Sirva-se!

Publicado por Sergei Eisenstein na revista Proletarskoye Kino nº 17/18. Moscou, 1932 d.C.

Traduzido por Teresa Ottoni.

Stephen. (Olha para trás). Então aquele gesto, não música, não odores, seria uma linguagem universal, o talento de línguas tornando visível não o senso estabelecido, mas a primeira enteléquia, o ritmo estrutural.

(James Joyce) [1]

Discussões sobre “diversão” versus “entretenimento” me irritam. Tendo gasto muitas horas-homem com a questão do “entusiasmo” e “envolvimento” da platéia num impulso unido e geral de absorção, a palavra “diversão” me parece adversária, estranha e inimiga. Toda vez que se diz que um filme deve “entreter”, ouço uma voz: “Sirva-se!”.

Quando o ilustre Ivan Ivanovich Pererepenko “lhe oferece rapé, ele primeiro lambe a borda da sua caixinha de rapé com a língua, e então bate nela com o dedo, apresentando-a a você, e se você é conhecido, diz: ‘Posso me atrever, meu caro senhor, a pedir-lhe que se sirva?’ E se você não o conhece, ele diz: ‘Posso me atrever, meu caro senhor, apesar de não ter a honra de saber seu cargo, nome e sobrenome, a pedir-lhe que se sirva?’” Mas quando Ivan Nikiforovich Dovgochkhun lhe oferece rapé, “coloca a caixinha de rapé em sua mão e diz apenas: ‘Sirva-se!’”.

Estou com Ivan Nikiforovich, com seu direto “sirva-se!”.

A tarefa do cinema é fazer com que a platéia “se sirva”, não “diverti-la”. Atrair, não divertir. Proporcionar munição ao espectador, não dissipar a energia que o levou ao teatro. “Entretenimento” não é na realidade um termo totalmente inócuo: sob ele há um processo ativo, bastante concreto.

Mais precisamente, diversão e entretenimento devem ser entendidos apenas como um ato quantitativo de se apoderar do material temático interior, e de modo algum como um poder qualitativo.

Quando tínhamos filmes que “atraíam”, não falávamos de entretenimento. Não tínhamos tempo para ficarmos aborrecidos. Mas então esta atração se perdeu em algum lugar. A capacidade de construir filmes que atraíam foi perdida. E começamos a falar de entretenimento.

É impossível perceber este último objetivo, sem primeiro dominarmos o método anterior.

O slogan a favor do entretenimento foi considerado por muitos como apoio a um determinado elemento retrógrado e, no pior sentido, como uma perversão da compreensão em relação às premissas ideológicas de nossos filmes.

Precisamos uma vez mais dominar um método, um guia diretivo para incorporar obras de arte instigantes. Ninguém pode nos ajudar nisto. Devemos fazê-lo nós mesmos.

É sobre a questão de como fazê-lo — pelo menos de como nos prepararmos para fazê-lo, que quero falar.

Reabilitar a premissa ideológica não é algo a ser imposto de fora, “com os cumprimentos do Repertkom”,[2] mas deve ser pensado como um processo básico, vivificador, poderoso, que fertiliza nada menos do que o elemento mais surpreendente do trabalho criativo da direção do cinema — o “tratamento” dado pelo diretor. Esta é a tarefa deste ensaio.

E existe uma ocasião bastante concreta para isto — principalmente em conexão com a formulação do trabalho pedagógico do terceiro ano, ou ano da graduação, do curso de direção do Instituto Estatal de Cinema, no qual, de acordo com o programa de ensino, os alunos devem iniciar o domínio criativo do trabalho de direção.

Os talmudistas do método — os ilustres marxistas acadêmicos — podem me criticar, mas quero abordar este tema e este ensino de modo simples, como a vida — como o trabalho. Porque, na realidade, ninguém até agora sabe concretamente como tratar dele, e se esconde atrás de citações, acadêmicas ou não.

Durante algum tempo, durante anos, me preocupei com certos poderes sobrenaturais que transcendem o senso comum e a razão humana e que pareciam indispensáveis para a compreensão dos “mistérios” da direção criativa de cinema.

Para dissecar a música da direção criativa de cinema!

Dissecar, mas não como um cadáver (à maneira de Salieri[3]), a música da direção criativa de cinema — este deveria ser nosso trabalho com os formandos do Instituto.

Abordamos este problema de modo simples, e não a partir de uma posição preconcebida de métodos escolásticos. E não será nos cadáveres de obras cinematográficas desgastadas que examinaremos os processos de produção de nossos próprios trabalhos. O teatro anatômico e a mesa de dissecção são os campos de teste menos adequados para o estudo do teatro. E o estudo do cinema deve continuar inseparável do estudo do teatro.

Construir a cinematografia a partir da “idéia de cinematografia”, e de princípios abstratos, é bárbaro e estúpido. Apenas através da comparação crítica com as formas primitivas mais básicas do espetáculo é possível dominar criticamente a metodologia do cinema.

A crítica deve consistir em comparar e contrastar um determinado fato não com uma idéia, mas com outro fato; para isto, é importante apenas que ambos os fatos sejam investigados o mais cuidadosamente possível, e que ambos apresentem, em relação um ao outro, momentos diferentes de desenvolvimento.[4]

Estudaremos esta questão na vida do processo criativo. E esta será nossa forma fundamental de agir.

Devemos construir simultaneamente um processo de trabalho e um método. E devemos proceder não à maneira de Plekhanov,[5] a partir de posições preconcebidas de um “método geral” para o caso concreto particular, mas através de determinado trabalho concreto sobre materiais particulares esperamos chegar a um método de criação cinematográfica para o diretor.

Para este objetivo, devemos desvendar o processo criativo “íntimo” do diretor em todas as suas fases e mudanças, e colocá-lo diante da platéia, “totalmente exposto”.

Muitas surpresas estão armazenadas para a juventude, que está cheia de ilusões.

Em relação a uma determinada obra, posso, por um momento, colocar-me a favor do “entretenimento”? Vamos citar um dos maiores de todos os “entretenedores” — Alexandre Dumas, pai, em cujo nome Alexandre Dumas, filho, se desculpou assim! “Meu pai é o meu bebê grandão — ele nasceu quando eu ainda era criancinha.”[6]

Quem não se encantou com a harmonia clássica da estrutura labiríntica de O conde de Monte Cristo? Quem não foi atingido pela lógica mortal que enlaça e entrelaça os personagens e eventos do romance, como se essas inter-relações existissem a partir de sua própria concepção? Quem, finalmente, não imaginou aquele momento estático quando, de repente, no cérebro daquele “negro gordo”, Dumas, irrompeu a futura arquitetura do romance com todos os seus detalhes e sutilezas, com o título, Le comte de Monte Cristo, brilhando na fachada? E esta visão desperta o eco habitual: “Ah, se eu pudesse fazer uma coisa assim!” E como é agradável reconhecer, ao saborear esse manjar, como uma composição tão memorável foi realmente criada e moldada. Como a fabricação deste livro se deu com diligência feroz — não através de um lampejo divino.

