Tristão louco e Isolda, a Loura das Brancas Mãos

Capítulo XVIII do Romance de Tristão e Isolda reconstituído por Joseph Bédier em 1900 d.C.

Tradução de Luís Claudio de Castro e Costa (Martins Fontes) 

As primeiras notícias da lenda de Tristão e Isolda remontam ao século XI. Embora alguns estudiosos sugiram origens persas, supostamente absorvidas por menestréis que à época das Cruzadas teriam frequentado as cortes sírias e os campos dos inimigos sarracenos, a tradição oral muito possivelmente nasce entre os povos celtas, em especial os bretões já parcialmente romanizados. O maior indício disso é a chamada “Pedra de Tristão” datada do século VI, um menir de 2,7 metros de altura encontrado em Cornwall (ou Cornuália), no sudoeste da atual Inglaterra, contendo a seguinte inscrição em duas linhas: DRUSTANUS HIC IACIT CUNAMORI FILIUS “Drustanus aqui jaz, o filho de Cunamorus”. Segundo o testemunho de um antiquário do século XVI, uma terceira linha, sabidamente perdida ao longo das diversas transposições da lápide, diria CUM DOMINA OUSILLA “com a senhora Ousilla”, sendo Ousilla uma latinização do nome bretão Eselt, conhecido por nós como Isolda.       

Dentre as várias tradições da estória, há duas principais. A mais antiga está registrada pelos romances em verso de dois poetas franceses de meados do século XII, Tomás da Bretanha e o normando Béroul. A mais recente tem raízes numa matriz em prosa da metade do século XIII que logo se transformou na versão padrão no mundo medieval tardio e, entre outras coisas, consolidou a incorporação de Tristão aos cavaleiros da Távola Redonda do Rei Artur. Atualmente possuímos apenas fragmentos dessas e outras fontes. Embora as variações do enredo sejam muitas, os contornos principais se mantêm.

Após derrotar o rei irlandês Morholt, Tristão viaja à Irlanda para escoltar a princesa Isolda, a Loura, ao seu tio Marc, rei de Cornwall, a fim de selar a união entre os dois reinos com um casamento. No barco, Brangien, a ama de Isolda, leva consigo uma poção do amor, supostamente preparada para que fosse tomada com Marc, mas que Isolda bebe – acidentalmente, em algumas versões, e por uma maquinação da criada, em outras – com Tristão. Os dois se apaixonam terrivelmente, mas a missão se cumpre e Isolda se casa com Marc. Os três amam-se sinceramente entre si. Tristão honra, respeita e ama o rei Marc como seu mentor e pai adotivo; Isolda é grata a Marc que é gentil com ela; e Marc ama Tristão como seu filho e Isolda como sua esposa. Mas todas as noites cada um tem sonhos terríveis sobre o futuro, e o poder da magia constrange os dois jovens, apesar do horror ao adultério, a buscarem um ou outro. Na maior parte das versões o encantamento dura por toda a vida, embora em outras, como no poema de Béroul, o efeito da poção desapareça após três anos, quando os amantes se veem livres para decidir o seu futuro. Finalmente o rei descobre a traição que não só arrasa seu coração mas põe em risco a paz entre a Cornuália e a Irlanda. Os dois são condenados, Tristão ao enforcamento e Isolda incialmente à fogueira e depois à clausura numa colônia de leprosos. Tristão consegue escapar, resgata miraculosamente Isolda e ambos se refugiam numa floresta. De lá fazem um pacto com Marc, pelo qual Tristão se compromete a devolver Isolda e a deixar a Cornuália. Ele parte para Carhaix, na Bretanha, onde encontra seu amigo, Sir Kahedin, filho do Duque de Hoël e irmão da princesa conhecida como Isolda das Brancas Mãos, com quem Tristão acabará por se casar.

