Da sessão sobre a “Doutrina da Criação” (Volume III, Capítulo 3) da Dogmática da Igreja de Karl Barth. Basileia, 1950 d.C.
Devemos indicar e remover uma confusão grave que teve amplas repercussões na história da teologia. A luz existe tanto quanto a sombra; há um lado positivo tanto quanto um lado negativo na criação a na existência das criaturas. Quando o primeiro relato bíblico da criação distingue e opõe o dia e a noite, a terra e a água, ele indica este caráter e aspecto dúplice da existência criatural. Vista a partir deste aspecto negativo, a criação está, por assim dizer, no limiar do nada e é orientada para ele. A Criação é continuamente confrontada por esta ameaça. É continuamente relembrada que enquanto criação de Deus ela não tem apenas um lado positivo mas também um negativo. Ainda assim, este lado negativo não deve ser identificado com o nada, nem se deve postular que este último pertence à essência da natureza criatural e que deve de algum modo ser entendido e interpretado como uma marca do seu caráter e perfeição. Pertence à essência da natureza criatural, e é com efeito a marca da sua perfeição, que ela tenha de fato este lado negativo, que ela se incline não somente à direita mas também à esquerda, que ela seja assim simultaneamente digna de seu Criador e ainda assim dependente dele, que ela não seja só “nada” e sim “algo”, porém “algo” na própria fronteira do “nada”, segura, porém frágil. Segue-se daí que embora a sua existência esteja sob a dúvida e a sombra ela não está por si mesma envolvida na oposição e na resistência à vontade criativa de Deus. Ao contrário, esta vontade é realizada e confirmada nela. A criatura é natural, não antinatural. É boa, até mesmo muito boa, na medida em que não se opõe mas corresponde à vontade de Deus tal como revelada por Ele na humilhação e na exaltação de Jesus Cristo e na reconciliação do mundo com Ele mesmo e realizada Nele. Pois Nele Deus se fez a si mesmo o Sujeito de ambos os aspectos da existência criatural. E tendo-a feita sua em Jesus Cristo, Ele a afirmou em sua totalidade, reconciliando a antítese interior dela à Sua pessoa. A Criatura não tem o caráter de nada enquanto e porque ela é uma criatura e participa desta antítese. Ao contrário, esta é a sua perfeição e a prova de sua criação em e para Jesus Cristo. Nisso ela está determinada para o seu lugar na aliança com Deus. Nisso ela é energizada e equipada para a vida em parceria com o seu Criador, para o trabalho em seu Serviço, para a fé, a obediência e a oração. Nisso é dado um lugar para o seu louvor. Pois o próprio Deus revelou e mostrou que essa é a determinação da Sua vontade ao tornar-se ele mesmo uma criatura sob essa determinação. Não há qualquer base comum entre ela e o nada, ou seja, o poder inimigo da vontade do Criador e portanto da natureza de Sua boa criação, aquilo que ameaça a existência do mundo e é a sua própria corrupção. A bem da verdade, o aspecto negativo da criação é um lembrete dessa ameaça e dessa corrupção. Mas disso não decorre que pelo fato de a criação ter o seu lado sombrio ela seja ela mesma sua vítima e portanto pertença ao nada. Quando Jesus Cristo retornar finalmente como o Senhor e a Cabeça de tudo o que Deus criou, também será revelado que tanto a luz quanto a sombra, na mão esquerda e na direita, tudo o que foi criado é muito bom e supremamente glorioso.
É verdade que na criação não há somente um Sim mas também um Não; não somente uma altura mas também um abismo; não somente a claridade mas também a obscuridade; não somente o progresso e a continuidade mas também o impedimento e a limitação; não somente o crescimento mas também a decadência; não somente a opulência mas também a indigência; não somente a beleza mas também as cinzas; não somente o princípio mas também o fim; não somente o valioso mas também o desprezível. É verdade que na existência criatural, e especialmente na existência do homem, há horas, dias e anos tanto com luzes quanto com trevas, com sucessos e fracassos, risos e lágrimas, juventude e velhice, ganhos e perdas, nascimento e, mais cedo ou mais tarde, seu inevitável corolário, a morte. É verdade que as criaturas individuais e os homens experimentam estas coisas do modo mais desigual, sendo o quinhão de cada um designado por uma justiça que é curiosa ou bastante obscura. Ainda assim, é irrefutável que a criação e a criatura são boas, mesmo ante o fato de que tudo aquilo que é existe neste contraste e nesta antítese. Em tudo isso, longe de ser nula, ela louva o seu Criador e Senhor mesmo em seu lado sombrio, mesmo no aspecto negativo no qual está tão próxima ao nada. Se Ele mesmo abrangeu a criação em sua totalidade e a fez Sua em Seu Filho, cabe a nós consentir sem pensar que nós sabemos mais, sem queixas, reprovação ou abatimento. Até onde podemos ver, acaso Suas criaturas não o podem louvar mais poderosamente na humildade do que na exaltação, na necessidade do que na fartura, no medo do que na alegria, na fronteira do nada do que quando totalmente orientadas em Deus? Até onde podemos ver, acaso nós mesmos não podemos louvá-lo com mais pureza nos dias maus do que nos bons, mais certamente na aflição do que no júbilo, mais verdadeiramente na adversidade do que no progresso? É possível, evidentemente, que se dê o contrário. Mas deve ser sempre assim? Se não, se também puder haver um louvor a Deus do abismo, da noite e do infortúnio, e talvez mesmo do abismo mais profundo, da noite mais escura e do maior dos infortúnios, por que deveríamos duvidar da justiça oculta que distribui as distinções e contrastes entre nós e os outros?
