A composição na pintura

Das notas soltas de Leonardo da Vinci, publicadas depois de sua morte com o nome de Tratado da Pintura. Século XVI depois de Cristo.

 

Como se representa uma tempestade

Para formar uma ideia justa duma tempestade, devemos considerar atentamente os seus efeitos. Quando o vento sopra violentamente por sobre o mar ou a terra, desloca e leva consigo tudo o que não está firmemente fixo à massa geral. As nuvens devem parecer dispersas e rotas, arrastadas na direção e conforme a força do vento, e confundidas com nuvens de areia que se levantam da praia; devem representar-se ramos e folhas de árvores, como impelidas pela violência do vento, juntamente com outras inúmeras e leves substâncias, espalhadas no ar. As árvores e erva devem estar curvadas para o chão, como que cedendo à carreira do vento. Os ramos devem estar torcidos fora do seu natural, com as folhas voltadas e emaranhadas. Quanto às figuras dispersas na pintura, devem algumas aparecer arrojadas ao chão, tão envolvidas nos seus mantos e cobertas de pó que mal se possam distinguir. Das que fiquem de pé, umas devem estar abrigadas e segurando-se com força por detrás de algumas grandes árvores, para escaparem à mesma sorte; outras inclinadas para o chão, protegendo a cara do pó, com as mãos, os cabelos e roupas voando para o ar à mercê do vento.

As grandes e tremendas vagas do mar tempestuoso devem estar cobertas de espuma, cujas partes mais tênues sejam levadas pelo vento, como se fossem uma nevoa intensa, misturada com o ar.

Os navios que se vejam, devem ser representados com o cordame arrebentado e as velas rotas. Uns com mastros partidos, derrubados e o casco todo adornado entre as vagas alterosas. Parte da tripulação aparecerá como clamando em alto grito por socorro e agarrada aos restos do desmantelado navio. As nuvens parecerão atiradas por tempestuosos ventos de encontro aos cumes de altas montanhas, envolvendo-as, quebrando-se como as ondas contra uma costa de rochedos. A atmosfera será representada medonhamente obscurecida pelo nevoeiro, pelo pó e pelas grossas nuvens.

 

Como compor uma batalha

Primeiro a atmosfera deverá apresentar uma mistura confusa de fumo proveniente das descargas de artilharia e mosquetaria, e do pó levantado pelos cavalos dos combatentes; observaremos que o pó, que sobe da terra, é pesado, mas no entretanto, em razão das suas ínfimas partículas, é facilmente impelido para cima e misturado com o ar ; apesar disso, cai naturalmente de novo e só as suas partes mais sutis é que alcançam alguma considerável altitude, tornando-se na parte mais alta, tão fino e transparente, que quase parece da cor da atmosfera.

O fumo assim misturado com a atmosfera cheia de pó, forma uma espécie de nuvem negra, no cimo da qual ele se destaca do pó, por uma expressão azulada, pois o pó conserva mais a sua cor natural. Do lado de onde vem a luz, esta mistura de ar, fumo e pó, parecerá muito mais brilhante do que do lado oposto.

Quanto mais envolvidos estiverem os combatentes neste tumultuoso nevoeiro, menos distintamente visíveis serão, e as suas luzes e sombras serão mais confusas. Tinjamos duma cor avermelhada, os rostos e os corpos dos mosqueteiros e todos os objetos próximos, mesmo a atmosfera ou uma nuvem de pó; em resumo tudo quanto os rodear. Esta tinta avermelhada irá desvanecendo à medida que os objetos estiverem afastados da causa inicial.

O grupo de figuras que aparece a certa distância entre o espectador e a luz, formará uma massa escura sobre um fundo claro; e as suas pernas serão tanto mais indecisas e obscuras quanto mais próximo do solo, onde o pó é mais pesado e denso.

Se quisermos representar alguns cavalos perdidos, galopando fora do corpo principal, introduziremos também uns pequenos rolos de pó, tão separados uns dos outros como os saltos do cavalo, e estes pequenos rolos ir-se-ão tornando mais fracos, raros e desvanecidos, à proporção que o cavalo, os vai deixando para trás. Por consequência aquele que estiver mais perto dos pés do cavalo, será o melhor determinado, mais pequeno e mais denso de todos.

A atmosfera deverá apresentar-se atravessada em todas as direções por frechas; umas subindo, outras descendo e outras voando horizontais. As balas dos mosquetes, conquanto não se vejam, serão indicadas na sua trajetória por um rasto de fumo, que se destaca dentre a confusão geral. As figuras no primeiro plano deverão ter os cabelos cobertos de pó, assim como as sobrancelhas e todas as partes suscetíveis de o reter.

O partido vencedor, correrá para a frente, os cabelos e coisas leves voando ao vento, as sobrancelhas carregadas e o movimento de todos os membros propriamente combinado ; por exemplo ao avançar o pé direito, o braço esquerdo deverá vir à frente também. Se quisermos representar algum deles caído, marcaremos o vestígio da queda no pó coberto de sangue coalhado e escorregadio; e onde a terra estiver menos impregnada de sangue, deixaremos ver os sinais dos pés dos homens e cavalos que por ali passaram. Representaremos alguns cavalos arrastando os corpos dos seus cavaleiros, e deixando atrás de si um sulco aberto pelo corpo assim rojado.

