Quando despertarmos de entre os mortos

Cenas da tragédia homônima de Henrik Ibsen. 1886 d.C.

Tradução de Vidal de Oliveira. Editora Globo.

oferecimento

 

 

 

 

Primeiro Ato

 

RUBEK (sentado à sua mesa, considera-a durante algum tempo com olhar fixo e grave; levanta-se depois, dá alguns passos na direção dela e diz com voz abafada)
Eu bem te havia reconhecido, Irene.

A ESTRANGEIRA (com voz apagada, pousando a taça)
Realmente, Arnold, como adivinhaste?

RUBEK (sem responder)
Creio que tu também me reconheces.

A ESTRANGEIRA
Oh! E muito diferente!

RUBEK
Diferente, por quê?

A ESTRANGEIRA
Porque ainda estás vivo.

RUBEK (sem compreender)
Vivo?…

A ESTRANGEIRA (ao cabo de um instante)
Quem era aquela outra? A que estava sentada perto de ti, aí na mesa?

RUBEK (com alguma hesitação)
Era… minha mulher.

A ESTRANGEIRA (meneando lentamente a cabeça)
Ah! muito bem, Amold. Alguém com quem nada tenho a ver…

RUBEK (com hesitação)
Não… realmente…

A ESTRANGEIRA
… que encontraste quando eu não estava mais viva.

RUBEK (olhando-a mais fixamente)
Quando não estavas mais?… que queres dizer, IRENE?

IRENE (sem responder)
E a criança? Como vai ela, bem?… Nosso filho sobrevive a mim na glória e nas honrarias?…

RUBEK (sorri como a uma recordação longínqua)
Nosso filho? Sim, era assim que nós o chamávamos outrora.

IRENE
Quando eu vivia, sim.

RUBEK (buscando dar um tom alegre à conversa)
Pois é, Irene! Imagina só: “nosso filho”, célebre de uma extremidade à outra da terra. Suponho que leste isso, não?

IRENE (inclinando a fronte)
E ele tomou o pai igualmente célebre. Não era esse o teu sonho?

RUBEK (comovido, baixando a voz) A ti, Irene, devo tudo, tudo. Obrigado!

IRENE (reflete um momento, imóvel)
Se ao menos naquele tempo, Arnold, eu tivesse feito o meu dever…

RUBEK
Como?

IRENE
Eu deveria ter matado a criança.

RUBEK
Que dizes? Matá-la?

IRENE (em voz baixa)
Matá-la, antes de te deixar. Esmagá-la… Reduzi-la a pó…

RUBEK
Não o poderia fazer, Irene. Não terias tido coragem para isso.

IRENE
É verdade… Naquele tempo, meu coração era diferente.

RUBEK
Mas depois?…

IRENE
Depois, matei-o em várias ocasiões. Em pleno dia e na sombra… Matei-o em acessos de ódio… de rancor… de dores…

RUBEK (caminha até à mesa de Irene e baixa a voz)
Irene… depois de tantos anos… dize-me enfim: por que te foste? Por que desapareceste sem deixar vestígios… sem que eu te pudesse encontrar outra vez?…

IRENE (movendo lentamente a cabeça)
Para que dizê-lo, Arnold… agora que não mais existo?

RUBEK
Foi por amor a outro?

IRENE
Por amor a alguém que não mais precisava de meu amor, que não mais precisava de minha vida.

RUBEK (para desviar o curso de seus pensamentos)
Não falemos mais no que se passou…

IRENE
Tens razão. Não falemos mais do que pertence a outro mundo… a um mundo que não é mais o meu.

RUBEK
Onde estiveste, Irene? Escapaste a todas as minhas buscas.

IRENE
Mergulhei nas trevas… quando vi a criança inundada de glória e de luz.

RUBEK
Viajaste muito?

IRENE
Sim, percorri muitas regiões, muitos países.

RUBEK (olhando-a com interesse)
E que fizeste, Irene?