Eu me volto agora a Wolfgang Amadeus Mozart. Por que motivo esse homem é tão incomparável? Por que ele produziu em praticamente todos os gêneros que concebeu, e compôs um tipo de música para a qual “bela” não é um epíteto adequado: música que para o verdadeiro cristão não é um mero entretenimento, gozo ou edificação, mas comida e bebida; música plena de conforto e conselho para as suas necessidades; música que jamais é escrava da sua técnica nem é sentimental, mas está sempre “se movendo”, livre e libertadora, porque sábia, forte e soberana? Por que é possível afirmar que Mozart tem um lugar na teologia, especialmente na doutrina da criação e também na escatologia, mesmo que ele não fosse um Padre da Igreja, e não tenha sido, ao que parece, um cristão particularmente ativo, além de ser católico romano, conduzindo de resto uma existência que, à primeira vista, parece ser bastante frívola quando não ocupada com sua obra? É possível dar a ele essa posição porque ele sabia algo sobre a criação em sua bondade total que nem os verdadeiros Padres da Igreja nem nossos reformadores, nem os ortodoxos nem os liberais, nem os expoentes da teologia natural nem aqueles pesadamente armados com o “Verbo de Deus”, nem também, com toda certeza, os existencialistas, nem ainda qualquer outro grande músico antes ou depois dele sabia ou podia expressar e sustentar como ele fez. Nesse sentido ele era puro de coração, transcendendo de longe tanto otimistas quanto pessimistas. 1756 a 1791! Essa foi a época em que Deus esteve sob ataque pelo terremoto de Lisboa, e os teólogos e todo tipo de gente bem intencionada suaram a camisa para defendê-Lo. Ante o problema da teodiceia, Mozart tinha a paz de Deus que transcende de longe toda a razão crítica ou especulativa que louva e reprova. Esse problema fica às suas costas. Por que então ele deveria se preocupar? Ele ouviu, e faz com que aqueles que têm ouvidos ouçam, mesmo hoje, aquilo que não nos é dado ver antes do fim dos tempos – o contexto total da Providência. Como se estivesse sob a luz deste fim, ele ouviu a harmonia da criação à qual a sombra também pertence mas na qual a sombra não é treva, a deficiência não é derrota, a tristeza não pode se tornar desespero, as tribulações não podem se degenerar em tragédia, e a infinita melancolia não é definitivamente forçada a reclamar um domínio indisputável. Assim o júbilo nesta harmonia não é sem limites. Mas a luz brilha ainda mais reluzente porque ela irrompe da sombra. A doçura também é amarga e não pode portanto enjoar. A vida não teme a morte mas a conhece bem. Et lux perpetua lucet (atenção!) eis – Que a luz perpétua brilhe sobre eles – mesmo sobre os mortos de Lisboa. Mozart viu esta luz não mais do que nós vimos, mas ele ouviu o mundo inteiro da criação envolvido por esta luz. Assim se deu, fundamentalmente para que ele não ouvisse um tom neutro ou mediano, mas o positivo muito mais forte que o negativo. Ele ouviu o negativo somente no e com o positivo. Ainda assim, em sua desigualdade, ele ouviu a ambos juntos, como, por exemplo, na Sinfonia em G-menor de 1788. Ele nunca ouviu exclusivamente um abstraído do outro. Ele ouviu concretamente, e portanto as suas composições foram e são música total. Ouvindo a criação sem ressentimento e sem parcialidade, ele não produziu simplesmente a sua própria música mas aquela da criação, seu dúplice e, ainda assim, harmonioso louvor a Deus. Ele nem precisava nem desejava exprimir ou representar a si mesmo, sua vitalidade, angústia, piedade ou qualquer outro programa. Ele era notavelmente livre da mania pela auto-expressão. Ele simplesmente se ofereceu a si mesmo como aquele agente através do qual pedaços de chifres, metais e tripas podiam servir como vozes da criação, algumas vezes conduzindo, outras sendo conduzidos e outras ainda em harmonia. Ele fez uso de instrumentos que vão desde o piano até o violino, desde o trompete ao clarinete, até o venerável fagote, com a voz humana em algum lugar entre eles, sem qualquer pretensão a uma distinção especial e ainda assim, exatamente por esta razão, distinta. Ele extraiu música de tudo e todos, exprimindo até mesmo as emoções humanas a serviço desta música, e não vice-versa. Ele mesmo era nada mais que um ouvido para esta música, e seu mediador para os outros. Ele morreu quando, de acordo com os entendidos do mundo, a obra de sua vida estava somente amadurecendo rumo à sua verdadeira perfeição. Mas quem poderá dizer que após a “Flauta Mágica”, o Concerto para Clarinete de Outubro de 1791 e o Requiem, ela já não tinha atingido sua perfeição? Acaso a totalidade desta conquista já não estava implícita em suas obras dos 16 ou 18 anos de idade? Não pode ser ouvida naquilo que chegou a nós de Mozart criança? Ele morreu na miséria como um “soldado desconhecido”, e na companhia de Calvino e Moisés na Bíblia, não tem um túmulo conhecido. Mas que importa? Que importa um túmulo quando a uma vida é permitido simplesmente e despretensiosamente, e portanto serenamente, autenticamente e espantosamente, exprimir a boa criação de Deus, que também inclui a limitação e o fim do homem.