As aventuras de Ishtar – a deusa do submundo encontra a Rainha do Sexo

A filha de Sin, deusa do sexo, da fertilidade, do amor, do poder e da guerra, desce ao País das Sombras.

 

De um tablete entalhado na Acádia, Mesopotâmia, por volta do século XXII a.C.

 

Fronte

Para a Terra sem Volta, o reino [da Rainha Ershkigal],
Ishtar, a filha de Sin, [voltou] seu espírito.
Sim, a filha de Sin, [voltou] seu espírito
À casa tenebrosa, a morada de Irkal[la],
Para a casa onde ninguém que entrou sai,
Para a estrada da qual não há retorno,
Para a casa onde a luz é arrebatada a quem entra,
Onde o pó é seu destino e o barro seu alimento,
[Onde] não chega a luz, morando na escuridão,
[Onde] estão revestidos como pássaros, com asas por indumento,
[E onde] a porta e seu ferrolho estão cobertos de pó.

Quando Ishtar chegou ao portão da Terra sem Volta,
Ela disse [estas] palavras ao guardião:
“Ó guardião, abre o portão,
Abre o teu portão para que eu entre!
Se não abrires o portão, arrebentarei o ferrolho,
Destroçarei o batente, arrombarei as portas,
Erguerei os mortos para que devorem os vivos,
Para que a multidão dos mortos ultrapasse a dos vivos.”
O guardião abriu sua boca para falar,
Dizendo à exaltada Ishtar:
“Pare, senhora, não destruas [o portão]!
Eu anunciarei teu nome à Rainha E[reshk]igal.“
O guardião entrou, dizendo [a] Eresh[kigal]:
“Senhora, tua irmã Ishtar espera [nos portões],
Ela que inspira os grandes festivais,
Que agita as profundezas ante Ea, o r[ei].”
Quando Ereshkigal ouviu isso,
Empalideceu como uma flor de tamarisco,
Enquanto seus lábios escureceram como um caniço queimado.
“O que a traz a mim? O que impele o seu espírito até nós?
Ah, acaso devo beber água com os Anunnaki [os espíritos da terra]?
Deveria comer barro como pão, beber água lamacenta como cerveja?
Deveria lamentar os homens que deixaram suas esposas para trás?
Deveria lamentar as donzelas que foram arrancadas dos regaços de seus amados
[Ou] deveria lamentar o terno bebezinho que foi enviado antes da sua hora?
Vai, guardião, abre o portão para ela,
Trata-a conforme as antigas leis.”
O guardião foi e abriu a porta para ela:
“Entra, minha senhora, que [a Cidade de] Cutha se regozije ao ver-te,
Que o palácio da Terra sem Volta alegre-se à tua presença.”
Quando ela entrou pela primeira porta,
Ele tirou a grande coroa de sua cabeça e a deitou por terra.
“Por que, ó guardião, tomaste a grande coroa de minha cabeça?”
“Entra, minha senhora, estas são as leis da Dama do Submundo.”
Quando ela entrou pela segunda porta,
Ele tirou os brincos de suas orelhas e os deitou por terra.
“Por que, ó guardião, tomaste os brincos de minhas orelhas?”
“Entra, minha senhora, estas são as leis da Dama do Submundo.”
Quando ela entrou pela terceira porta,
Ele tirou o colar de seu pescoço e o deitou por terra.
“Por que, ó guardião, tomaste o colar em meu pescoço?
“Entra, minha senhora, estas são as leis da Dama do Submundo.”
Quando ela entrou pela quarta porta,
Ele tirou os ornamentos sobre seus seios e os deitou por terra.
“Por que, ó guardião, tomaste os ornamentos sobre meus seios?
“Entra, minha senhora, estas são as leis da Dama do Submundo.”
Quando entrou pela a quinta porta,
Ele tirou a guirlanda de joias de sua cintura e a deitou por terra.
“Por que, ó guardião, tomaste a guirlanda de joias de minha cintura?
“Entra, minha senhora, estas são as leis da Dama do Submundo.”
Quando ela entrou pela sexta porta,
Ele tirou as pulseiras de suas mãos e pés e as deitou por terra.
“Por que, ó guardião, tomaste as pulseiras de minhas mãos e pés?
“Entra, minha senhora, estas são as leis da Dama do Submundo.”
Quando ela entrou pela sétima porta,
Ele tirou o vestido sobre seu corpo e o deitou por terra.
“Por que, ó guardião, tomaste o vestido sobre meu corpo?”
“Entra, minha senhora, estas são as leis da Dama do Submundo.”
Tão logo Ishtar desceu à Terra sem Volta,
Ereshkigal a viu e se enfureceu à sua presença.
Ishtar, sem pensar, se lançou contra ela.
Ereshkigal abriu sua boca para falar,
Dizendo [estas] palavras a Namtar, seu servidor:
“Vai, Namtar, prende-a [em] minha [fortaleza]!
Desencadeia sobre ela, [contra] Ishtar, minhas seis [pestilências]:
Miséria dos olhos [contra] seus [olhos]
Miséria do ventre [contra] seu [ventre],
Miséria do coração [contra seu coração],
Miséria dos pés [contra] seus [pés],
Miséria da cabeça [contra a sua cabeça] –
Contra todos os seus membros, contra o seu corpo inteiro!”
Depois que a Senhora Ishtar [desceu ao submundo],
O touro já não possuía mais a vaca, [nem o jumento a jumenta],
Nas ruas o homem já não tocava a mulher.
O homem deitava [em seu próprio quarto
E a mulher no seu].