IRENE (volvendo os olhos para ele)
Espera um pouco, para eu me lembrar… Ah! Sim, agora me lembro. Subi num estrado giratório, num café-concerto. Figurei, nua, em quadros vivos. Recolhi muito dinheiro. Isso não me aconteceu em tua casa. Era coisa que não tinhas… E depois conheci homens a quem fiz perder o juízo. Isso também não me aconteceu em tua casa. Eras mais resistente.

RUBEK (desviando o assunto)
E depois te casaste?

IRENE
Sim, um deles desposou-me.

RUBEK
Quem era?

IRENE
Era um sul-americano… diplomata de alta categoria… (Olha para a frente com um sorriso que parece petrificar-lhe os lábios.) Deixei-o louco, completamente louco… incuravelmente, irremediavelmente louco… Era bem engraçado, podes crer… Poderia ter rido interiormente a ponto de arrebentar a alma… se eu possuísse alma.

RUBEK
Onde está ele agora?

IRENE
Por aí, num cemitério qualquer… sob um jazigo soberbo… com uma bala na cabeça.

RUBEK
Matou-se?

IRENE
Sim. Fez questão de se antecipar a mim.

RUBEK
Lamentas a sorte dele, Irene?

IRENE (sem compreender)
Lamentar quem?

RUBEK
Mas… O Sr. de Satow!

IRENE
Ele não se chamava Satow.

RUBEK
Como assim?

IRENE
Este é o meu segundo marido, um russo.

RUBEK
E esse onde está?

IRENE
Muito longe, no Ural… no meio das suas minas de ouro.

RUBEK
Vive lá?

IRENE
Viver? Viver?. . . Para falar a verdade, eu o matei também …

RUBEK (sobressaltando-se)
Mataste-o!?

IRENE
… com um punhal fino que sempre guardo na minha cama.

RUBEK (explodindo)
Não acredito, Irene.

IRENE (sorrindo suavemente)
Podes crer-me, Arnold.

RUBEK (olhando-a com compaixão)
Nunca tiveste filhos?

IRENE
Tive muitos filhos.

RUBEK
E onde estão eles?

IRENE
Matei-os.

RUBEK (com severidade)
Estás mentindo, Irene.

IRENE
Matei-os, sim, matei-os sem piedade… à medida que surgiam à luz… oh! não é bem isso… Muito, muito antes… um depois do outro.

RUBEK (gravemente, tristemente)
Há um sentido oculto em todas as tuas palavras.

IRENE
Que posso fazer? Cada uma delas me é soprada ao ouvido.

RUBEK
Penso que sou o único a adivinhar-lhes o sentido.

IRENE
Devias ser o único.

RUBEK (apóia às mãos na mesa e fixa em Irene um olhar profundo)
Há em ti cordas que estão rotas.

IRENE (suavemente)
É sem dúvida o que acontece toda a vez que morre uma mulher moça, de sangue rico.

RUBEK
Oh! Irene, chega de idéias insensatas!… Estás viva! Bem viva!

IRENE (ergue-se lentamente da cadeira e diz com voz trêmula)
Fazia anos que eu estava morta. Vieram amarrar-me. Ataram-me as mãos atrás das costas. Puseram-me num sepulcro e fecharam-no com barras de ferro, depois de lhe terem acolchoado as paredes, de modo que ninguém pudesse ouvir os lamentos que vinham do túmulo… Mas eis que, pouco a pouco, eu começo a ressuscitar de entre os mortos. (Torna a sentar-se.)

RUBEK (depois de um silêncio)
Acusas-me? Achas que sou culpado?

IRENE
Sim.

RUBEK
Culpado do que chamas… a tua morte?

IRENE
Culpado de me ter sido necessário morrer. (Mudando de tom, com indiferença.) Por que ficas de pé, Amold?

RUBEK
Permites que eu me sente?

IRENE
Sim… Não tenhas medo do frio. Creio que não estou inteiramente gelada.

RUBEK (aproxima uma cadeira da mesa e senta-se)
Vês, Irene, estamos sentados um perto do outro como antigamente.