Os desfechos do romance também variam. No Tristão em Prosa e suas ramificações, o rei Marc flagra o sobrinho tocando harpa para Isolda e o fere mortalmente com uma lança envenenada. As versões em verso cultivadas nas cortes trazem outros relatos. No poema de Tomás da Bretanha, Tristão é atingido pela lança envenenada ao resgatar uma donzela de seis cavaleiros. Então ele envia Kahedin à Cornuália para buscar Isolda, a única pessoa capaz de curá-lo. Os amigos estabelecem um código segundo o qual Kahedin içaria velas brancas se retornasse com Isolda e, no caso contrário, velas negras. Isolda concorda em acompanhar Kahedin, mas a esposa de Tristão descobre a trama e, possuída pelo ciúme, mente para o marido sobre a cor das velas. Tristão morre de amargura e Isolda, ao chegar, debruça-se sobre o cadáver desfazendo-se em prantos até morrer.

Em 1900 o medievalista francês Joseph Bédier recolheu os diversos fragmentos à disposição e se propôs a realizar um trabalho de mosaicista reconstituindo a história narrada num hipotético poema originário, supostamente a raiz de todas as ramificações da lenda. O resultado foi o seu Romance de Tristão e Isolda em prosa. O capítulo a seguir é o penúltimo, quando Tristão, após mais uma desventura com Isolda, a Loura, retorna ao lar junto à sua mulher, Isolda das Brancas Mãos.   

 

Tristão voltou a ver a Bretanha, Carhaix, o duque Hoël e sua esposa Isolda das Brancas Mãos. Todos deram-lhe boa acolhida, mas Isolda, a Loura, escorraçara-o: só isso lhe importava agora. Durante muito tempo, ele padeceu longe dela. Depois, certo dia, imaginou que queria revê-la, mesmo que ela mandasse seus esbirros e criados espancarem-no da maneira mais vil. Longe dela, sabia que sua morte era certa e estava próxima. Era melhor morrer de uma vez do que lentamente, a cada dia! Quem vive sofrendo dor é tal qual um morto. Tristão desejava a morte, queria a morte: mas que a rainha soubesse pelo menos que ele perecera por amor a ela. Se ela o soubesse, ele morreria mais docemente.

Foi-se de Carhaix sem avisar ninguém, nem seus amigos, nem mesmo Kaherdin, seu querido companheiro. Partiu vestido miseravelmente, a pé, pois ninguém se importa com os pobres mendigos que caminham pelas grandes estradas. Caminhou até alcançar a beira do mar.

No porto, uma grande nau mercante estava partindo. Os marinheiros já estavam içando a vela e levantavam a âncora para ganhar o alto-mar.

– Deus vos proteja, senhores, e que possais navegar em boa sorte! Para que terra ides vós?

– Para Tintagel. – Para Tintagel! Ah! Senhores, levai-me!

Ele embarcou. Um vento propício enfurnou a vela, a nau corria sobre as vagas. Cinco noites e cinco dias ela vogou diretamente rumo às Cornualhas e, no sexto dia, lançou âncora no porto de Tintagel.

Para além do porto, erguia-se o castelo sobranceiro ao mar, bem fechado por todos os lados: nele só se podia entrar por uma única porta de ferro e duas sentinelas montavam-lhe guarda dia e noite. Como penetrar lá?

Tristão desceu da nau e sentou-se na praia. Soube por um homem que passava que Marc estava no castelo e que acabava de lá instalar uma grande corte.

– Mas onde está a rainha? E Brangien, sua bela serva?

– Também estão em Tintagel, vi-as recentemente. A rainha Isolda parecia triste, como de costume.

Ao nome de Isolda, Tristão suspirou e imaginou que, nem por astúcia nem por bravura, conseguiria rever sua amiga, pois o rei Marc matá-lo-ia…

“Mas que importa que me mate? Isolda, não devo morrer por vosso amor? E que faço a cada dia, a não ser morrer? Vós, Isolda, no entanto, se soubésseis que estou, aqui, dignar-vos-íeis somente a falar com vosso amigo? Não me faríeis expulsar por vossos esbirros? Sim, vou tentar um ardil… Fingir-me-ei de louco, e essa loucura será grande sabedoria. Quem me tomar por doido será menos atilado do que eu, quem me acreditar louco sentirá mais loucura na sua casa.”

Um pescador aproximava-se, vestido com uma cota de burel felpuda, com grande capuz. Tristão viu-o, fez-lhe sinal, levou-o para um canto.

– Amigo, queres trocar tuas roupas pelas minhas? Dá-me tua cota que muito me agrada.

