Vozes sobre a moralidade na ‘Enciclopédia’ de Diderot e d’Alembert

Da Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios. Paris, 1783 d.C.

Tradução: Maria das Graças de Souza. Editora Unesp. Volume 5: Sociedade e artes.

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Honestidade (Moral)

Jaucourt [8, 287]

Honestidade é pureza de costumes, de postura e de palavras. Cícero a definia como uma sábia conduta em que as ações, as maneiras e os discursos correspondem ao que somos e ao que devemos ser. Ele não a colocava no nível dos modos, mas das virtudes e dos deveres, por ela ser um deles, fonte de exemplos da prática de todo o bem. Simples omissões nos usos aceitos do decoro, que dizem respeito apenas ao tempo, aos lugares e às pessoas, não passam de aparência da honestidade. Embora demande regularidade das ações exteriores, ela é fundada sobretudo nos sentimentos interiores da alma. Se o drapejamento na pintura produz um dos grandes ornamentos da tela, sabe-se que seu principal mérito é o de deixar entrever o nu, sem disfarçar as junções e as marcas. As vestimentas devem sempre estar de acordo com o caráter do assunto que querem imitar. Assim, a honestidade consiste 1) em nada fazer que não traga consigo o caráter da bondade, da retidão e da sinceridade, eis o ponto principal; 2) em nada fazer, mesmo que a lei natural permita ou ordene, a não ser da maneira e com as reservas prescritas pela decência. Para o que concerne à honestidade considerada no direito natural, vide Honesto.

(TK)

Humanidade (Moral)

Diderot [8, 348]

Humanidade é um sentimento de benevolência por todos os homens que somente se inflama numa alma grande e sensível. Esse nobre e sublime entusiasmo atormenta-se com os sofrimentos dos outros e a necessidade de aliviá-los; desejaria percorrer o universo para abolir a escravidão, a superstição, o vício e o mal.

Ele esconde-nos os erros de nossos semelhantes ou nos impede de sentidos. Mas nos torna severos para com os crimes: arranca das mãos do celerado a arma que seria funesta ao homem de bem. O que ele faz não é nos afastar de elos particulares, mas, ao contrário, torna-nos amigos melhores, cidadãos melhores, esposos melhores. Ele se apraz em expandir-se pela benevolência em relação aos seres que a natureza aproximou de nós. Vi essa virtude, fonte de tantas outras, em muitas cabeças e em poucos corações.

(TK)

Indecente (Gramática, Moral)

Diderot [8, 667]

Indecente, que é contra o dever, o decoro e a honestidade. Uma das principais marcas de uma bela alma é o sentimento da decência. Quando levado à extrema delicadeza, a nuance se dissemina, sobretudo sobre as ações, os discursos, os escritos, o silêncio, o gesto, a postura; dá relevo ao mérito distinto; disfarça a mediocridade; embeleza a virtude; dá graça à ignorância.

A indecência produz efeitos contrários. Perdoam-se os homens quando ela é acompanhada de uma certa originalidade de caráter, de uma alegria particular e cínica, que os coloca acima dos costumes; nas mulheres, é in¬ suportável. Uma bela mulher indecente é uma espécie de monstro, que eu me sentiria à vontade para comparar a um cordeiro feroz. Não é algo que se queira encontrar. Há profissões das quais não se ousa exigir a decência: o anatomista, o médico, a parteira, são indecentes sem consequência. É a presença das mulheres que torna a sociedade dos homens decente. Homens sozinhos são menos decentes. Mulheres são menos decentes entre si do que com os homens. Quase não há vício que não leve a alguma ação indecente. É raro que o vicioso receie parecer indecente. Acredita-se afortunado quando não tem senão essa barreira a vencer. Há uma indecência particular e doméstica; há outra geral e pública. Nós a ferimos, talvez, todas as vezes que, arrastados por um gosto imponderado pela verdade, não somos suficiente¬ mente indulgentes para com os erros públicos. O luxo de um cidadão pode se tornar indecente em tempos de calamidade, e não se mostrar sem insultar a miséria de uma nação. Seria indecente regozijar-se de um sucesso particular no momento de uma aflição pública. Como a decência consiste numa atenção escrupulosa em relação a circunstâncias delicadas e minuciosas, ela quase desaparece no transporte das grandes paixões. Uma mãe que perde o filho não percebe a desordem de suas vestimentas. Uma mulher terna e apaixonada que, devido à inclinação de seu coração, a perturbação de seu espírito e a embriaguez de seus sentidos, abandona-se ao ímpeto dos desejos de seu amante, seria ridícula se se lembrasse de ser decente no instante em que se esqueceu considerações mais importantes. Ela voltou ao estado de natureza: segue suas impressões, que controlam seus movimentos. Passado o momento do transporte, a decência renasce e, se é que ela ainda suspira, seus suspiros serão decentes.

(TK)

Indolência (Moral)

Diderot [8, 686]

Indolência é uma privação de sensibilidade moral. O homem indolente não é tocado nem pela glória, nem pela reputação, nem pela fortuna, nem por laços de sangue, nem por amizade, nem pelo amor, nem pelas artes, nem pela natureza. Ele goza de seu repouso, que ele ama, e é isso o que distingue sua indiferença da inquietude, bem como do tédio. A essa tranquila destruidora, dos talentos, dos prazeres e das virtudes, levam-nos os pretensos sábios, que atacam incessantemente as paixões. Esse estado de indolência é bem próximo do estado natural do homem selvagem e, talvez, do estado de um espírito desenvolvido, que tudo viu e tudo comparou.