IRENE
Deixando uma pequena distância entre nós… como antigamente.

RUBEK (aproximando-se dela)
Naquele tempo era preciso.

IRENE
Era preciso?

RUBEK (em tom peremptório)
Era preciso que houvesse um espaço entre nós…

IRENE
Era mesmo preciso, Arnold?

RUBEK (continuando)
Lembras-te de tua resposta, quando te propus que me acompanhasses para um país distante?

IRENE
Levantei três dedos para o ar e prometi seguir-te até o fim do mundo e até o fim da vida… E prometi servir-te em tudo.

RUBEK
Como modelo para a minha obra…

IRENE
… Em toda a minha nudez…

RUBEK (comovido)
E tu me serviste realmente, Irene… com uma alegria… um contentamento sem reservas.

IRENE
Com todo o sangue de minha mocidade!

RUBEK (inclinando a cabeça com um olhar de gratidão)
E a pura verdade.

IRENE
Prosternei-me a teus pés e te servi, Arnold. (Estendendo para ele as mãos unidas.) Mas tu… tu!…

RUBEK (protestando)
Nunca fui culpado para contigo, Irene!

IRENE
Sim! Foste culpado para com o que havia de essencial no mais profundo de meu ser.

RUBEK (recuando)
Eu?…

IRENE
Sim, tu! Eu me entreguei a teus olhos, inteiramente, sem reservas… (Em voz baixa.) E nem uma vez me tocaste.

RUBEK
Mas não compreendes, Irene, que houve dias em que a tua beleza esteve a ponto de me fazer perder o juízo?

IRENE (continuando sem se perturbar)
No entanto, creio que se me tivesses tocado eu te teria deixado morto ali mesmo. Porque eu sempre trazia comigo um comprido estilete escondido nos meus cabelos. (Passa, com ar pensativo, a mão pela testa.) Não importa, porém. Quando eu penso que pudeste… que pudeste…

RUBEK (olhando-a com insistência)
Eu era artista, Irene.

IRENE (com voz sombria)
Justamente!… Justamente!…

RUBEK
Artista antes de tudo… Doente pelo desejo de criar a grande obra de minha vida… (Mergulha nas próprias recordações.) Devia chamar-se O dia da ressurreiçãoe revestir o aspecto de uma mulher moça que desperta do sono da morte…

IRENE
Nosso filho!. ..

RUBEK
E essa mulher que despertava devia reunir em si tudo que há de nobre, de altivo, de ideal sobre a terra… Encontrei-te. Tinhas tudo do que precisava. E te prestaste tão completamente, tão alegremente às minhas intenções! E abandonaste a família, o lar, para seguir-me!

IRENE
Foi toda a minha infância que despertou para seguir-te.

RUBEK
Era exatamente isso que te tomava tão preciosa para mim… Preciosa e única!… A meus olhos, te tornaste uma criatura sagrada que não se devia tocar, nem de leve, a não ser pelo pensamento… e com unção. Nesse tempo eu era moço, Irene. E habitava-me a idéia supersticiosa de que o menor desejo sensual que sentisse por ti profanaria minha alma e me impediria alcançar o fim sonhado… Havia verdade nisso, ainda hoje o creio.

IRENE (inclinando a cabeça com uma nuança de ironia)
Primeiro a obra… o ser vivo depois.

RUBEK
Podes pensar o que quiseres. Mas naquele momento eu pertencia inteiramente à minha missão. E experimentava com isso tão grande felicidade!…

IRENE
E realizaste teu ideal, Arnold?

RUBEK
Graças a ti, Irene!… Sim. Realizei meu ideal. Eu queria criar a mulher pura, tal como ela devia despertar no dia da ressurreição; não intranquila pelo pressentimento de coisas novas, imprecisas, desconhecidas… mas serena… depois de um longo sono sem sonhos, na santa alegria de tornar a encontrar-se em sua pureza original. — A mulher terrena, humana — numa região mais elevada, mais livre, mais radiosa… (Baixo.) Foi assim que a criei. E foi tua forma que lhe dei, Irene.