O pescador olhou para as vestes de Tristão, achou-as melhores que as suas, pegou-as imediatamente e foi-se bem depressa, feliz com a troca.

Então Tristão cortou sua bela cabeleira loura rente ao couro cabeludo, desenhando nele uma cruz. Lambuzou o rosto com um líquido feito com uma erva mágica trazida do seu país, e logo sua cor e o aspecto do seu rosto mudaram de maneira tão estranha, que nenhum homem no mundo teria podido reconhecê-lo. Arrancou de uma sebe um rebento de castanheiras, fez com ele uma clava e pendurou-a ao pescoço. Com os pés descalços, caminhou direto para o castelo.

O porteiro acreditou que era, seguramente, um louco e disse-lhe:

– Aproximai-vos. Então, onde foi que ficastes todo esse tempo?

Tristão disfarçou a voz e respondeu:

– No casamento do abade do Monte, que é um dos meus amigos. Casou com uma abadessa, uma gorda dama de véu. De Besançon até o Monte, todos os padres, abades, monges e clérigos ordenados foram enviados a essas núpcias e todos na charneca, carregando cajados e cruzes, pulam, brincam e dançam à sombra das grandes árvores. Mas deixei-os para vir até aqui, pois hoje devo servir à mesa do rei.

O porteiro disse-lhe:

– Entrai, pois, senhor, filho de Urgán, o Peludo. Sois grande e peludo como ele e muito vos pareceis com vosso pai.

Quando ele entrou no burgo, brincando com sua clava, criados e escudeiros amontoaram-se à sua passagem, perseguindo-o como a um lobo:

– Olhai o doido! Hi! Hi! Hi!

Atiravam-lhe pedras, atacavam-no com paus, mas ele enfrentava-os dando cambalhotas e não se importava – se o atacavam à sua esquerda, virava-se e batia à sua direita.

No meio dos risos e dos apupos, levando atrás de si a turba alvoroçada, chegou à soleira da porta onde, sob o dossel, ao lado da rainha, o rei Marc estava sentado. Acercou-se da porta, pendurou a clava ao pescoço e entrou. O rei viu-o e disse:

– Eis um belo companheiro. Fazei-o aproximar-se.

Levaram-no com a clava ao pescoço:

– Amigo, sede bem-vindo!

Tristão respondeu com sua voz estranhamente disforme:

– Sire, bom e nobre entre todos os reis, eu bem sabia que ao ver-vos meu coração desmanchar-se-ia de ternura. Que Deus vos proteja, belo sire!

– Amigo, que viestes procurar aqui dentro?

– Isolda, que tanto amei. Tenho uma irmã que vos trago, a muito bela Brunehaut. A rainha aborrece-vos, tentai com esta – façamos a troca, dou-vos a minha irmã, entregai-me Isolda. Ficarei com ela e servir-vos-ei por amor.

O rei riu daquilo e disse ao louco:

– Se eu te der a rainha, que quererás fazer com ela? Para onde a levarás?

– Lá para cima, entre o céu e a nuvem, para a minha bela casa de vidro. O sol atravessa-a com seus raios, os ventos não a podem abalar; para lá levarei a rainha, para um quarto de cristal, todo florido com rosas, todo luminoso de manhã, quando o sol bate nele.

O rei e seus barões comentaram entre si:

– Aí está um maluco hábil nas palavras!

Ele sentara-se sobre um tapete e olhava com ternura para Isolda.

– Amigo – disse-lhe Marc –, de onde te vem a esperança de que minha senhora cuide de um louco hediondo como tu?

– Sire, bem que tenho direito a isso: realizei por ela muitos trabalhos, e foi por ela que acabei louco.

– Quem és tu então?

– Sou Tristão, aquele que tanto amou a rainha, e que a amará até a morte. A este nome, Isolda suspirou, mudou de cor e, irada, disse-lhe:

– Vai-te embora! Quem te deixou entrar aqui? Vai-te embora, louco mau!

O louco notou sua cólera e disse:

– Rainha Isolda, não vos lembrais do dia em que, ferido pela espada envenenada do Morholt, levando minha harpa pelo mar, fui impelido para vossas praias? Vós me curastes. Não vos lembrais mais, rainha?

