A ideia do mundo está de tal forma gravada nela, que a vossa não é mais reconhecível. Só vós pudestes criar minha alma: só vós podeis criá-la de novo. Só vós pudestes formar nela vossa imagem; só vós podeis reformá-la, e reimprimir nela vosso retrato apagado, ou seja Jesus Cristo meu Salvador, que é vossa imagem e o caráter de vossa substância.
4. Ó meu Deus, como um coração é feliz…
Ó meu Deus, como um coração é feliz, quando pode amar um objeto tão encantador, que não o desonra e cujo apego lhe é salutar! Eu sinto que não posso amar o mundo sem vos desagradar, sem me prejudicar e sem me desonrar; e mesmo assim o mundo é ainda o objeto das minhas delícias. Ó meu Deus, como uma alma é feliz quando vós sois as delícias, porque ela pode se abandonar a vos amar, não somente sem escrúpulos, mas ainda com mérito! Como sua felicidade é firme e durável, porque sua espera não será frustrada, porque vós não sereis jamais destruído, e porque nem a vida nem a morte não a separarão jamais do objeto de seus desejos; e no momento mesmo, que arrastareis os perversos com seus ídolos a uma ruína completa, unireis os justos convosco numa glória comum; e porque, como alguns perecerão com os objetos perecíveis aos quais estarão apegados, os outros subsistirão eternamente no objeto eterno subsistente por si mesmo ao qual eles se uniram estreitamente. Ó! como são felizes aqueles que com uma liberdade plena e um pendor invencível de sua vontade amam perfeitamente e livremente aquilo que são obrigados a amar necessariamente!
5. Completai, ó meu Deus, os bons movimentos que vós me dais…
Completai, ó meu Deus, os bons movimentos que vós me dais. Estai no fim como vós sois o princípio. Coroai vossos próprios dons; pois eu reconheço que são vossos dons. Sim, meu Deus, e bem longe de pretender que minhas preces tenham mérito que vos obrigue a acatá-las por necessidade, eu reconheço muito humildemente que tendo dado às criaturas meu coração que vós formastes só para vós, e não para o mundo, nem para mim mesmo, eu não posso esperar qualquer graça de vossa misericórdia, porque eu não tenho nada em mim que possa vos dar por garantia, e porque todos os movimentos naturais do meu coração, inclinando-se todos às criaturas ou a mim mesmo, só podem vos irritar. Eu vos dou graças portanto, meu Deus, pelos bons movimentos que vós me dais, e por aquele mesmo que vós me dais de vós quando dou graças.
6. Tocai meu coração com arrependimento por minhas faltas…
Tocai meu coração com arrependimento por minhas faltas; porque sem esta dor interior, os males exteriores com os quais vós tocais meu corpo me seriam uma nova ocasião de pecado. Fazei-me entender claramente que os males do corpo não são outra coisa senão a punição e a figura completa dos males da minha alma. Mas, Senhor, fazei também com que eles sejam o remédio, fazendo-me considerar, nas dores que sinto, aquela que eu não sentia na minha alma ainda que totalmente doente e coberta de úlceras. Pois, Senhor, a maior das doenças é esta insensibilidade, e esta extrema fraqueza que tirou dela todo o sentimento de suas próprias misérias. Fazei-me sentir vivamente, e que aquilo que me resta de vida seja uma penitência contínua para lavar as ofensas que cometi.
III. MEMORIAL
O coração dos corações (oculto) de Pascal
(De um pedaço de papel manuscrito encontrado
no forro do casaco de Pascal após a sua morte.)
Ano da graça 1654
Segunda-feira, 23 de novembro, dia de são Clemente, papa e mártir, e outros no martirológio.
Vigília de são Crisógono, mártir, e outros,
Após cerca de dez horas e meia da noite até por volta da meia noite e meia.
FOGO
“DEUS de Abraão, DEUS de Isaac, DEUS de Jacó”
não dos filósofos e dos doutos.
Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria. Paz.
DEUS de Jesus Cristo.
Deum meum et Deum vestrum.
“Teu DEUS será meu Deus.”
Esquecimento do mundo e de tudo, exceto DEUS.
Ele não pode ser encontrado senão pelas vias ensinadas no Evangelho.
Grandeza da alma humana.
“Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci.”
Gozo, gozo, gozo, lágrimas de gozo.
Eu me separei dele:
Dereliquerunt me fontem aquae vivae.
[Eles se esqueceram de mim, a fonte de água viva]
“Deus meu, tu me deixarás?”
Que eu não fique separado eternamente.
“Esta é a vida eterna, que eles te conheçam, o único e verdadeiro Deus, e aquele que tu enviaste, Jesus Cristo.”
Jesus Cristo.
Jesus Cristo.
Eu me separei, eu fugi dele, o renunciei, o crucifiquei.
Que eu jamais me separe dele.
Ele só pode ser conservado pelas vias ensinadas no Evangelho:
Renúncia total e dócil.
Submissão total a Jesus Cristo e ao meu diretor.
Eternamente em alegria por um dia de exercício na terra.
Non obliviscar sermones tuos
[Que eu não esqueça as tuas palavras].
Amen.