IRENE (pousa as mãos espalmadas sobre a mesa e reclina-se no espaldar da cadeira)
E depois disso não precisaste mais de mim…

RUBEK (com uma censura na voz)
Irene!

IRENE
Tornei-me inútil para ti…

RUBEK
Como podes dizer isso?

IRENE
E saíste à procura de um novo ideal!

RUBEK
Um ideal que não encontrei…

IRENE
Não tens outros modelos, Amold?

RUBEK
Não eras um modelo para mim: eras a própria fonte da minha criação.

IRENE (após um silêncio)
Que poema fizeste depois? Que poema de mármore, depois de minha partida?

RUBEK
Desde esse dia não fiz nenhum. Enchi o tempo com coisinhas, com toda a espécie de modelagens.

IRENE
E a mulher com quem vives agora?…

RUBEK (interrompendo-a violentamente)
Não fales nela neste momento. Isso me faz mal.

IRENE
Onde pretendes ir com ela?

RUBEK (em tom de abatimento e de fadiga)
Vou provavelmente fazer uma aborrecida viagem de barco, para o norte, seguindo a costa.

IRENE (olha-o com um sorriso apenas perceptível e diz em voz baixa)
Seria melhor ires para a montanha. E procura subir tão alto quanto puderes, sempre, sempre mais alto, Arnold!

RUBEK (atento)
Não tencionas ir também?

IRENE
Terias coragem para encontrar-me outra vez?

RUBEK (hesitante, presa de uma luta interior)
Se pudéssemos!… oh! se pudéssemos!…

IRENE
Por que não poderíamos. …. se é o que queremos? (Olha-o e diz em voz baixa com as mãos juntos.) Vem, Amold, vem! Volta para mim!

(Maja, radiante de alegria, chega pelo canto do hotel e precipita-se para a mesa onde estavam sentados.)

MAJA (do canto do hotel, sem olhar em tomo de si)
Podes dizer o que quiseres, Rubek, eu… (Detém-se ao ver Irene.) Oh! perdão! Vejo que fizeste relações…

RUBEK (com voz cortante)
Refiz relações. (Ergue-se.) Que ias dizendo?

MAJA
Queria somente dizer-te que… que farás o que quiseres, mas eu não irei contigo naquele horrível barco.

RUBEK
Por quê?

MAJA
Porquê quero andar pela montanha e pela floresta.. . aí está! (Carinhosa.) Concede-me isso, Rubek. Verás como depois eu vou ser boazinha.

RUBEK
Quem te meteu essas idéias na cabeça?

MAJA
Foi ele, aquele endiabrado matador de ursos… Não podes imaginar as maravilhas que ele conta da montanha e da vida que lá se leva!… E espantoso, horrível, apavorante a julgar pela maioria das histórias que ele conta… Quase tenho certeza que ele mente… mas, assim mesmo, acho nisso uma incrível atração… Dize! Dás licença que eu o acompanhe? Só para ver se é verdade o que ele diz. Posso ir, Rubek?

RUBEK
Não quero outra coisa! Vai à montanha… tão longe quanto te agrade… e fica o tempo que quiseres. E possível que eu siga o mesmo caminho.

MAJA (ardentemente)
Não, não, não peço isso! Não quero sacrifícios.

RUBEK
Irei até os fioells. Estou decidido.

MAJA
Oh! obrigada, obrigada!… Posso dizer já ao matador de ursos?

RUBEK
Dize o que quiseres ao matador de ursos.

MAJA
Obrigada! obrigada! obrigada! (Quer pegar-lhe a mão, ele a retira.) Francamente! Hoje estás gentil!… (Corre para o hotel e entra. No mesmo instante entreabre-se mansamente a porta do pavilhão, sem ruído. A diaconisa coloca-se, sem ser notada, no vão entreaberto e aí fica, atenta.)