Isolda respondeu:

– Vai-te embora daqui, louco. Tuas brincadeiras não me agradam, nem tu. Logo, o louco voltou-se para os barões, empurrou-os para a porta, gritando:

– Loucos, fora daqui! Deixai-me sozinho aconselhar-me com Isolda, pois vim até aqui dentro por amá-la.

O rei riu daquilo, Isolda corou de vergonha:

– Sire, expulsai daqui este louco! Mas o louco tornou a falar com sua voz estranha:

– Rainha Isolda, não vos lembrais do dragão que matei na vossa terra? Escondi a língua dele no meu calção e, todo queimado pelo seu veneno, caí perto do pântano. Eu era então um maravilhoso cavaleiro!… e esperava a morte, quando me socorrestes.

Isolda respondeu:

– Cala-te, estás injuriando os cavaleiros, pois não passas de um louco de nascença. Malditos sejam os marinheiros que te trouxeram aqui em vez de te jogarem ao mar!

O louco estourou de risada e continuou:

– Rainha Isolda, não vos lembrais do banho em que queríeis matar-me com minha espada? E do conto do cabelo de ouro que vos acalmou? E como vos defendi contra o senescal covarde?

– Calai-vos, mentiroso perverso! Por que vindes aqui declamar vossos sonhos? Estáveis bêbado ontem à noite, sem dúvida, e a bebedeira vos deu esses sonhos.

– É verdade, estou bêbado, e de uma bebida tal, que jamais esta bebedeira se dissipará. Rainha Isolda, não vos lembrais daquele dia tão belo, tão quente, em alto-mar? Estáveis com sede, não vos lembrais, filha de rei? Ambos bebemos no mesmo canjirão. Desde então, sempre estive bêbado, e de bebedeira ruim…

Quando Isolda ouviu essas palavras que somente ela podia compreender, escondeu sua cabeça no manto, levantou-se e quis ir embora. Mas o rei reteve-a por sua capa de arminho e fê-la tornar a sentar-se a seu lado:

– Esperai um pouco, Isolda, amiga, ouçamos estas loucuras até o fim.

Louco, que ofício sabes fazer?

– Servir reis e condes.

– Em verdade, sabes caçar com cães? Com pássaros?

– Certamente, quando me agrada caçar na floresta, sei pegar, com meus cães, os grous que voam em bandos; com meus cães, os cisnes, os gansos trigueiros ou brancos, os pombos selvagens; com meu arco, os mergulhões e os alcaravões!

Todos riram com vontade dessas coisas, e o rei perguntou:

– E o que pegas, irmão, quando caças caça de rio?

– Pego tudo o que encontro: com meus açores, os lobos dos bosques e os grandes ursos; com os meus gerifaltes, os javalis; com os meus falcões, pego os cabritos monteses e os gamos; as raposas, com meus gaviões; as lebres, com meus esmerilhões. E, quando volto para a casa de quem me alberga, sei muito bem brigar com a clava, partilhar os tições entre os escudeiros, afinar minha harpa e cantar com música, e amar as rainhas e jogar pelos riachos cavacos bem cortados. Na verdade, não sou eu um bom menestrel? Hoje, vistes como sei esgrimir com o pau.

E ele bateu com sua clava ao seu redor.

– Fora daqui – gritou ele –, senhores cornualheses! Por que ficar ainda? Já não comestes? Não vos fartastes?

O rei, tendo-se divertido com o louco, pediu seu cavalo e seus falcões e levou à caça cavaleiros e escudeiros.

– Sire – disse-lhe Isolda –, sinto-me cansada e aflita. Permiti que vá repousar em meu quarto. Não posso ouvir por mais tempo essas loucuras.

Ela retirou-se muito pensativa para o seu quarto, sentou-se no seu leito e ficou presa de grande sofrimento:

– Mísera! Por que nasci? Meu coração está pesaroso e angustiado. Brangien, querida irmã, minha vida é tão cruel e tão dura, que eu preferiria a morte! Lá está um louco, de crânio raspado em cruz, que aqui entrou em má hora: esse louco, esse charlatão é mágico ou adivinho, pois sabe de ponta a ponta o que sou e a minha vida. Sabe coisas que ninguém sabe a não ser vós, eu e Tristão. Sabe-as, o vagabundo, por magia e sortilégio.