É um trabalho de escravo que moureja tanto quanto sob o açoite de um capataz. Dumas tinha realmente ascendência créole, tendo nascido no Haiti, como Toussaint L’Ouverture, o herói de um filme que quero fazer, O cônsul negro.[7] O apelido do avô de Dumas — general Thomas Alexandre — era “Demônio Negro”. E o próprio Dumas era chamado de “negro gordo” por seus contemporâneos invejosos e rivais. Um certo comentarista, com o humilde nome de Jacquot, escondido atrás da sonoridade mais pomposa de “Eugène de Mirecourt”, publicou um ataque intitulado Fabrique de Romans: Maison Alexandre Dumas et Cie., no qual fez uma conexão entre as origens e os métodos de Dumas:

Arranhe a pele do Sr. Dumas e encontrará o selvagem… Ele devora batatas tiradas pelando das cinzas da lareira e as devora sem tirar as cascas — um negro! [Como precisa de 200.000 francos por ano], contrata desertores intelectuais e tradutores por salários que os degradam à condição de negros trabalhando sob o chicote de um mulato! [8]

“Seu pai era negro!” alguém gritou-lhe na cara. “Meu avô era um macaco”, ele respondeu. Parece ter sido mais sensível à acusação de “fábrica de romances”.

Apenas uma vez Dumas ficou realmente ofendido. Béranger, de quem ele realmente gostava, escreveu pedindo-lhe para incluir um exilado interessante “entre os inúmeros mineiros que ele empregava para desencavar o mineral que transformava em lingotes de prata”; e Dumas respondeu: “Querido velho amigo: Meu único mineiro é minha mão esquerda, que mantém o livro aberto, enquanto minha mão direita trabalha doze horas por dia.”

Ele estava exagerando. Tinha colaboradores, “mas tal como Napoleão tinha generais”.[9]

É bastante difícil trabalhar com tal frenesi. Mas é ainda mais difícil conseguir qualquer coisa adequada sem este frenesi.

Milagres de composição — são apenas uma questão de persistência e de tempo gasto durante o “o período de treinamento” em uma biografia.

Do ponto de vista da produtividade, este período do romantismo se distingue pela louca velocidade de seus tempos criativos: em oito dias (de 19 a 26 de setembro de 1829), Victor Hugo escreveu 3.000 linhas de Hernani, que revolucionou o teatro clássico; Marion Delorme em 23 dias; Le Roi s’amuse em 20 dias; Lucrèce Borgia em 11 dias; Angelo em 19 dias; Marie Tudor em 19 dias; Ruy Blas em 34 dias. Isto também se reflete quantitativamente. A herança literária de Dumas, pai, totaliza 1.200 volumes.

Idêntica oportunidade de criar tais obras é igualmente acessível a todos.

Examinemos O conde de Monte Cristo em particular. Lucas-Dubreton nos revela a história de sua composição.

Durante um cruzeiro pelo Mediterrâneo, Dumas passou perto de uma pequena ilha, onde não pôde aportar porque o lugar “estava en contumace”. Era a ilha de Monte Cristo. O nome impressionou-o naquela ocasião. Alguns anos mais tarde, em 1843, ele combinou com um editor a publicação de um trabalho a ser chamado Impressions de voyage dans Paris, mas precisava de um enredo romântico. Então certo dia, por sorte, ele leu uma história de vinte páginas, Le Diamant et la vengeance, escrito no período da segunda Restauração e incluído num volume de Peucher, La Police devoillée. Atingiu o alvo. Ali estava o tema com o qual sonhara: Monte Cristo deveria descobrir seus inimigos escondidos em Paris!

Então Maquet teve a idéia de contar a história do caso de amor entre Monte Cristo e a bonita Mercedes e a traição de Danglars; e os dois amigos iniciaram uma nova trilha — Monte Cristo, de impressões de viagem em forma de romance, se transformou num romance puro e simples. O abade Faria, um louco nascido em Goa, que Chateaubriand vira tentar em vão matar um canário hipnotizando-o, ajudou a aumentar o mistério; e o Castelo de If começou a aparecer no horizonte…

É assim que as coisas acontecem. E reconstruir tais coisas tal como ocorrem, participar desta experiência, parece-me o processo mais útil e produtivo para um estudante.

Os “metodistas”, que pregam o contrário e aprovam outras “receitas”, estão simplesmente desperdiçando nosso precioso tempo. Mas o “acaso” aqui é muito menos importante do que possa parecer, e a “regularidade” dentro do processo criativo é percebida e detectada. Há um método. Mas toda a vilania reside nisto: de posições metodológicas preconcebidas, nada brota. E uma tempestuosa corrente de energia criativa, não regulada por um método, produz ainda menos.

Tal análise da construção de obras de arte, passo a passo, explicará a mais rigorosa regularidade que governa cada apoio da superestrutura, com as quais elas nascem das premissas sociais e ideológicas básicas.

E a febre dourada de ganhar dinheiro e de auto-enriquecimento da época de Luís Filipe é nada menos do que um fator determinante da conhecida lenda sobre a fabulosa riqueza do ex-marinheiro que se torna um onipotente conde, não menos determinante do que as memórias de infância de Dumas sobre Xerazade e os tesouros de Ali Babá. E o próprio fato de um marinheiro poder se tornar um conde significava que “qualquer um” podia.

Na caça ao ouro e aos títulos aristocráticos, o marinheiro, Dantès, que se tornou o fabulosamente rico conde de Monte Cristo, serviu como um esplêndido “ideal social” da burguesia, que estava enriquecendo. Não é sem razão que a esta imagem são dadas as feições de um auto-retrato idealizado. Porque o próprio Dumas, junto com os outros, se banhava no turvo mar de ouro suspeito acumulado através de dúbias especulações no reinado de le roi bourgeois.

“Um milhão? Esta é exatamente a quantia que geralmente carrego no bolso!”