RUBEK (em tom resoluto, virando-se para Irene)
Então nos encontraremos lá em cima?

IRENE (ergue-se lentamente)
Sim, certamente, nós nos encontraremos. Procurei-te por tanto tempo.

RUBEK
Desde quando começaste a procurar-me?

IRENE (com acento de amarga ironia)
Desde que percebi a dádiva que te havia feito… Dei-te, Arnold, aquilo que não podemos dispensar, o que deveria conservar-se inseparável de mim mesma.

RUBEK (meneando a cabeça)
Sim, é uma verdade cruel! Deste-me três ou quatro dos teus melhores anos.

IRENE
Dei-te muito mais do que isso, porque eu era pródiga, naquele tempo!

RUBEK
Sim, Irene, eras pródiga. Deste-me toda a tua adorável nudez…

IRENE
Para contemplar…

RUBEK
E para glorificar…

IRENE
Sim, para daí tirares a tua própria glória e a da criança.

RUBEK
E a tua, Irene.

IRENE
Mas esqueces a dádiva mais preciosa.

RUBEK
Mais preciosa?… Qual?

IRENE
Minha alma. Minha alma moça e viva. E formou-se um grande vácuo em mim… (Olha-o fixamente.) Foi isso que me fez morrer, Arnold. (A diaconisa abre inteiramente a porta e deixa passar Irene, que entra no pavilhão.)

RUBEK (segue-a muito tempo com os olhos e murmura finalmente)
Irene…

 

PANO

 

Segundo Ato

 

IRENE
Depois que acabei de te servir com a minha alma e com o meu corpo, e que a estátua — nosso filho, como dizíamos — ficou terminada… fiz-te a mais preciosa oferenda, desaparecendo para sempre.

RUBEK (baixando a cabeça)
E deixaste o vácuo em minha vida…

IRENE (enrubescendo subitamente)
Era isso o que eu queria!… Depois daquele filho único, não deverias criar mais nada, nunca mais, nunca mais!

RUBEK
Era um pensamento de ciúme?

IRENE (com frieza)
Creio que era ódio.

RUBEK
Ódio? Contra mim?

IRENE (de novo com violência)
Sim, contra ti… contra o artista, que com suas mãos leves e descuidados as pegou num corpo palpitante de mocidade e de vida e o despojou de sua alma, a fim de melhor servir-se dele para criar sua obra de arte.

RUBEK
Como podes falar assim… tu, cujas ardentes aspirações, cujos ardores sagrados me ajudavam em meu trabalho? Nesse trabalho que nos reunia todas as manhãs, num mesmo ritmo, para uma prece comum?

IRENE (retomando o tom frio)
Vou dizer-te uma coisa, Arnold.

RUBEK
Fala, Irene.

IRENE
Nunca amei tua arte antes de ter-te encontrado. Nem depois.

RUBEK
E o artista, IRENE?

IRENE
O artista? Odeio-o.

RUBEK
O artista que existe em mim?

IRENE
Esse, principalmente. Quando aparecia despida, diante de ti, eu te odiava, Amold.

RUBEK (com violência)
Não é verdade, Irene! É falso!

IRENE
Odiava-te, porque não via em ti nem emoção, nem desassossego.

RUBEK (sorrindo)
Nem desassossego? Crês nisso?

IRENE
Ou porque, pelo menos, conservavas um domínio sobre ti… exasperante. Porque não eras senão artista, nada mais que artista. Não eras homem. (Mudança de tom, com voz quente e comovida.) Mas aquela figura que se modelava na argila plástica e viva, aquela figura eu a amava dia a dia mais, à medida que a matéria bruta, que a massa informe se transformava numa criança cuja alma falava à minha alma… que era nossa criação, nosso filho… teu e meu.

RUBEK (com profunda tristeza)
Nosso filho, sim. Na essência e na forma.

IRENE
E foi por causa dessa criança, Arnold, de nosso filho, que eu empreendi esta longa peregrinação.

