Um Rei conta a uma de suas esposas como o exílio de seus filhos é um carma resultante de uma imprudência fatal na juventude.
Da tradução de Candido Figueiredo (1873) em decassílabos portugueses do Ramayana ou A Jornada de Ramá, poema épico hindu com cerca de 24.000 versos, composto por Valmiki Adi Kavi (o Poeta Primordial). Índia, entre os séculos V e III a.C.
Tentando há anos sem sucesso gerar um herdeiro de uma de suas três mulheres, o desesperado rei de Ayodhya Daçaratha, da casta militar dos Kchatrya, realiza o sacrifício ritual do fogo e é abençoado com um filho para cada esposa: Ramá, Lakshmaná e Bharatá. Ao mesmo tempo Vishnu, uma das três divindades supremas junto a Brahma e Shiva, decide tomar forma humana para combater o demônio Ravaná, que vem oprimindo os deuses e que só pode ser destruído por um mortal. Cada um dos três príncipes é assim dotado em diversos graus com a sua essência divina. Passado muito tempo, com os três já casados, o velho rei decide coroar Ramá, o filho de Kaoçalya. Na véspera do grande evento, Keikeyi, uma de suas duas outras esposas, relembra ao Rei da promessa que ele lhe fez há muito tempo de conceder quaisquer dois favores que ela quisesse, e exige que Ramá seja exilado por quatorze anos na floresta e que o trono por sua vez seja transmitido a seu filho, Bharatá. De coração partido, mas constrangido por seu rígido compromisso com sua palavra, o rei, a contra-gosto, aquiesce. Obediente e imperturbável, Ramá parte, acompanhado de sua devotada esposa, Sita, e de seu outro irmão e companheiro inseparável, Lakshmaná.
Quando Ramá, dos homens o mais bravo,
partiu para as florestas, Daçaratha
— aquele rei outr’ora tão ditoso,–
deixou-se possuir de mágoa enorme.
Exilados seus filhos, o monarca,
tão alto como Indra, escureceu-se
nas trevas do infortúnio, como quando
a sombra de um eclipse os céus invade,
tapando ao sol a face.
………………………………..Após seis dias
de prantos e saudade, o rei egrégio,
acordando uma vez à meia noite,
lembrou-se de uma falta cometida
em afastado tempo, e dirigiu-se
desta forma a Kaoçálya, sua esposa:
– Se és também acordada, ouve-me atenta,
Kaoçálya. Quando um homem, dama ilustre,
faz uma ação, ou boa ou má, não pode
evitar no porvir os frutos dela.
Qualquer que em suas coisas não distingue
o bem e o mal, e às cegas vai obrando,
os sábios apelidam-no criança.
Nos bons tempos da minha adolescência,
em que eu, moço imprudente, me ufanava
de flechar toda a fera que avistasse,
cometi uma falta… por acaso.
A desgraça presente é fruto acerbo
dessa culpa, Kaoçálya, como a morte
é fruto de um veneno que se bebe.
Mas filha de ignorância foi a culpa,
como a morte talvez de envenenado.
Ainda tu não eras minha esposa,
e eu era apenas da coroa herdeiro.
Nesse tempo, a estação das manhãs frescas
entornava alegrias na minha alma;
o sol, que havia esbraseado a terra
e bebido a umidade das campinas,
cansado já de procurar o norte,
mudara de hemisfério. Graciosas
as nuvens espalmavam-se nos ares,
e os grous, e os cisnes, e os pavões folgavam
repletos de alegria. Os aguaceiros
obrigavam os rios a espalharem
água lodosa em cima das alpondras.
Os campos, sorridentes sob a chuva,
ostentavam seus vírides relvados
em que as aves, alegres, volitavam.
No correr de estação tão prazenteira,
tomei sobre meus ombros dois carcases,
empunhei o meu arco, e fui-me andando
em direção às margens do Çarayo.
Ao abeirar-me do formoso rio,
levava em mira, consoante os hábitos,
às feras atirar, que um rumor leve
denunciasse, sem que eu mesmo as visse;
e escondi-me na sombra, de arco armado,
ao pé dos bebedouros solitários,
que ali dessedentavam, alta noite,
os animais que habitam as florestas.
E era o caso, que às vezes despedia
alguma flecha para aquela banda
donde rumor saíra, e assim matava,
um búfalo da selva, um elefante,
ou qualquer fera que buscasse as águas.
E nessa hora, quando os meus olhares
nenhum objeto distinguir podiam,
ouvi o som confuso de uma bilha
que alguém enchia de água; som que imita
o múrmuro beber de um elefante.
E prestes cavilhando no arco a flecha,
flecha assaz empenada e penetrante,
cego pelo destino, despedi-a
contra o lugar donde o rumor saíra.