As fisionomias dos que vão sendo vencidos deverão aparecer pálidas e abatidas. As sobrancelhas levantadas e muitas rugas pela testa e pelas faces. As suas narinas um pouco dilatadas, formando várias rugas arqueadas terminando nos cantos dos olhos, rugas que são produzidas pelo abrir e levantar das narinas. O lábio de cima levantado deixando ver os dentes. As bocas todas abertas e exprimindo violentas lamentações. Poderá um ficar caído no chão ferido, esforçando-se por amparar o corpo com uma e tapando os olhos com a outra, de palma voltada para o lado do inimigo. Outros fugindo e com as bocas abertas parecendo gritar. Por entre as pernas dos combatentes o chão deve estar juncado de toda a qualidade de armas como escudos partidos, lanças, espadas, etc. Deveremos apresentar diversos cadáveres, uns completamente cobertos de pó, outros só em parte; o sangue que parece sair imediatamente da ferida, deverá ter a sua cor natural e escorrer num fio tortuoso até que, misturando-se com o pó, forme uma espécie de lama avermelhada. Alguns poderão estar na agonia da morte; os dentes cerrados, os olhos desvairadamente fitos, os punhos fechados e as pernas em contorcidas posições. Outros aparecerão desanimados e batidos pelo inimigo, mas ainda lutando a murro e a dentes, e procurando tirar uma terrível ainda que inútil desforra. Poder-se-á também representar um cavalo perdido sem cavaleiro, fugindo em desordenada aflição; a crina voando ao vento, pisando debaixo das patas tudo o que lhe aparece na frente e causando imenso mal. Poder-se-á também pintar um soldado ferido, meio caído no chão e tentando cobrir-se com o escudo, enquanto um contrário inclinado sobre ele procura dar-lhe o golpe final. Vários cadáveres amontoar-se-ão debaixo dum cavalo morto. Alguns dos vencedores, como que parando de combater, estarão limpando a cara do pó misturado com o suor e água dos olhos.

O corpo de reserva representar-se-á avançando alegre mas cautelosamente, as sobrancelhas contraídas, fazendo as mãos de aba para observar os movimentos do inimigo, por entre as nuvens de pó e fumo e parecendo todos atentos às ordens do comandante. Poderemos também representar o comandante, brandindo o seu bastão, avançando e apontando para o lugar aonde se precisa deles. Pode-se também introduzir um ribeiro com cavalos a atravessá-lo, chapinhando a água para o ar, e cobrindo toda a terra em volta de água e espuma. Não se deve deixar um só lugar sem sinal de sangue e carnificina.

 

Representação dum orador e do seu auditório

Se tivermos de representar um homem a falar a uma grande assembleia, teremos de considerar o assunto do discurso e adaptar a sua atitude a esse assunto.

Se o orador pretende convencer é preciso demonstrá-lo pelo gesto. Se estiver dando uma explicação deduzida de diversos factos, deverá meter um dedo da mão esquerda entre dois da direita, e conservar os dois encolhidos, e voltar a cara para o auditório com a boca entreaberta parecendo falar. Se estiver sentado deverá parecer que vai se levantar um pouco, e ter a cabeça inclinada para a frente.

Mas se for representado de pé, terá o peito e a cabeça inclinada para a frente, para o lado do auditório. Este deverá parecer silencioso, atento, com os olhos fitos no orador em sinal de admiração. Deverá haver alguns velhos com as bocas muito fechadas em sinal de aprovação e os lábios apertados de maneira a fazerem rugas nos cantos da boca e nas bochechas, e na testa ao levantar as sobrancelhas, como que assombrados de espanto. Uns sentados, com as mãos entrelaçadas em volta dos joelhos; outros com uma perna por cima da outra e sobre ela uma mão suportando o cotovelo, e a outra segurando o queixo, coberto de barba venerável.

 

Dos gestos demonstrativos

A ação pela qual uma figura indica qualquer ponto próximo, quer no sentido de tempo quer na situação, deve ser expressa pela mão ligeiramente afastada do corpo. Mas se esse mesmo ponto estiver muito afastado, a mão deve também estar muito retirada do corpo e a cara da figura voltada para aqueles a quem o está apontando.

 

Sobre a atitude dos circunstantes perante algum acontecimento sensacional

Todos aqueles que assistem a um acontecimento digno de menção exprimem a sua admiração, mas de diferentes maneiras como quando a mão da justiça pune um malfeitor. Se o assunto for um ato de devoção, os olhares de todos os presentes estarão fitos na direção do objeto da sua adoração, secundados por vários movimentos de piedade feitos com os outros membros.

Se for um caso para rir ou então um caso que inspire compaixão e provoque lágrimas, não será necessário que todos tenham os olhos voltados para o objeto, pois exprimirão os seus sentimentos de diversas maneiras; e será bom apresentar diversas figuras reunidas em grupos a fim do e regozijarem ou lamentarem juntas. Se for um acontecimento horrível, os rostos dos que vão fugindo a tal vista exprimirão um grande medo, por meio de vários movimentos, que serão explicados no tratado sobre movimentos.

 

Tradução atualizada da série Biblioteca Internacional, Volume IX.