Num grau idêntico, esta declaração foi o ideal inatingível, tanto do “negro gordo”, na época o soberano literário do jornal, do feuilleton e do mundo dramático de Paris, que esbanjava palavras e dinheiro com igual inconseqüência, quanto das amplas hordas de trapaceiros e escroques gananciosos, que destruíram a vida econômica de Paris.

Porém, para sentirmos em sua plenitude quão intensamente essas premissas sociais, econômicas e ideológicas determinam cada uma das menores mudanças de forma, e quão inseparavelmente elas estão unidas em seus processos, deve-se independente e conscientemente traçar um ciclo criativo contínuo e completo do início ao fim.

É claro que o mais interessante seria pegar um outro Goethe ou Gogol, colocá-lo diante de uma platéia e ordenar que escrevesse a terceira parte de Fausto ou criasse novamente o segundo volume de Almas mortas. Mas nem mesmo temos um Alexandre Dumas vivo à nossa disposição. Assim, nós do terceiro ano do Instituto nos transformamos num diretor e criador coletivo de cinema.

O instrutor é nada mais do que primus inter pares — o primeiro entre iguais. O coletivo (e mais tarde cada membro, individualmente) trabalha passando por todas as dificuldades e tormentos do trabalho criativo, por todo o processo de formação criativa, da primeira indicação fraca, vaga, do tema, até a decisão de se os botões da jaqueta de couro do último extra se adequam aos objetivos da filmagem.

A tarefa do instrutor é apenas, através de um hábil e bem programado impulso, empurrar o coletivo em direção das dificuldades “normais” e “frutíferas”, empurrar o coletivo na direção de uma apresentação correta e distinta (para o próprio instrutor) exatamente destas questões, as quais, uma vez respondidas, levam à construção e não a infrutíferos palavrórios “em torno” do assunto.

É assim que se ensina a voar num circo. O trapézio é impiedosamente retido, ou então o aluno encontra um punho cerrado em vez da mão que o ajuda, se o seu timing está errado. Nenhum grande dano se ele é projetado uma ou duas vezes para fora da rede de segurança, nas cadeiras em redor da arena. Na próxima vez não cometerá o mesmo erro.

Com cuidado idêntico, em cada estágio do desenrolar do processo criativo, o material secundário e a experiência do “passado herdado” devem, no lugar apropriado, ser postos nas mãos dos confusos e assustados “guerreiros”. Isto não é o suficiente, se não se tem à mão o exaustivo e sintético gigante do cinema, que cada vez mais forma em seu próprio terreno uma sólida técnica, mais forte que a “herança do passado” e que o “herdeiro vivo”.

Em três anos um curso sistemático sobre temas especiais substituiu, no Instituto, um fino verniz de palestras esporádicas dadas por todo tipo de “proeminentes” profissionais do cinema. Estas pessoas corriam para o Instituto como corriam para pegar um bonde, estranhas e sem relação umas com as outras, exatamente como passageiros de um bonde, correndo para a saída o mais rápido possível, depois de despejar por 45 minutos algo desconectado e episódico. Então eles saíam da vista de seus espantados prosélitos, para a órbita de suas atividades privadas.

Este “pequeno episódio” também teve de ser reconstruído de um modo fundamental. Dentro do plano do curso geral, especialistas são convidados, na hora apropriada, para tratar de casos definidos, concretos, num estágio definido do movimento geral do processo criativo desenvolvido. Para tratar daquela questão particular em que é especialista.

Tudo isto tem por objetivo um amplo projeto pelo qual o coletivo ou, mais tarde, o individual, é responsável até o fim. Ao nos livrarmos dos “pequenos episódios” do plano de ensino, também nos livramos dos “pequenos episódios” dignos de pena preparados por formandos. Estes pequenos “études” dos alunos, miscelâneos e lamentáveis, mas autogratificantes, até mais curtos em inteligência do que já são em metragem, devem ser eliminados por serem completamente improdutivos. Depois de trabalhar num projeto de formatura do nível, digamos, de uma catedral, o arquiteto formado se vê em geral construindo algo acessível a qualquer um — um banheiro. Mas depois de desenhar para sua formatura um pequeno pissoir, [um mictoriozinho] parece arriscado voltar-se para, sim, o que quiserem! E assim, ano após ano, vemos isso acontecer com alunos formados no Instituto. Isto tem de ser fundamentalmente eliminado.

É verdade que na platéia um filme é dividido em episódios separados. Mas todos esses episódios estão pendurados na corda de um único conjunto ideológico, composicional e estilístico.

A arte da cinematografia não está na seleção de um enquadramento extravagante ou em captar algo por um surpreendente ângulo de câmera.

A arte está no fato de cada fragmento de um filme ser uma parte orgânica de um conjunto organicamente concebido.

Estas partes, organicamente pensadas e fotografadas, de uma composição geral e de amplo significado, devem ser segmentos de algum todo, e de modo algum études vagos e errantes.

Nestes segmentos filmados, nos episódios não-filmados mas preparados e planejados para precedê-los ou segui-los, no desenvolvimento dos planos e listas de montagem de acordo com o lugar destas partes do conjunto — sobre tal base, a irresponsabilidade criativa será realmente liquidada entre os estudantes.

Do início ao fim, seu trabalho será examinado, simultaneamente com demonstrações de até onde eles são capazes de realizar na prática o conceito geral firmemente planejado; apesar de neste estágio não ser ainda o conceito individual do estudante, mas o conceito trabalhado coletivamente, isto já ensina a árdua lição de autodisciplina. Autodisciplina que será ainda mais necessária no momento em que o conceito for individual e próprio.

Mas antes de atingir este último estágio, esta última fronteira, já chegando à produção fora da escola, os estudantes passam por uma longa lista de “especialistas” vivos e mortos.

Num determinado estágio isto assumirá a forma de uma longa discussão sobre o tipo, imagem e caráter dos personagens de seu projeto. As cinzas de Balzac, Gogol, Dostoiévski e Ben Jonson vão se revolver em tais discussões. Surgirá a questão da personificação de tal tipo, imagem ou personagem. Aqui dependeremos da confissão de Kachalov sobre seu trabalho no papel do “Barão” em Os três da rua Mechenskaia [10], Batalov conversará conosco, ou Maxim Shtrauch nos informará sobre a mecânica para criar Rubinchik em A rua da alegria, de Zarkhi.