(TK)

Vício (Direito Natural, Moral)

Jaucourt, Diderot [17, 235]

Vício é tudo o que é contrário às leis naturais e aos deveres.

Como o fundamento do erro consiste nas falsas medidas de probabilidade, o fundamento do vício consiste nas falsas medidas do bem; e como esse bem é maior ou menor, os vícios são mais ou menos reprováveis. Entre eles há os que podem ser, por assim dizer, compensados, ou pelo menos ocultados sob o clarão das grandes e brilhantes qualidades. Conta-se que, certo dia, Henrique IV perguntou a um embaixador da Espanha: que amante tinha o rei, seu mestre? O embaixador lhe respondeu, num tom pedante, que seu mestre era um príncipe que temia a Deus e que não possuía outra amante a não ser a rainha. Henrique IV, que percebeu essa censura, retrucou-lhe, corn ar de desprezo, perguntando se seu mestre possuía bastante virtude para cobrir um vício.

Os vícios que podem ser assim ocultados ou encobertos devem provir mais do temperamento e do caráter natural que do moral; devem ser ao mesmo tempo desvios acidentais, paixões, surpresas do homem. Nas raras vezes que chegam, passam rápido e podem ser ocultados como manchas no sol, mas nem por isso deixam de ser manchas. Se não os corrigimos, cessam de ser manchas e espalham-se como sombra geral e obscurecem a luz que outrora os absorvia.

Vede em Racine como Hipólito responde a seu governante (ato I, cena I). É um trecho que não se deixa de admirar. Diz a Terâmeno que sua alma se aquecia com as narrativas das nobres explorações de seu pai quando contava esta história. Mas, continua ele, quando me falavas de fatos menos gloriosos, “Ariadne nos rochedos confessando seus erros; E finalmente Fedra, raptada com intenções melhores. Tu sabes que, por não me agradarem nada essas histórias, Eu te pedia então que as encurtasses. Pois ficaria feliz se pudesse rasgar da memória Essa metade indigna de uma vida tão bela! E agora eu também me deixaria arrastar? Os deuses levariam minha humilhação a esse ponto? Os meus suspiros vis seriam ainda mais desprezíveis Pois os feitos heróicos tornam Teseu desculpável. Não dominei um só dos monstros Com que ganhei o direito de errar.” [Tradução de Millôr Fernandes, cf. Racine, Jean. Fedra. Porto Alegre: L&PM, 1986, p.2I.]

As falhas que encontramos na vida dos grandes homens são como essas pequenas sardas que algumas vezes se encontram num belo rosto; elas não o tornam mais feio, mas o impedem de possuir uma beleza perfeita. Sendo assim, que devemos pensar dessas pessoas que são inteiramente cobertas de manchas viciosas? Eu teria cem coisas a dizer sobre isso segundo os moralistas, mas contento-me em me reportar a uma única reflexão de Montaigne, homem do mundo, em quem podemos acreditar nesses assuntos. Essa reflexão está no Livro III, Capítulo 2 de seus Ensaios.

“Não existe vício”, diz ele, “verdadeiramente vício que não ofenda e que um juízo íntegro não acuse: pois ele possui fealdade e incômodo tão apa¬ rentes quanto têm razão aqueles que, ao acaso, dizem que ele é produzido principalmente por estúpida ignorância, tanto é difícil de imaginar quanto conhecê-lo sem odiá-lo. A malícia aspira a maior parte de sua própria peçonha e se envenena com ela. O vício deixa uma espécie de úlcera na carne, um arrependimento na alma que sempre fere e sangra por si só.”

(Jaucourt)

O uso estabeleceu a diferença entre um erro e um vício; todo vício é erro, mas nem todo erro é um vício. No homem que possui um vício, supomos uma liberdade que o torna culpado a nossos olhos; o erro normalmente diz respeito à natureza; desculpa-se o homem, acusa-se a natureza. Quando discute tais distinções com uma exatidão bem escrupulosa, a Filosofia constata invariavelmente que elas são desprovidas de sentido. Numa palavra, consegue um homem dominar-se para não ser pusilânime, voluptuoso, colérico, mais do que para não ser vesgo, corcunda ou beberrão? Quanto mais concordamos com a organização, com a educação, com os costumes nacionais, com o clima, com as circunstâncias que dispuseram nossa vida desde o instante em que fomos lançados do seio da natureza até este em que existimos, menos podemos nos vangloriar das boas qualidades que possuímos e que tão pouco devemos a nós mesmos, mais indulgentes somos com relação aos erros e vícios dos outros, mais circunspectos no emprego das palavras vicioso e virtuoso, que nunca pronunciamos sem amor ou ódio, e mais nos inclinamos no sentido de substituir essas palavras por malnascido e bem-nascido, sempre acompanhadas pelo sentimento de comiseração. Tendes piedade de um cego; e o que é um malvado senão um homem que tem a vista curta e que não enxerga para além do momento em que age?

(Diderot)

Inquietude (Gramática, Moral)

Diderot [8, 773]

Agitação da alma que tem múltiplas causas. Quando se torna habitual, a inquietude costuma ser encontrada em homens cujos deveres, cuja situação ou fortuna contrariam o instinto, os gostos, os talentos. Sentem com frequência a necessidade de fazer outra coisa que não o que estão fazendo. No amor, na ambição, na amizade, a inquietude é quase sempre efeito do descontentamento consigo mesmo, da dúvida em relação a si mesmo e do preço altíssimo que se atribui à posse de sua senhora, de um lugar, de seu amigo. Há outro gênero de inquietude, que é efeito do tédio, da necessidade, das paixões, do desgosto. Há também uma inquietude do remorso.

(PPP)