Rimas de Miguel Anjo

Cinco poemas de Michelangelo Buonarroti em torno a si e à Capela Sistina

 

Vivo da minha morte, e a bem ver,
feliz vivo de infeliz sorte;
e quem viver não sabe de angústia e morte,
no fogo venha, onde me destruo a arder.

Vivo della mie morte e, se ben guardo,
felice vivo d’infelice sorte;
e chi viver non sa d’angoscia e morte,
nel foco venga, ov’io mi struggo e ardo.

 

 

Pintando o teto da Sistina

A Giovanni de Pistoia

Eu já fiz um bócio neste tormento,
como na Lombardia a água com sujeira
faz aos gatos lá ou onde queira,
um ventre que força o queixo num momento.

Um peito de harpia, a barba ao alento,
a memória pesa o crânio na traseira;
o pincel sobre a face qual goteira,
me faz, gotejando, um rico pavimento.

Os lombos na pança se me entraram,
e o cu contrapesa de garupa o dorso,
e passos sem os olhos movo em vão.

Adiante meus couros se estiraram,
esticando-os atrás me contorço,
qual um arco sírio em tensão.

Uma estranha ilusão
surge ao juízo que a mente porta,
qual numa zarabatana um tanto torta.

Minha pintura morta,
defende ora, Giovanni, e o meu valor,
não sendo um bom lugar, nem eu pintor.

I’ho già fatto un gozzo in questo stento,
come fa l’acqua a’ gatti in Lombardia,
o ver d’altro paese che si sia,
ch’a forza ‘l ventre appica sotto ‘l mento.

La barba al cielo, e la memoria sento
in sullo scrignio, e ‘l petto fo d’arpia;
e ‘l pennel sopra ‘l viso tuttavia
mel fa, gocciando, un ricco pavimento.

E lombi entrati mi son nella peccia,
e fo del cul per contrapeso groppa,
e’ passi senza gli occhi muovo invano.

Dinanzi mi s’allunga la corteccia,
e per piegarsi adietro si ragroppa,
e tendomi con’arco soriano.

Però fallace e strano
surgie il giudizio che la menta porta;
chè mal si tra’ per cerbottana torta.

La mia pittura morta
difendi orma’, Giovanni, e ’l mio onore,
non sendo in loco bon, nè io pittore.

Minha vocação

Para fiel exemplo à minha vocação
no parto me foi dada a beleza,
que de ambas artes me é lucerna e espelho.
Se outro se pensa, é falsa opinião.
Isto só leva o olho àquela alteza
que pra aqui pintar e esculpir me aparelho.

Se os juízos temerários e tolos
ao senso puxam a beldade, que responde
e leva ao céu todo intelecto são,
do mortal ao divino não vão os olhos
enfermos, e firmes sempre lá donde
ascender sem graça é pensamento vão.

Per fido esemplo alla mia vocazione
nel parto mi fu data la bellezza,
che d’ambo l’arti m’è lucerna e specchio.
S’altro si pensa, è falsa opinione.
Questo sol l’occhio porta a quella altezza
c’a pingere e scolpir qui m’apparecchio.

S’e’ giudizi temerari e sciocchi
al senso tiran la beltà, che muove
e porta al cielo ogni intelletto sano,
dal mortale al divin non vanno gli occhi
infermi, e fermi sempre pur là d’ove
ascender senza grazia è pensier vano.

O modelo e a estátua

A Vittoria Colonna (segunda versão)

Se bem concebeu a divina parte
o rosto e os atos de alguém, aquela
dupla força duma coisa vil modela,
dá vida a pedras, e não é força d’arte.

Nem de outro modo num rude encarte,
até que a pronta mão ao pincel apela,
de doutas visões a mais lúcida e bela,
prova e revê, e sua estória comparte.

Também de mim modelo de pouca estima
eu me pari, para de vós renascer
alto e perfeito, dama digna e supina.

Se ao pouco acresce e ao meu muito lima
vossa graça, que pena há de merecer
meu feroz ardor, se mo castiga e ensina?

Se ben concetto ha la divina parte
il volto e gli atti d’alcun, po’ di quello
doppio valor con breve e vil modello,
dà vita a’ sassi, e non è forza d’arte.

Né altrimenti in più rustiche carte,
anz’una pronta man prenda ‘l penello,
tra’ dotti ingegni il più accorto e bello
pruova e rivede, e suo storie comparte.

Simil di me model di poca istima
mie parto fu, per cosa alta e perfetta
da voi rinascer po’, donna alta e degna.

Se ‘l poco accresce, e ‘l mie superchio lima
vostra mercé, qual penitenza aspetta
mie fiero ardor, se mi gastiga e ’nsegna?

Em Roma, no Pontificado de Júlio II

Aqui se faz elmo de cálice e espada,
e o sangue de Cristo se vende em pujança,
e cruz e espinho são escudo e lança;
e até de Cristo a paciência acaba!

Mas que não volte a esta parada;
iria o sangue seu às estrelas sem fiança,
em Roma à venda sua pele balança;
e a todo bem fecharam a estrada.

Se eu quisesse possuir um tesouro,
porque aqui minha obra foi partida,
à Medusa de branco cedia com’um mouro.

Mas se alto no céu a pobreza é querida,
quem se restaurará pro mundo vindouro,
se um outro sinal sufoca a outra vida?

Qua se fa elmi di calici e spade,
e ‘l sangue di Cristo si vend’ a giumelle,
e croce e spine son lance e rotelle;
e pur da Cristo pazienza cade!

Ma non ci arivi più ‘n queste contrade,
chè n’andre’ ‘l sangue suo ‘nsin alle stelle,
poscia c’a Roma gli vendon la pelle;
e ècci d’ogni ben chiuso le strade.

S’i’ ebbi ma’ voglia a posseder tesauro,
per ciò che qua opra da me è partita,
può quel nel manto che Medusa in Mauro.

Ma se alto in cielo è povertà gradita,
qual fia di nostro stato il gran restauro,
s’un altro segno amorza l’altra vita?

A morte de Cristo

Felizes tanto quanto turbados e tristes,
que tu sofresses, e não mais eles, a morte,
ficaram os eleitos, já que a tranca forte
do céu, da terra a nós com sangue abriste.

Felizes; porque, criados, os redimiste
do primeiro erro de sua mísera sorte.
Tristes; ao ouvir que com pena áspera e forte,
a servo dos servos na cruz te reduziste.

Donde vens, quem és, o céu sinalizou,
escurecendo seus olhos, turvou as águas,
tremeram os montes, e na terra abriu um abismo;

do tenebroso reino os Pais resgatou,
os anjos tortos mergulhou em mais mágoas:
gozou só o homem, renascido no batismo.

Non fur men lieti che turbati e tristi,
che tu patissi, e non già lor, la morte,
gli spirti eletti, onde le chiuse porte
del ciel, di terra a l’uom col sangue apristi.     

Lieti; poichè, creato, il redemisti
dal primo error di suo misera sorte.
Tristi; a sentir ch’a la pena aspra e forte,
servo de’ servi in croce divenisti.

Onde e chi fusti il ciel ne diè tal segno,
che scurò gli occhi suoi, la terra aperse,
tremarono i monti, e torbide fur l’acque;

tolse i gran Padri al tenebroso regno,
gli angeli brutti in più doglia sommerse:
godè sol l’uom, ch’al battesmo rinacque.

 

*Os poemas originais não contêm títulos. Os dados nessa edição são indicações livres para mera ilustração. 

Tradução: Marcelo Consentino