Movendo-nos através das florestas da construção da história, dissecaremos com Aksënov os esqueletos dos elisabetanos, ouviremos Dumas, pai, e Viktor Shklovski [11] sobre o esboço das estruturas da história, e sobre os métodos das obras de Weltmann. E então, tendo repassado situações dramáticas com os falecidos John Webster, Nathan Zarkhi e Volkenstein, deveremos analisar como essas situações são colocadas em palavras.

Alexei Maximovich Gorki provavelmente não se recusará a nos iniciar nos métodos de escrever o diálogo para Bas-fonds ou Yegor Bulichev e outros. Nikolai Erdmann nos contará como são feitas suas peças. E Isaac Babel falará da textura específica da palavra e da imagem e da técnica do extremo laconismo dos significados expressivos da literatura — Babel que, talvez, saiba na prática, mais do que qualquer um, o grande segredo, que “aço nenhum pode entrar no coração humano com um efeito tão forte quanto o de um ponto final colocado no momento certo”. [12] E ele pode falar de como, com este laconismo, foi criada sua inimitável, maravilhosa (e longe de ser suficientemente apreciada) peça Sunset. Este é talvez o melhor exemplo de excelente diálogo dramático dos últimos anos.

Tudo isto surgirá nos estágios correspondentes do processo criativo, progressivo e único, de nosso diretor coletivo em seu filme.

A fusão dos estágios separados com excursões analíticas independentes não é tão estranha. Construção de tema e história pode algumas vezes ser completamente independente do desenvolvimento em palavras. Não são tanto O inspetor geral quanto Almas mortas brilhantes exemplos do desenvolvimento de histórias “inspiradas” a Gogol por Pushkin?

A questão de um acompanhamento musical para os meios sonoros. A questão dos meios materiais. Análise de vários exemplos de nossa “herança” também em outras áreas, e cada qual a partir do ângulo daquela necessidade especial onde ela, e peculiarmente ela, pode ser duplamente útil.

James Joyce e Emile Zola.

Honoré Daumier e Edgar Dégas.

Toulouse-Lautrec ou Stendhal.

E, demorada e minuciosamente, será analisada pelos especialistas marxista-leninistas a questão da correta formulação ideológica do problema do ponto de vista do tratamento do tema e de sua compreensão social. Deste modo, esperamos afiançar quem, mobilizado pela experiência e qualificado por um roteiro experimentado, será capaz de criar filmes.

E a parte mais séria e interessante deste trabalho — a parte central do trabalho criativo do diretor — é treinar estudantes em “tratamento” e trabalhar com eles o processo de como isto ocorre e é feito.

Trabalhamos essencialmente com uma trivialidade tão pouco experimental de obras percebidas simplificadamente, que simplesmente não temos oportunidade de observar obras originais, vivas, criativas, que têm um tratamento e concepção social intimamente relacionados, com a forma desenvolvida.

Nossas obras estão num tal nível de simplificação que lembram o famoso desenho animado da fábrica de salsichas automática: de um lado entram caixas com alças contendo porcos, do outro lado as mesmas caixas surgem, agora contendo salsichas.

Entre o esquemático e descarnado esqueleto do slogan, e a pele vazia da forma externa, não há camadas de carne e músculo vivos, tangíveis.

Não há órgãos que atuem relacionados uns com os outros. E logo as pessoas se surpreendem porque a pele está suspensa de maneira disforme. E porque por baixo de sua lamentavelmente débil simplificação despontam os ossos pontudos de uma percepção mecânica das temáticas “sociais”. Sem carne e sem músculos suficientes.

Eis por que Yegor Bulichev e outros, de Gorki, foi recebido com uma alegria tão unânime. Apesar de a obra não ter dado resposta a um problema básico nosso: os homens e mulheres mostrados nele não são ainda nossos, e de hoje. Continuaremos a esperar que eles surjam na mente de Alexei Maximovich.[13]

Por outro lado, aqui há carne. Aqui há músculo. E esta carne foi feita hoje, quando ao nosso redor, no palco e na tela, não existem “homens em caixas”, sobre os quais Tchekov escreveu, mas simplesmente caixas sem homens. Enquanto isso, firmemente empacotadas por citações vulgares, nossas obras parecem o arame farpado da cruel verdade, coberto de musselina — e ficamos espantados porque o sangue não circula através dessas farpas, e a musselina não bate com pulso acelerado.

Do sublime ao ridículo basta um passo. De uma idéia subliminarmente estabelecida como premissa, formulada por um slogan, a uma obra de arte viva — há milhares de passos. Se dermos apenas um passo, obteremos apenas o resultado ridículo de acomodar o lixo do presente.

Devemos começar a aprender como fazer obras acabadas, tridimensionais, partindo dos padrões chapados e bidimensionais com uma “ligação direta” do slogan para a história — sem baldeação.

Como um conceito ideológico atua, proporcionando a um filme uma abordagem séria, podemos verificar a partir de meu próprio trabalho, apesar de em circunstâncias sociais de certo modo incomuns. Foi em Hollywood. No mundo da Paramount Pictures Inc. E o assunto dizia respeito ao tratamento e roteiro de uma obra de qualidade excepcionalmente elevada.

Apesar de não estar isento de defeitos ideológicos, Uma tragédia americana, de Theodore Dreiser, é uma obra com todos os requisitos para ser classificada entre os clássicos de sua época e lugar. O fato de este material conter a colisão de dois pontos de vista irreconciliáveis — o do “escritório central” e o nosso — ficou claro a partir do momento em que entreguei o primeiro esboço resumido de um roteiro. [14]

“Clyde Griffiths é ou não é culpado — em seu tratamento?” foi a primeira pergunta do chefe da Paramount, B.P. Schulberg.

“Não é culpado”, foi nossa resposta.

“Mas então seu roteiro é um monstruoso desafio à sociedade norte-americana…” Explicamos que considerávamos o crime cometido por Griffiths a soma total das relações sociais, cuja influência ele sofreu em todos os estágios de desenvolvimento de sua biografia e caráter, no decorrer do filme. Para nós, nisto residia, essencialmente, todo o interesse da obra.

“Preferíamos um filme policial simples, compacto, sobre um assassinato…”

“… e sobre o amor de um rapaz e uma moça”, alguém acrescentou, com um sorriso.

A possibilidade de dois tratamentos basicamente tão opostos dados ao protagonista da obra não deve causar surpresa.

A novela de Dreiser é tão ampla e sem limites como o Hudson; é tão imensa como a própria vida, e permite quase que qualquer ponto de vista sobre ela. Como todo fato “neutro” da própria natureza, seu romance é noventa e nove por cento apresentação de fatos e um por cento opinião a respeito deles. Este épico de veracidade e objetividade cósmicas tinha de ser construído como uma tragédia — e isto era impensável sem uma opinião global sobre direção e objetivo.