Brangien respondeu: – Não seria ele o próprio Tristão?

– Não, pois Tristão é belo e o melhor dos cavaleiros, mas esse homem é horrendo e disforme. Que seja amaldiçoado por Deus! Maldita seja a hora em que nasceu, e maldita a nau que o trouxe em vez de o afogar sob as vagas profundas!

– Acalmai-vos, senhora – disse Brangien. – Hoje já sabeis muito bem maldizer e excomungar! Onde pois aprendestes essa arte? Mas talvez esse homem seja mensageiro de Tristão!

– Não acredito, não o reconheci. Mas ide encontrá-lo, bela amiga, falai com ele, vede se o reconheceis.

Brangien dirigiu-se à sala onde o louco, sentado num banco, tinha ficado só. Tristão reconheceu-a, deixou cair sua clava e disse-lhe:

– Brangien, leal Brangien, suplico-vos por Deus, tende compaixão de mim!

– Louco nojento! Qual diabo vos ensinou o meu nome? – Bela, sei-o há muito tempo! Por meu chefe, que há pouco foi louro, se a razão se foi desta cabeça, vós, bela, é que sois a causa. Não fostes vós que devíeis guardar a bebida que eu bebi em alto-mar? Bebi-a sob um grande calor, de um canjirão de prata, e o estendi a Isolda. Somente vós o soubestes, bela: não vos lembrais mais disso?

– Não! – respondeu Brangien e, toda perturbada, tornou a correr ao quarto de Isolda, mas o louco precipitou-se atrás dela, gritando:

– Piedade! Ele entrou, viu Isolda, correu para ela, com os braços estendidos, quis estreitá-la ao peito; mas, envergonhada, banhada de um suor de angústia, ela derreou-se para trás, esquivando-se. Ao ver que ela evitava a aproximação dele, Tristão tremeu de vergonha e de cólera, recuou até a parede, perto da porta e, com sua voz sempre disfarçada, disse:

– Certamente, vivi demais, já que vi o dia em que Isolda me repele, não se digna a me amar, considera-me vil! Ah! Isolda, quem muito ama tarde esquece! Isolda, algo belo e precioso é uma fonte abundante que se expande e corre em borbotões, em ondas largas e claras. No dia em que ela seca, não vale mais nada. Assim é um amor que se acaba.

Isolda respondeu:

– Irmão, olho-vos, duvido, tremo, não sei, não reconheço Tristão.

– Rainha Isolda, sou Tristão, aquele que tanto vos amou. Não vos lembrais do anão que espalhou a farinha entre nossos leitos? E do pulo que dei e do sangue que escorreu da minha ferida? E do presente que vos mandei, o cachorro Petit-Crû, com o guizo mágico? Não vos lembrais dos pedaços de madeira bem cortados que eu jogava no riacho?

Isolda olhou para ele, suspirou, não sabia o que dizer e em que acreditar, viu bem que ele sabia todas as coisas, mas seria loucura confessar que era Tristão. E Tristão disse-lhe:

– Senhora rainha, bem sei que vos afastastes de mim e acuso-vos de traição. Conheci, no entanto, Bela, dias em que me amáveis com amor. Era na floresta profunda, sob a choupana de ramagens. Lembrai-vos ainda do dia em que vos dei meu bom cão Husdent? Ah! Aquele sempre me amou e por mim deixaria Isolda, a Loura. Onde está ele? Que fizestes dele? Ele, pelo menos, reconhecer-me-ia.

– Reconhecer-vos-ai? Dizeis loucura, pois, desde que Tristão partiu, ele fica deitado na sua casinha e avança contra todo homem que dele se aproxima. Brangien, trazei-mo.

Brangien trouxe-o.

– Vem aqui, Husdent – disse Tristão. – Eras meu, torno a ficar contigo. Quando Husdent ouviu a voz dele, fez voar sua correia das mãos de Brangien, correu para seu dono, rolou a seus pés, lambeu-lhe as mãos, latiu de alegria.