Mal a flecha voara, uma voz de homem,
lamentosa, chegou a meus ouvidos:
“Morto! estou morto! Como despedir-se
um dardo contra mim, contra um eremita?
De quem será o braço desumano
que despediu a seta? Vim de noite
a bilha encher no solitário rio:
quem o assassino? a quem tenho ofendido?
Oh! esta flecha, tendo penetrado
o coração exânime do filho,
irá cravar-se no magoado seio
de um velho anacoreta, pobre e cego,
que aí vegeta à sombra da miséria,
no meio destes bosques. Choro menos
o desastrado fim da minha vida,
que a sorte de meus pais, dois velhos cegos.
Avergados ao peso dos invernos,
e por mim amparados tanto tempo,
como viverão eles, sós e cegos,
sem o amparo do filho? Quem seria
o homem sem alma, cuja flecha aguda
matou a todos três, a mim e a eles,
que de frutos, raízes e legumes
numa paz inocente aqui vivíamos?”
Disse. E, perante a minha estranha falta,
eu, abalado, comovido e trêmulo,
deixei cair das mãos carcás e arco.
Corri, e achei, prostrado na água, um jovem
que trajava de peles de antílope
e usava a ilustre djata dos ascetas.
Mortalmente ferido, ergueu os olhos,
e, cravando-os em mim, num desgraçado,
dirigiu-me, rainha, estas palavras,
como querendo me abrasar nas chamas
da sua radiante santidade:
“Que ofensa contra ti hei cometido,
Kchatrya, eu, habitante das florestas,
para que recebesse a tua flecha,
quando no rio eu mergulhava a bilha
para que meu pai dessedentasse os lábios?
Os dois velhos, autores de meus dias,
sem um apoio nas desertas matas,
aguardam minha volta; pobres cegos!
De uma só vez, com uma flecha apenas,
três seres vitimaste: eu, a mãe terna,
e o pai! Por que? se nunca te ofenderam?
A virtude e a ciência não produzem
na terra fruto algum, segundo creio,
pois que meu pai não sabe que me matas!
E, dado que o soubesse, que faria,
ele que nada pode, porque é cego?
Assemelha-se a uma árvore sem força.
para amparar outra árvore arrancada
pela buída segura do lenheiro.
Vai, filho de Raghú, vai, sem detença,
ter com meu pai, e dá-lhe a fatal nova,
antes que a sua maldição te abrase,
bem como o fogo abrasa as secas urzes.
O atalho, que tu vês, leva ao retiro
onde habita meu pai! fala-lhe, abranda-o,
antes que te maldiga em sua cólera!
Mas… vem, arranca-me do seio a flecha:
este dardo, cravado no meu seio,
é, como um raio, ardente, e mal respiro.
Arranca-me este dardo; que eu não morra
com ele no meu peito. Eu não sou brahmane;
não te possuas do terror que inspira
o assassínio de um brahmane. É verdade
que de um brahmane, que erma neste bosque,
eu filho sou, mas minha mãe é çudra.”
Eis o que disse o moço, a minha vítima.
À vista deste pobre adolescente,
que, entre queixumes tais, se rebolcava
nas águas do Çarayo, despenhei-me
na mais estranha prostração de espírito;
e, alheado de mim, tirei a flecha
do extenuado seio do mancebo,
com um cuidado igual ao meu desejo
de conservar-lhe a vida. Mas apenas
o dardo se extraiu, o moço eremita,
exalando um suspiro entrecortado
por golfadas sangrentas, tremeu todo,
e estranhamente os olhos revolvendo,
exalou o suspiro derradeiro.
Quando o filho do santo anacoreta
expirou, abatendo a minha glória,
e a mim mesmo, fiquei-me consternado
à vista do incurável infortúnio.
Extraída que foi a seta ardente,
fatal como o veneno de uma serpe,
tomei a bilha, e dirigi os passos
para a mansão da asceta. Os pobres velhos,
lá estavam sozinhos, tristes, cegos,
sem ninguém que amparasse os desgraçados,
como dois pássaros que as asas perdem.
Aguardavam seu filho, e eram sentados,
falando dele aflitos, os dois velhos:
aqueles que eu ferira em sua prole
ansiavam a dita que seu filho
voltando lhes daria! Neste lance
é que eu, na consciência remordido,
achei ermando os pálidos ascetas!
O eremita, ouvindo passos junto dele,
diz: “Filho meu, porque tardaste tanto?
Traze-me a bilha já. Yaginadatta,
meu bom amigo, há tanto que te andavas
brincando na água! dava-nos cuidado,
à tua boa mãe e a mim, meu filho,
tão longa ausência. Se eu acaso ou ela
num momento sequer te magoámos,
perdoa, e nunca mais por tanto tempo
te detenhas no ponto aonde fores.