Os chefes do estúdio ficaram preocupados com a questão da culpa ou inocência a partir de outro ponto de vista: culpado significaria — sem atrativo. Como poderíamos permitir que um herói parecesse não atraente? O que diria a bilheteria?

Mas se ele não fosse culpado…

Por causa das dificuldades em torno desta “maldita questão”, Uma tragédia americana ficou parada cinco anos depois de sua compra pela Paramount. Foi trabalhada — mas não mais do que isso — até pelo patriarca do cinema, David Wark Griffith, e Lubitsch, e muitos outros.

Com sua costumeira cautelosa prudência, os “chefes”, em nosso caso também, tomaram uma decisão. Sugeriram que completássemos o roteiro “como quiséssemos”, e então, “veremos”…

A partir do que já disse, deve estar perfeitamente evidente que em nosso caso, diferentemente de tratamentos anteriores, a questão de uma diferença de opinião não se baseou numa decisão com relação a uma situação particular, mas era mais profunda, tocando na questão do tratamento social — completa e fundamentalmente.

É agora interessante verificar como, deste modo, um objetivo começa a determinar a moldagem das partes separadas e como este objetivo particular, com suas exigências, impregna todos os problemas de situações determinantes, de aprofundamento psicológico, e do aspecto “puramente formal” da construção como um todo — e como nos empurra em direção a métodos completamente novos, “puramente formais”, os quais, quando generalizados, podem ser reunidos numa nova percepção teórica da disciplina que governa a cinematografia como tal.

Seria difícil resumir aqui toda a situação do romance: não se pode fazer em cinco linhas o que Dreiser precisou de dois grossos volumes para fazer. Tocaremos apenas no ponto central do lado externo da história da tragédia — o próprio assassinato, apesar da tragédia, é claro, não estar nisto, mas sim no trágico curso seguido por Clyde, a quem a estrutura social leva ao assassinato. E nosso roteiro dá uma atenção fundamental a isso.

Clyde Griffiths, tendo seduzido uma jovem operária que trabalha num departamento dirigido por ele, não pode ajudá-la a fazer um aborto ilegal. Ele se vê obrigado a casar-se com ela. Porém, isto arruinaria todos os seus sonhos de uma carreira, e atrapalharia seu casamento com uma moça rica que está apaixonada por ele.

O dilema de Clyde: ele deve ou esquecer para sempre a carreira e o sucesso social, ou livrar-se da moça.

As aventuras de Clyde em seus choques com a realidade norte-americana já haviam moldado sua psicologia, de modo que, após uma longa luta interior (não devido a princípios morais, mas à sua própria e neurastênica falta de caráter), ele se decide pela última opção.

Ele planeja cuidadosamente e prepara o assassinato da moça — um barco deve virar, aparentemente por acidente. Todos os detalhes são calculados com o superplanejamento do criminoso inexperiente, que em seguida envolve o diletante numa confusão fatal, de indiscutível evidência.

Ele sai com a moça num barco. No barco, o conflito entre pena e aversão pela garota, entre sua vacilação sem caráter e seu ávido desejo de um futuro material brilhante, atinge um clímax. Metade conscientemente, metade inconscientemente, num selvagem pânico interior, o barco vira. A moça se afoga.

Abandonando-a, Clyde se salva como planejara com antecedência, e cai na própria rede que tecera para poder escapar.

O episódio do barco é realizado do modo como incidentes semelhantes ocorrem: não é nem totalmente definido, nem completamente percebido — é uma confusão inextricável. Dreiser apresenta o assunto de modo tão imparcial que o desenvolvimento posterior dos acontecimentos é deixado, formalmente, não para o curso lógico da história, mas para os processos da lei.

Era imperativo para nós acentuar a inocência real e formal de Clyde quanto ao próprio ato de perpetrar o crime.

Apenas assim poderíamos tornar suficientemente claro o “monstruoso desafio” feito a uma sociedade cujo mecanismo leva um jovem sem caráter a uma tal situação, e então, invocando moralidade e justiça, senta-o na cadeira elétrica.

A santidade do princípio formal dos códigos de honra, moralidade, justiça e religião — é primária e fundamental nos Estados Unidos. Nisto se baseia o infindável jogo da advocacia nas cortes, e os elaborados jogos entre advogados e parlamentares. A essência do que está sendo formalmente argüido é um assunto totalmente secundário.

Assim, a condenação de Clyde, apesar de essencialmente merecida por seu papel no caso (que não preocupa ninguém), apesar da prova de sua inocência formal seria considerada nos Estados Unidos algo “monstruoso”: um assassinato judicial.

Era por isso imperativo desenvolver a cena do barco com incontestável precisão quanto à inocência formal de Clyde. Porém, sem reabilitar Clyde de nenhum modo, nem remover qualquer partícula de culpa.

Escolhemos este tratamento: Clyde quer cometer o assassinato, mas não pode. No momento que exige ação decisiva, ele vacila. Simplesmente por fraqueza de vontade.

Porém, antes desta “derrota” interior, ele excita na moça Roberta uma tal sensação de medo que, quando ele se inclina em direção a ela, já derrotado internamente e pronto “a voltar atrás em tudo”, ela foge dele com horror. O barco, desequilibrado, balança. Quando, tentando segurá-la, ele acidentalmente bate com sua câmera fotográfica no rosto dela, ela finalmente perde a cabeça e, aterrorizada, tropeça, cai, e o barco vira.

Para maior ênfase nós a mostramos subindo à superfície novamente. Até mostramos Clyde tentando nadar até ela. Mas a maquinaria do crime fora colocada em movimento e continua até o final, mesmo contra a vontade de Clyde: Roberta grita fracamente, tenta se afastar dele em seu horror, e, não sabendo nadar, se afoga.

Sendo um bom nadador, Clyde alcança a margem e, recuperando-se, continua a agir de acordo com o plano fatal que preparara para o crime — do qual se desviara apenas por um segundo no barco.

O aprofundamento psicológico e trágico da situação nesta forma é indubitável. A tragédia quase atinge o nível grego da “cega Moira — o destino” que, uma vez chamada à vida, não relaxa seu domínio sobre quem a desafiou. Eleva-se a uma causalidade trágica, dura, que, uma vez que exige seus direitos, leva a uma conclusão lógica o que quer que tenha criado através do curso impiedoso de seu processo.