RUBEK (subitamente interessado)
Por causa daquele mármore?

IRENE
Chama-o como quiseres. Eu continuarei a chamá-lo de nosso filho.

RUBEK (inquieto)
Queres vê-lo? Vê-lo terminado? Tal como se ostenta no mármore… naquele mármore que tu achavas sempre tão frio?… (Com vivacidade.) Talvez não saibas que ele ocupa um lugar num museu, muito longe daqui?

IRENE
A notícia chegou até a mim.

RUBEK
E sempre tiveste horror aos museus… Dizias que eram sepulcros.

IRENE
Quero ir em peregrinação ao lugar onde estão enterrados minha alma e o filho de minha alma.

RUBEK (ansioso, angustiado)
Não deves tornar a ver essa estátua! Suplico-te, Irene. Nunca, compreendes?

IRENE
Pensas que isso me fará morrer uma segunda vez?

RUBEK (torcendo as mãos)
Já não penso mais nada… Mas… também, como poderia eu prever teu amor àquela estátua? Não me deixaste antes dela estar terminada?

IRENE
Ela estava terminada. Foi por isso que eu pude partir, deixar-te só.

RUBEK (com os cotovelos apoiados nos joelhos, tapa os olhos e sacudindo a cabeça)
Ela ainda não era o que se tomou depois.

IRENE (rápida, puxa a meio um estilete fino escondido na blusa e em tom muito baixo, com um estertor na voz)
Arnold… que fizeste ao nosso filho?

RUBEK
Não te entendo… Não sei ao certo o que acharias se…

IRENE (quase sem fôlego)
Dize-me depressa o que fizeste à criança.

RUBEK
Dir-te-ei, se quiseres ficar quieta e ouvir-me.

IRENE (escondendo o estilete)
Ouvir-te-ei tão tranquilamente quanto uma mãe pode…

RUBEK (interrompendo-a)
E não me deves olhar, enquanto eu estiver falando.

IRENE (indo sentar-se numa pedra, por trás de Rubek)
Estás vendo? Sento-me atrás de ti. Fala.

RUBEK (tira as mãos do rosto e olha para a frente, ao longe)
Assim que te encontrei, vi claramente o que poderia retirar de ti, para a minha grande obra.

IRENE
A que chamas O dia da ressurreiçãoe que eu chamo nosso filho.

RUBEK
Eu era moço, ignorava a vida. Pensava que não se pudesse dar à Ressurreição uma aparência mais bela, mais radiosa, do que a de uma moça intacta — Virgem das coisas da Terra — despertando para a luz, para a alegria triunfal, sem ter de despojar-se de qualquer fealdade, de qualquer impureza que fosse.

IRENE (com vivacidade)
Sim…? E é assim que eu apareço na nossa obra?

RUBEK (hesitante)
Não completamente, Irene.

IRENE (com crescente inquietação)
Não completamente? Não sob o aspecto que eu tinha diante de ti?

RUBEK (sem responder)
Aprendi a conhecer a vida durante os anos que se seguiram à tua partida, Irene. O dia da ressurreição tornou-se, no meu espírito, uma coisa mais… mais complicada. O pequeno pedestal sobre o qual se erguia a tua imagem esbelta e solitária, esse pedestal não bastava mais para sustentar o meu novo sonho.

IRENE (procura um momento o estilete, mas não o tira)
E qual era esse sonho? Fala!

RUBEK
Era um sonho feito do que me impressionava os olhos, no mundo que me cercava. Eu precisava, IRENE, introduzir essas impressões na minha obra. Não me podia abster disso… Ampliei o pedestal. Ficou com uma vasta superfície, sobre a qual coloquei um fragmento do globo, inflado é entreabrindo-se. Pelas fissuras dessa terra em gestação, vêem-se agora surgir miríades de seres, homens e mulheres, com feições de animais dissimuladas por trás das máscaras, tais como a vida mas havia mostrado.