Não posso andar… tu és as minhas pernas;
não posso ver… tu és a minha vista:
esta minha existência em ti descansa!
Porque não falas tu!”
……………………………….A estas vozes,
lentamente abeirando-me do velho,
a quem o amor de pai tanto inspirava,
e com as mãos o peito comprimindo,
disse-lhe sufocado de soluços,
e numa voz tremente, balbuciante,
mas que a minha firmeza reanimava:
“Eu… um kchatrya sou, não sou teu filho;
meu nome é Daçaratha; e eis-me contigo,
depois de cometido infando crime,
de que a virtude tem horror e espanto.
Eu, santo asceta, havia demandado,
com o arco em punho, as margens do Çarayo,
por espreitar os animais bravios
que, da sede obrigados, ali fossem,
e que eu flechasse sem os ver. No entanto,
o estridor de uma bilha que se enchia
tocou-me o ouvido, despedi a flecha
e assassinei teu filho, imaginando
matar um elefante. Aos gritos dele,
tirados pela flecha que o varara,
corri trémulo ao ponto donde vinham,
e vi então um jovem penitente.
É certo que eu pensava, anacoreta,
ter em frente de mim um elefante,
e atirar a uma fera não a vendo,
quando cravou teu filho o férreo dardo.
Arranquei-lhe do seio a minha frecha,
e ele expirou, subindo ao céu; mas antes
havia lastimado longamente
a sorte de seus pais. Involuntário
foi o assassínio de teu filho amado…
Curvado assim ao peso desta culpa,
mereço contra mim a tua cólera.”
Nisto, ficou petrificado o velho;
mas logo após, recuperando alento,
estas palavras proferiu, enquanto
eu as mãos juntas conservava humilde:
“Se, criminoso de uma falta enorme,
tu m’a não confessasses espontâneo,
mesmo sobre teu povo cairia,
o castigo tremendo; e o meu anátema
havia de consumi-lo como o fogo!
Kchatrya, se soubesses que era eremita
aquele que matavas, esse crime
faria despenhar Brahma do trono,
que ele no entanto ocupa inabalável;
a sete descendentes e a outros tantos
dos teus maiores cerraria as portas,
oh mais vil dos mortais, o paraíso,
se consciência houvesses do teu ato.
Foi crime inconsciente; de outra sorte,
não viverias já, e a raça inteira
dos raghuidas havia de apagar-se,
tanto valor se prende à vida tua!
Vamos, cruel! conduze-me depressa
aonde assassinaste o infeliz moço
que era um bordão de cego, e que sabia
guiar minha cegueira. Eu quero ainda
tocar meu filho morto, se a existência
me não abandonar, antes que o abrace.
Quero, com minha esposa, tocar inda
o ensanguentado corpo de meu filho,
solto o djata e os cabelos em desordem;
corpo de que a alma resvalou agora
sob o poder de Yamá [o juiz dos mortos]”
……………………………….Guiei os cegos,
do íntimo abalados, a essa estância
e nela os dois esposos abraçaram
o estirado cadáver de seu filho.
Mal sustendo uma dor que os avergava,
ao tocarem apenas no cadáver
ergueram da alma doloroso grito,
caindo sobre o corpo ensanguentado.
O esmaiado semblante de seu filho
a mãe beijou, e desatou-se em prantos,
e em lamentos tão tristes, que lembravam
os da mãe do novilho, a que furtassem
a estremecida prole: “Yaginadatta,
dizia ela, não me queres tanto
como à própria existência? filho augusto,
por que não falas tu, quando te partes
para essa viagem que é tão longa?
Beija-me e partirás em me abraçando!
Já me não queres bem? por que não falas?”
O pai aflito, débil, alquebrado,
falou também como se vivo fosse
o filho a quem tocava os membros gélidos:
“Meu filho, não conheces minhas vozes,
nem as de tua mãe? ergue-te agora!
vem! em teus braços nos aperta a ambos!
De quem ouvirei eu nestes desertos
uma voz grata que me leia os Vêdas,
na noite próxima, com o mesmo empenho
que tinhas em saber os santos dogmas?
E quem, meu filho, levará dos bosques
à mansão nossa frutos e legumes,
sempre que a fome dominar os cegos?
E esta ceguinha, carregada de anos,
tua mãe, esta boa penitente,
como a sustentarei, eu que sou fraco,
que sou cego como ela e sem amparo?
Não queiras deixar hoje estas paragens;
amanhã, filho, partiremos todos.