Nesta trituração de um ser humano por um “cego” princípio cósmico, pela inércia do progresso das leis, sobre a qual ele não tem nenhum controle, temos uma das premissas básicas da tragédia antiga. Ela espelha a dependência passiva do homem daquela época das forças da natureza. É análogo ao que Engels, em relação a outro período, escreveu sobre Calvino:

Sua doutrina da predestinação foi a expressão religiosa do fato de que, no mundo comercial da competição, sucesso ou fracasso não dependem da atividade ou sabedoria de um homem, mas de circunstâncias incontroláveis. Não depende dele obter sucesso ou fracasso, mas da piedade dos desconhecidos poderes econômicos superiores…  [15]

Uma regressão ao atavismo das primitivas concepções cósmicas, visto através de uma situação acidental de nossos dias, é sempre um meio de elevar uma cena dramática às alturas da tragédia. Mas nosso tratamento não se limitava a isso. Estava repleto de ênfases significativas ao longo de todo o curso posterior da ação.

No livro de Dreiser, “à custa de preservar a honra da família”, o tio rico de Clyde lhe proporciona o “aparato” de defesa.

Os advogados de defesa não têm nenhuma dúvida essencial de que o crime foi cometido. Apesar disso, inventam uma “mudança de sentimento” experimentada por Clyde sob a influência de seu amor e pena de Roberta. Simplesmente inventado no calor do momento, isto até que não é nada mau.

Mas se torna ainda mais diabólico porque realmente houve tal mudança. Porque esta mudança ocorreu devido a motivos bastante diferentes. Porque realmente não houve crime. Porque os advogados estão convencidos de que fora cometido um crime. E com uma mentira evidente, tão próxima da verdade e ao mesmo tempo tão longe dela, eles procuram, deste modo infame, reabilitar e salvar o acusado.

E se torna ainda mais dramaticamente diabólico porque, no momento seguinte, a “ideologia” de nosso tratamento perturba as proporções e, por outro lado, a indiferença épica da narrativa de Dreiser.

Quase todo o segundo volume é dedicado ao julgamento de Clyde pelo assassinato de Roberta e à perseguição de Clyde até a condenação, a cadeira elétrica.

Como parte do background do julgamento, é indicado que o verdadeiro objetivo do julgamento e da acusação de Clyde, porém, não tem nenhuma relação com ele. O objetivo é apenas criar a popularidade necessária entre a população de fazendeiros do estado (Roberta era filha de um fazendeiro) e o Promotor Público do Distrito, Mason, a fim de que ele obtenha o apoio necessário para ser eleito juiz.

A defesa pega um caso que sabia sem esperança (“na melhor das hipóteses, dez anos numa penitenciária”), também no campo da luta política. Pertencendo ao campo político oposto, seu objetivo principal é usar o máximo de influência para derrotar o ambicioso promotor. De um lado, como do outro, Clyde é apenas um meio para se chegar a um fim.

Já um joguete nas mãos da “cega” Moira, do destino, da “causalidade” à la grecque, Clyde também se torna um joguete nas mãos da nada cega engrenagem da justiça burguesa, engrenagem usada como um instrumento de intriga política.

Assim, é tragicamente expandido e generalizado o destino do caso particular de Clyde Griffiths, que se torna uma genuína “tragédia americana em geral” — uma história característica de um jovem norte-americano do início do século XX.

Todo o emaranhado do enredo dentro do próprio julgamento foi quase inteiramente eliminado pela construção do roteiro, e substituído pelo lance préeleitoral, visível através da manipulada solenidade da corte, usada como nada mais do que um campo de provas de uma campanha política.

Este tratamento fundamental do assassinato determina a trágica intensidade e a reforçada ênfase ideológica também de outra parte do filme e de outra figura: a mãe.

A mãe de Clyde cumpre uma missão. Sua religião é um fanatismo completamente cego. Ela está tão convencida de seu dogma absurdo que sua figura inspira o respeito involuntário e se torna quase monumental; detecta-se o brilho da auréola de um mártir.

Apesar de ela ser a principal personificação da culpa da sociedade norte-americana em relação a Clyde: seus ensinamentos e princípios, uma vez que sua meta era o céu, em vez de treinarem seu filho para o trabalho, foram as premissas iniciais da tragédia que se seguiu.

Dreiser a mostra lutando até o final pela inocência do filho, trabalhando como repórter para um jornal para estar perto do filho, viajando pelos Estados Unidos (como as mães e irmãs dos rapazes de Scottsboro) fazendo palestras, a fim de levantar dinheiro para entrar com um recurso contra o veredicto. Ela definitivamente adquire a grandeza auto-sacrificante de uma heroína. Na obra de Dreiser esta grandeza irradia simpatia pelas suas doutrinas morais e religiosas.

Em nosso tratamento, Clyde, em sua cela da morte, confessa à mãe (em vez de ao reverendo McMillan, como no romance) que, apesar de não ter matado Roberta, planejou fazê-lo.

A mãe, para quem a palavra é a ação, e o desejo de pecar é o mesmo que pecar, fica chocada com a confissão. De um modo completamente oposto ao da grandeza da mãe do romance de Gorki, esta mãe também se torna a traidora do filho. Quando vai ao governador com uma petição pela vida de seu filho, se surpreende com a pergunta direta: “A senhora acredita na inocência de seu filho?” Neste momento decisivo para o destino do filho — ela fica em silêncio.

O sofisma cristão de uma unidade ideal (de ação e pensamento) e uma unidade material (de facto), uma paródia da dialética, leva ao trágico desenlace final.

A petição é desprezada e o dogma e o dogmatismo de sua portadora são do mesmo modo desacreditados. O momento fatal de silêncio da mãe não pode ser revelado nem pelas lágrimas que derrama quando se despede para sempre do filho que, com suas próprias mãos, entregou às garras do Baal cristão. Quanto mais pungente se torna a tristeza destas últimas cenas, tanto mais amargamente elas açoitam a ideologia que gerou esta tristeza.

Em minha opinião, nosso tratamento conseguiu rasgar algumas das máscaras — apesar de não todas — da figura monumental da mãe.

E Dreiser foi o primeiro a elogiar tudo o que foi acrescentado a sua obra por nosso tratamento. [16]

Em nosso tratamento, a tragédia dentro da moldura do romance foi consumada muito antes das cenas finais. O final — a cela — a cadeira elétrica — a brilhantemente polida escarradeira (que vi em Sing-Sing) a seus pés — tudo isto é nada mais do que um final de uma personificação particular da tragédia que continua a ser encenada a toda hora e a cada minuto nos Estados Unidos, fora das capas dos romances.