 

Verso

O semblante de Papsukkal, o servidor dos grandes deuses,
Estava abatido, sua face estava [nebulosa].
Ele estava em vestes de luto, seu cabelo crescera.
Papsukkal foi a Sin, seu pai, em prantos,
[Suas] lágrimas corriam ante Ea, o rei:
“Ishtar desceu ao submundo, ela não retornou.
Desde que Ishtar foi à Terra sem Volta,
O touro já não possui a vaca, nem o jumento a jumenta,
Nas ruas o homem já não toca a mulher.
O homem deita em seu próprio quarto
E a mulher no seu.”
Ea em seu coração sábio concebeu uma imagem,
E criou Asushunamir, um eunuco [belíssimo]:
“Ergue-te, Asushunamir, volta teu rosto para os portões da Terra sem Volta;
As sete portas da Terra sem Volta serão abertas por ti.
Ereshkigal te verá e se regozijará em tua presença.
Quando seu coração estiver serenado, quando estiver de bom humor,
Faça-a proclamar o juramento dos grandes deuses.
[Então] ergue tua cabeça, aponta a bilha da água da vida [e diz]:
“Rogo-te, Senhora, que me deem a bilha da água da vida para que eu possa beber a sua água.”
Logo que Ereshkigal ouviu isso,
Bateu em seu peito, mordeu seu polegar!
“Pedes-me algo que não deveria ser pedido.
Vem, Asushunamir, eu o amaldiçoarei com uma poderosa maldição!
Os restos das sarjetas da cidade serão a tua comida,
O esgoto da cidade será a tua bebida.
A sombra da muralha será o teu posto,
O limiar será tua morada,
Os embriagados e os sedentos darão tapas no seu rosto!”
Ereshkigal abriu sua boca para falar,
Dizendo [estas] palavras a Namtar, seu servidor:
“Vai, Namtar, bate à porta de Egalgina [o Palácio da Justiça],
Adorna seus limiares com pedra coral,
Desperta os Anunnaki e senta-os em tronos de ouro,
Borrifa Ishtar com a água da vida e leva-a para longe de mim!”
Namtar foi, bateu na porta de Egalgina,
Adornou os limiares com pedra coral,
Despertou os Anunnaki, sentou-os em tronos de ouro,
Borrifou Ishtar com a água da vida e levou-a para longe.
Quando ela saiu pela primeira porta,
Ele lhe devolveu o vestido para o seu corpo.
Quando ela saiu pela segunda porta,
Ele lhe devolveu as pulseiras para suas mãos e pés.
Quando ela saiu pela terceira porta,
Ele lhe devolveu a guirlanda de joias para sua cintura.
Quando ela saiu pela quarta porta,
Ele lhe devolveu os ornamentos para os seus seios.
Quando ela saiu pela quinta porta,
Ele lhe devolveu o colar para o seu pescoço.
Quando ela saiu pela sexta porta,
Ele lhe devolveu os brincos para suas orelhas.
Quando ela saiu pela sétima porta,
Ele lhe devolveu a grande coroa para a sua cabeça.
[E Ereshkigal disse a Namtar:] “Se ela não te der o preço de seu resgate, traze-a de volta.”