Depressa a dor obrigará os velhos
a deixar esta vida pela morte:
a sentença, meu filho, está lavrada.
Apenas eu de Yamá entrar nos reinos,
infeliz pai, mendigarei eu mesmo;
para o filho do Sol levando os passos,
eu lhe direi, por ti acompanhado:
‘dá esmola a meu filho, ó deus dos mortos.’
Depois das santas orações da tarde,
depois de feita a matutina prece,
depois do banho e da oblação piedosa,
quem tocará meus pés com as mãos suas,
para enlevar-me em sensações tão gratas?
Ao mundo dos heróis que não regressam
sobe, meu filho, que és um inocente
vitimado à imprudência desumana.
Alcança o eterno mundo dos ascetas,
dos sacrificadores e dos brahmanes
que as funções de guru preencheram dignos;
o mundo destinado aos penitentes
que leram, linha a linha, os santos livros,
os Vêdas e os Vêdangas; e onde habitam
Yasti, Nahusha, e outros reis piedosos;
mundo aberto aos bons chefes de família
que nunca o sensual prazer procuram
longe dos braços da consorte amada;
seres modestos e almas generosas,
que a plenas mãos rebanhos distribuem,
e alimentos e terra aos deserdados.
Vai, meu filho, acompanho-te em espírito;
sobe ao eterno mundo aonde sobem
aqueles que firmaram entre os povos
a paz e a segurança, e cujo verbo
foi a voz da verdade. Almas eleitas,
que nascem numa casta como a tua,
à inferior condição não baixam nunca.
Expulso ora d’aqui, vai a esses mundos,
onde o mel em regatos serpenteia.”
Tanto que o solitário estes lamentos,
e outros inda, soltou com sua esposa,
triste cumpriu a cerimônia da água
em honra de seu filho.
………………………………Após instantes,
de uma celeste forma revestido,
e alçado num soberbo carro aéreo,
o filho apareceu do santo eremita,
e assim falou aos pais: “Em recompensa
do puro amor que vos sagrei, obtive
condição valiosa: dentro em pouco
sereis neste lugar tão anelado.
Não lastimeis do vosso filho a sorte,
nem crimineis o rei; era destino
que eu sucumbisse ao tiro do seu arco.”
Disse; e transfigurado em corpo aéreo,
erguido, entre esplendores, sobre um carro
de uma beleza extrema, sublimou-se
o filho do richi ao céu. E enquanto,
juntas as mãos, eu era ao pé do eremita,
que havia terminado com a esposa
a cerimônia da água em honra ao filho,
falou-me assim o santo penitente:
“Eu pasmo de que, sendo vil e fátuo,
tu contes por avós os ikshwakidas,
reis santos, gloriosos e magnânimos.
Entre nós jamais houve desavenças,
nem pleiteamos campos ou mulheres.
Sendo assim, por que a vida tu me roubas
e da consorte minha com teu arco?
Mas já que és inocente no teu erro,
não te maldigo, mas atento escuta:
Assim como chegou para meus dias
inesperado termo, pelas mágoas
que me instilou a perda de meu filho,
assim, ao cabo da carreira tua,
hás de deixar a vida pesaroso,
e chamarás debalde por teu filho.”
Debaixo deste anátema pesado,
voltei para cidade. Dentro em pouco,
à sua dor o asceta sucumbia,
àquela tão violenta dor paterna.
A maldição do brahmane por certo
se cumpre agora em mim: pois os pesares
e as saudades que tenho de meu filho,
a seu termo conduzem minha vida.
Os meus olhos, rainha, não veem nada,
mesmo as ideias vão-se-me apagando:
são estes, dama ilustre, os mensageiros
da fatal morte, que me apressa a marcha.
Se viesse a mim Ramá, ou se eu apenas
ouvisse a sua voz, eu reaveria
a minha força, como um moribundo
que ambrosia bebesse. Esta saudade,
filha da sua ausência, estala os elos
da minha vida, como a onda rasga
a ramaria umbrosa que crescera
de um rio sobre as margens. Venturosos
os que, ao termo do exilio de meu filho,
passado nas florestas, Ramá virem
voltar para Ayodhya, como Indra
descendo lá do céu. Não serão homens
mas verdadeiros deuses os que um dia,
quando à cidade ele voltar dos ermos,
a sua face bela contemplarem,
tão resplendente como a lua cheia.
Oh venturosos vós, que assim poderdes
ver a face a Ramá, a augusta face,
semelhante à rainha das estrelas,
e graciosa e bela, de alvos dentes,
e de olhos como as pétalas do lodam.
Felizes os mortais, que de meu filho
virem a face augusta, cujo hálito
é igual ao perfume que rescendem
as pétalas do lodam, pelo outono.