A escolha de uma fórmula tão “seca” e “vulgarizada” de tratamento social permite mais do que uma intensificação de situações e uma revelação aprofundada de imagens e personagens.

Tal tratamento age profundamente também sobre métodos puramente formais. Foi graças particularmente a isto e a partir disto que formulei conclusivamente o conceito do “monólogo interior” no cinema, uma idéia que por seis anos tive em mente. Antes do advento do som tornar possível sua realização prática.

Como vimos, era necessária uma clareza extraordinariamente diferenciada no modo de expor o que estava acontecendo com Clyde antes do “acidente” com o barco, e percebemos que desenvolver uma apresentação externa disto não resolveria nosso problema.

Todo o arsenal de sobrancelhas arqueadas, olhos agitados, respiração ofegante, posturas contorcidas, rostos petrificados ou primeiros planos de mãos se mexendo convulsivamente, era inadequado para expressar as sutilezas da luta interior com todas as suas nuanças.

A câmera tinha de ir “dentro” de Clyde”. Auditiva e visualmente, era preciso mostrar a febril corrida de pensamentos intercalados com a realidade externa — o barco, a moça sentada do lado oposto a ele, suas próprias ações. A forma do “monólogo interior” nascera. Esses esboços de montagem eram maravilhosos.

Até a literatura é quase impotente neste campo. Limita-se ou à trajetória primitiva usada por Dreiser para descrever os murmúrios interiores de Clyde, [17] ou às piores tiradas pseudoclássicas dos heróis de Estranho interlúdio, de O’Neil, que conta à platéia, em “apartes”, o que eles estão pensando, para suplementar o que dizem uns aos outros. Neste caso, o teatro vacila mais do que a prosa literária ortodoxa.

Apenas o elemento cinematográfico domina um meio capaz de fazer uma adequada apresentação de todo o curso de pensamento de uma mente perturbada.

Ou, se a literatura pode fazê-lo, é apenas a literatura que ultrapassa os limites de seu enclausuramento ortodoxo. A mais brilhante realização da literatura neste campo foram os imortais “monólogos interiores” de Leopold Bloom em Ulisses. Quando Joyce e eu nos conhecemos em Paris, ele estava muito interessado em meus planos quanto ao monólogo interior cinematográfico, cujo alcance é muito mais amplo do que o permitido pela literatura.

Apesar de sua quase total cegueira, Joyce desejava ver aquelas partes de Potemkin e Outubro que, com o meio expressivo da cultura do cinema, se movem ao longo de linhas análogas.

O “monólogo interior”, como um método literário que abole a distinção entre sujeito e objeto, expondo a reexperiência do herói de uma forma cristalizada, é observado pela primeira vez pelos pesquisadores do experimentalismo literário em 1887, na obra de Edouard Dujardin, pioneiro do “fluxo da consciência”, Les lauriers sont coupés.

Como tema, como percepção do mundo, como “sensação”, como descrição de um objeto, mas não como método, pode-se encontrá-lo, é claro, ainda antes. “Escorregar” do objetivo para o subjetivo, e de volta novamente, é uma característica dos românticos — E.T.A. Hoffmann, Novalis, Gérard de Nerval. [18] Mas como um método de estilo literário, em vez de um entrelaçamento da história, ou uma forma de descrição literária, vamos encontrá-lo pela primeira vez em Dujardin, como um método específico de exposição, como um método específico de construção; sua absoluta perfeição literária é conseguida por Joyce e Larbaud, trinta e um anos mais tarde.

Encontra plena expressão, porém, apenas no cinema.

Porque apenas o cinema sonoro é capaz de reconstruir todas as fases e todas as especificidades do curso do pensamento.

Que maravilhosos esboços eram aqueles roteiros de montagem!

Como o pensamento, eles se realizariam algumas vezes através de imagens visuais. Com som. Sincronizado ou não sincronizado. Depois, como sons. Sem forma. Ou através de imagens sonoras: sons objetivamente representativos…

Então, de repente, palavras definidas, intelectualmente formuladas — tão “intelectuais” e desapaixonadas como palavras pronunciadas. Através de uma tela preta, uma impetuosa visualidade sem imagem.

Então, num discurso apaixonado e desconectado. Nada além de nomes. Ou nada além de verbos. Então, interjeições. Com ziguezagues de formas sem objetivo, deslizando junto em sincronia.

Depois, uma precipitação de imagens visuais, sobre silêncio total.

Em seguida, ligadas a sons polifônicos. Depois, imagens polifônicas. E aí, ambas ao mesmo tempo.

Ora interpoladas no curso exterior da ação, ora interpolando elementos da ação externa no monólogo interior.

Como que apresentando dentro de personagens o jogo interior, o conflito de dúvidas, as explosões de paixão, a voz da razão, rapidamente ou em câmera lenta, marcando os ritmos diferenciados de um e outro e, ao mesmo tempo, contrastando com quase total falta de ação externa: um febril debate interior atrás da máscara petrificada do rosto.

Como é fascinante ouvir o rumor do próprio pensamento, particularmente num estado de excitação, para perceber a si mesmo, olhando e ouvindo a sua mente. Como você fala “para si mesmo”, tão diferente de “para fora de si mesmo”. A sintaxe do discurso interior, distintamente da do discurso exterior. As trêmulas palavras interiores que correspondem às imagens visuais. Contrastes com circunstâncias externas. Como agem reciprocamente…

Ouvir e estudar, para entender leis estruturais e reuni-las numa construção de monólogo interior sobre a tensão extrema do esforço da trágica reexperiência. Como é fascinante!

E que campo para a invenção criativa e a observação. E como se torna óbvio que o material do cinema sonoro não é o diálogo.

O verdadeiro material do cinema sonoro é, evidentemente, o monólogo.

E quão inesperadamente, em sua incorporação prática de um caso imprevisto, particular, concreto a ser expresso, remete à teoricamente muito esperada “última palavra” da forma da montagem em geral. Porque a forma da montagem, como estrutura, é uma reconstrução das leis do processo do pensamento.

Aqui, a particularidade de tratamento, fertilizada por um novo e não por um anterior método formal, abandona seus limites e generaliza, num grau teórico novo e, em princípio, a teoria da forma da montagem como um todo.

(Porém, isto de modo algum implica que o processo de pensamento como uma forma de montagem deva necessariamente ter o processo de pensamento como seu sujeito!)