– Husdent – gritou o louco –, bendito seja, Husdent, o trabalho que tive para te alimentar! Deste-me melhor acolhida do que aquela que eu amava tanto. Ela não quer me reconhecer. Reconhecerá ao menos este anel que me deu outrora, com lágrimas e beijos, no dia da separação? Este anelzinho de jaspe nunca me deixou. Muitas vezes aconselhei-me com ele em meus tormentos, muitas vezes molhei este jaspe verde com minhas lágrimas ardentes.

Isolda viu o anel. Abriu bem os braços.

– Eis-me aqui! Toma-me, Tristão! Então Tristão deixou de disfarçar a voz: – Amiga, como pudestes por tanto tempo desconhecer-me, mais tempo do que este cachorro? Que importa este anel? Não sentes que teria sido mais doce para mim ser reconhecido à simples evocação de nossos amores passados? Que importa o som da minha voz! É o som do meu coração que devias ouvir.

– Amigo – disse Isolda –, talvez o tenha ouvido mais cedo do que pensas, mas estamos cercados de ciladas. Devia eu, como este cachorro, seguir o meu desejo, com o risco de te fazer prender e matar sob meus olhos? Resguardava-me e resguardava-te. Nem a evocação da tua vida passada, nem o som da tua voz, nem mesmo este anel me provam nada, pois podem ser os truques perversos de um feiticeiro. Rendo-me, no entanto, à vista do anel. Não jurei que logo que o tornasse a ver, mesmo que eu devesse me perder, faria sempre o que me dissésseis, quer fosse sabedoria ou loucura? Sabedoria ou loucura, aqui estou eu. Toma-me, Tristão!

Ela caiu exâmine no peito de seu amigo. Quando voltou a si, Tristão mantinha-a em seus braços e beijava seus olhos e seu rosto. Ele entrou com ela sob o cortinado. Entre seus braços ele tinha a rainha.

Para divertirem-se com o louco, os criados abrigaram-no sob os degraus da sala, como um cão num canil. Ele suportava docemente suas zombadas e suas pancadas, pois, às vezes, retomando suas formas e sua beleza, passava do seu tugúrio ao quarto da rainha.

Mas, passados alguns dias, duas camareiras desconfiaram da fraude. Avisaram Andret, que pôs diante dos quartos das mulheres três espiões bem armados. Quando Tristão quis transpor a porta:

– Para trás, louco, gritaram eles, volta a deitar-te sobre teu feixe de palha!

– Ora essa! Belos senhores – disse o louco –, não posso esta noite ir beijar a rainha? Não sabeis que ela me ama e que me espera?

Tristão vibrou sua clava. Eles tiveram medo e deixaram-no entrar. Tomou Isolda em seus braços:

– Amiga, devo fugir agora mesmo, pois logo seria descoberto. Devo fugir e, sem dúvida, nunca mais voltarei. Minha morte está próxima: longe de vós, morrerei do meu desejo.

– Amigo, fecha teus braços e abraça-me tão apertado que, nesse abraço, nossos dois corações se rompam e nossas almas se evolem! Leva-me ao país venturoso de que me falavas outrora, ao país de onde ninguém volta, onde músicos insignes cantam cânticos sem fim. Leva-me!

– Sim, levar-te-ei ao país venturoso dos Vivos. Aproxima-se a hora. Já não bebemos toda a miséria e todo o prazer? Aproxima-se a hora. Quando tudo estiver resolvido, se eu te chamar, Isolda, tu virás?

– Amigo, chama-me, bem sabes que irei!

– Amiga, que Deus te recompense por isso! Quando ele transpôs o limiar, os espiões lançaram-se sobre ele. Mas o louco deu uma gargalhada, girou sua clava e disse:

– Vós me escorraçais, belos senhores. Por quê? Nada mais tenho a fazer aqui dentro, já que minha senhora me envia para longe a preparar a casa clara que lhe prometi, a casa de cristal, florida com rosas, luminosa de manhã quando brilha o sol!

– Então vai-te embora em má hora, maluco! Os criados afastaram-se, e o louco, sem se apressar, foi-se embora dançando.

 

 

Ilustração: Tristan et Iseult, aquarela e pintura a ouro de Maxwell Armfield (1904, Birmingham Museums and Art Gallery)

 

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