IRENE (esperando, com a respiração suspensa)
Mas no meio desse formigamento de seres, vê-se aparecer a moça radiante? Eu estou aí, não é verdade, Arnold?

RUBEK
Sim… Mas não bem no centro. Foi-me preciso, infelizmente, fazer recuar um pouco essa figura. Assim o exigia o efeito de conjunto. Compreendes? De outra forma, ela esmagaria o resto.

IRENE
Mas a alegria, a luz continuam a irradiar da minha fisionomia transfigurada?

RUBEK
Certamente, Irene. Tudo, porém, um pouco velado, talvez… A minha nova concepção o exigia.

IRENE (erguendo-se sem ruído)
Essa estátua exprime a vida tal qual a vês agora, não?

RUBEK
Sim!

IRENE
E deste-me nela um lugar secundário… o de uma figura de último plano, no grupo? (Tira outra vez o estilete.)

RUBEK
Não, não é uma figura de último plano. E uma espécie de figura intermediária.

IRENE (baixo, com voz rouca)
Acabas de pronunciar a tua sentença. (Vai dar-lhe o golpe.)

RUBEK (vira-se e olha-a)
Minha sentença?

IRENE (esconde rapidamente o estilete e diz com acento doloroso)
Toda a minha alma — nossos dois seres, nós… nós e nosso filho — tudo estava ali, concretizado naquela forma.

RUBEK (vivamente, tirando o chapéu com um movimento rápido e enxugando a testa banhada em suor)
Sim… Mas ouve, como eu me representei, a mim mesmo, no grupo. No primeiro plano, está um homem, sentado junto a uma fonte, como estou neste momento: curvado ao peso de uma falta, não se pode desprender da crosta terrestre. Chamo esta figura “Arrependimento de uma vida destruída”. Ele ali está, mergulhando os dedos na água que corre, a fim de lavar a nódoa… torturado pela certeza de que jamais o conseguirá. E a eternidade vai passando sem que ele atinja plenamente a ressurreição, sem que se possa desprender do inferno onde está fixado.

IRENE (com dureza e friamente)
Poeta!

RUBEK
Por que “poeta”?

IRENE
Por que és fraco e inerte, cheio de indulgência para com os teus atos e pensamentos. Mataste-me a alma, e esculpes tua imagem numa atitude de arrependimento, de contrição e de penitência… (Sorrindo.) Com isso crês estar tudo dito e que não há mais contas a ajustar.

RUBEK (em tom de desafio)
Sou um artista, IRENE. E não coro pelas fraquezas de que talvez nunca consiga libertar-me. Precisas compreender, nasci artista… E por mais que faça, jamais serei outra coisa senão um artista.

IRENE (olha-o dissimulando um mau sorriso e diz com voz doce) És um poeta, Arnold. (Passa delicadamente a mão pelos cabelos de Rubek.) E uma grande e velha criança… Como não o percebes tu mesmo?

RUBEK
Por que teimas em chamar-me poeta?

IRENE (observando-o)
Porque há nessa palavra, meu amigo, uma escusa… uma absolvição de todas as fraquezas. (Mudando subitamente de tom.) Mas eu era um ser humano! Eu também tinha uma vida a viver, um destino a realizar. E tudo deixei, a tudo renunciei para submeter-me a ti… Foi um suicídio, um crime contra mim mesma. (Quase em voz baixa.) Um crime que jamais poderei expiar. (Senta-se junto a ele, à beira da torrente, envolve-o com o olhar sem que ele o perceba. Com movimento quase inconsciente, colhe algumas flores no silvado. E, dominando-se.) Eu deveria ter tido filhos… muitos filhos… filhos verdadeiros, e não desses que se conservam em sepulcros. Era essa a minha vocação. Eu nunca te deveria ter servido —, poeta!

RUBEK (mergulhado nas suas recordações)
Entretanto, Irene, aqueles dias foram belos… maravilhosamente belos.

IRENE (olhando-o com meiguice)
Lembras-te do que me disseste, quando a criança surgiu e terminei meu trabalho? (Olha-o meneando a cabeça.) Lembras-te, Arnold?