As notas sobre esta guinada de 180 graus na cultura do cinema sonoro — definharam numa mala no hotel e foram eventualmente enterradas, ao modo de Pompéia, embaixo de uma massa de livros, e enquanto esperavam pela realização…

Uma tragédia americana foi dada para Josef von Sternberg filmar, e ele eliminou diretamente, literalmente, tudo no qual nosso tratamento se baseara, e restaurou tudo o que havíamos eliminado.

Quanto ao “monólogo interior”, não ocorreu a ele…

Sternberg limitou-se a dar atenção aos desejos do estúdio — e filmou um simples caso policial.

O velho leão grisalho, Dreiser, batalhou por nossa “distorção” de sua obra, e levou a Paramount, que filmara uma versão formal e externamente correta, aos tribunais.

Dois anos mais tarde, Estranho interlúdio, de O’Neil, foi “adaptado” para o cinema, e nos presentearam com duplas e triplas vozes explanatórias em redor do rosto silencioso do herói, dando uma entonação adicional à dramaturgia cuneiforme do dramaturgo. Um infame arremedo do que poderia ser conseguido com os princípios corretos de montagem — o monólogo interior!

Obra de um tipo semelhante. Solução pelo tratamento da obra à mão. Opinião pelo tratamento. Mas de maior significação, um papel construtivamente artístico e formalmente frutífero para a ideologia “cansativa”, “obrigatória”, “imposta” e a restrição ideológica.

Não uma realização esquemática, mas um organismo vivo de produção — este é o trabalho fundamental com que se defronta a direção coletiva do Terceiro Ano do Instituto Estatal de Cinema. E por todos os meios procuraremos os temas para este trabalho no oceano temático de aplicação múltipla à nossa volta.

 

Notas
[1] James Joyce, Ulisses, tradução de Antônio Houaiss, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967.
[2] Comitê de Repertório, encarregado de supervisionar os repertórios de teatro e cinema.
[3] N.R. Eisenstein refere-se aqui a Mozart e Salieri, de Pushkin, que serviu de base à peça Amadeus — fato pouco conhecido.
[4] N.S.E.: “Quem são os amigos do povo”, in Lenin, Sochineniya, Moscou, 1929.
[5] Georgi Plekhanov (1856-1918) teórico e crítico de arte russo, defensor de uma estética marxista.
[6]  N.S.E.: Citado por Herbert Gorman, The Incredible Marquis, Nova York, 1929.
[7] A idéia deste projeto não-realizado surgiu em 1931, pouco antes do início das filmagens para o não concluído Que viva México! Um romance de Anatoli Vinograd, Chernii Consul (O cônsul negro) e outro de John Vandercock, Black Majesty (Majestade negra), serviram de ponto de partida para o roteiro. A idéia foi retomada em 1934, e o ator e cantor norte-americano Paul Robeson viajou a Moscou para encontrar-se com Eisenstein. Ele seria o principal intérprete do filme. O roteiro não-filmado foi usado para um curso de direção organizado por Eisenstein na VGIK, Instituto Estatal de Cinema, em Moscou. 
[8] N.S.E.: in Jean Lucas Dubreton, The Fourth Musketeer, the life of Alexandre Dumas, Nova York, 1928. 
[9] Ibid. 11. 
[10] Tretja Meschenskaia, filme soviético realizado em 1927 por Abram Matveevich Room (1894-1976). 
[11] Crítico, roteirista, autor de ensaios sobre literatura e cinema, Shklovski (1893-1984) publicou em 1972 um livro sobre Eisenstein, Kniga ob Eisenstein. 
[12] Isaac Babel (1894-1941) num texto sobre Maupassant. Romancista soviético, autor, entre outros, de Cavalaria vermelha (Konarmia) que Eisenstein tentou filmar em 1924, pouco antes de realizar Greve, e de Benia Kriks, história que faz parte dos Contos de Odessa, que Eisenstein tentou filmar em 1925, pouco depois de realizar O encouraçado Potemkin. Babel trabalhou com o diretor nas duas tentativas de adaptação. Em 1936, depois de interrompida a primeira tentativa de filmagem de O prado de Bejin, a partir de um roteiro de Eisenstein e Alexandre Rjechevski (1903-67), Babel colaborou com o diretor para a segunda tentativa de realizar o filme, por fim definitivamente proibido em março de 1937. 
[13] N.S.E.: Yegor Bulichev era a primeira parte de uma planejada trilogia sobre os primeiros anos da Revolução Soviética. 
[14] O roteiro de An American Tragedy foi escrito com a colaboração de Gregori Alexandrov e Ivor Montagu em 1931 para a Paramount. Eisenstein, com os mesmos colaboradores, fez também uma adaptação de L’Or (Ouro) de Blaise Cendrars: Sutter’s Gold (Ouro de Sutter). Os dois projetos recusados foram reunidos em um livro organizado por Montagu em 1969, With Eisenstein in Hollywood, International Publishers, Nova York, 1969. 
[15] N.S.E.: Friedrich Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico. [Tradução de Almir Matos, Rio de Janeiro, Vitória, 1962.] 
[16] Em carta datada de primeiro de setembro de 1931, e conservada nos arquivos de Eisenstein em Moscou, Theodore Dreiser se diz indignado com a recusa da Paramount. Diz ainda que tem a maior admiração pelo notável trabalho de adaptação feito por Eisenstein e pergunta se ele acredita que o filme possa ser realizado na Rússia. 
[17] N.S.E.: Um exemplo: “Você deve salvá-la. Mas ao mesmo tempo não deve. Porque, veja como ela se desespera. Está aterrorizada. É incapaz de salvar-se, e, por causa de seu terror selvagem, se você chegar perto dela agora, pode causar também sua própria morte. Mas você deseja viver! E a vida dela fará com que sua vida não valha a pena daqui por diante. Descanse apenas um minuto — uma fração de minuto! Espere — espere — não se deixe levar por compaixão. E logo… logo… mas olhe… está terminando. Ela está se afogando agora. Você nunca, nunca mais voltará a vê-la viva… nunca mais.” 
[18] N.S.E.: Ver René Bizert, La Double vie de Gérard de Nerval, Paris, 1928. a Em francês no original: em estado de rebelião. b Em francês no original: folhetim. c Em francês no original: mictório. d Em francês no original: à grega..

Edição: Zahar
Ilustração: “Para meu melhor amigo junto com meu melhor amigo nos E.U.A.  Walt Disney. Hollywood, 1930”