RUBEK (com olhar interrogador)
Ainda te lembras do que te disse?

IRENE
Sim. Não te lembras mais?

RUBEK
Não, francamente… pelo menos agora.

IRENE
Tomaste-me as mãos, apertaste-as calorosamente nas tuas. Eu fiquei à espera, com a respiração suspensa. Disseste então: “Obrigado! Irene. Do fundo do coração, obrigado! Isso foi, para mim um episódio bendito.”

RUBEK (em ar de dúvida)
Eu disse “episódio”? E uma palavra que habitual mente não uso.

IRENE
Disseste “episódio”.

RUBEK (com afetada displicência)
Pode ser… Na realidade era um episódio.

IRENE (em tom cortante)
Foi por esta palavra que eu parti.

RUBEK
Levas tudo tão cruelmente a sério, Irene!

IRENE (passando a mão pela testa)
Talvez tenhas razão. Sacudamos, pois, o que nos oprime e nos faz sofrer. (Desfolha uma hortênsia rósea e atira as pétalas na torrente.) Olha, vê como os nossos pássaros nadam.

RUBEK
Que pássaros são esses?

IRENE
Não vês que são flamingos? Conhecem-se pelas penas cor-de-rosa …

RUBEK
Os flamingos não nadam, atravessam os cursos de água a vôo.

IRENE
Se não são flamingos, têm de ser gaivotas.

RUBEK
Sim, gaivotas de bico vermelho. (Colhe algumas folhas largas e atira-as à água.) Ponho meus barcos a persegui-las.

IRENE
Sim, mas a bordo não deve haver passarinheiros.

RUBEK
Não, nada de passarinheiros… (Com um sorriso.) Lembras-te de um verão em que íamos sentar-nos em frente da cabanazinha junto ao lago Taunitz?

IRENE (inclinando a cabeça)
Sim, aos sábados, depois do trabalho da semana.

RUBEK
Tomávamos o trem e ficávamos ausentes todo o domingo.

IRENE (com um fulgor de ódio no olhar)
Era um episódio, Arnold!

RUBEK (que parece não ter ouvido)
Já naquele tempo fazias pássaros nadarem na torrente. Eram nenúfares.

IRENE
Eram cisnes.

RUBEK
Sim, cisnes brancos. Lembro-me de que prendi a um deles uma folha grande…

IRENE
E aquilo ficou sendo o barco de Lohengrin, conduzido pelo cisne.

RUBEK
Como te divertias com esse brinquedo, Irene!

IRENE
Nós o repetimos tantas vezes!

RUBEK
Creio que todos os sábados, enquanto durou o verão.

IRENE
Tu dizias que eu era o cisne que guiava o teu barco.

RUBEK
Eu disse isso? E possível. (Absorvido pelo brinquedo.) Olha, estás vendo como as gaivotas descem corrente abaixo?

IRENE (rindo)
E todos os teus barcos soçobram.

RUBEK (atirando novas folhas na torrente)
Tenho barcos de reserva. (Acompanha as folhas com o olhar e empurra algumas.) Sabes, Irene, comprei a cabanazinha do lago Taunitz.

IRENE
Ah! Compraste-a? Sempre dizias que a comprarias assim que pudesses…

RUBEK
Pois comprei-a.

IRENE
E moras agora… na nossa velha casa?

RUBEK
Não, faz tempo que a fiz demolir. No lugar dela mandei construir uma casa de campo muito bonita e muito espaçosa… cercada de um parque. E aí que costumamos… (Corrige.) que costumo passar o verão…

IRENE (dominando-se)
E lá então, que moram agora… tu e a outra?

RUBEK (em tom de desafio)
Sim. É lá que moramos, minha mulher e eu, no verão… quando não viajamos, como este ano.

IRENE (fixando o horizonte)
Como era radiosa aquela vida às margens do lago Taunitz!

RUBEK
E, entretanto, Irene…

IRENE (completando-lhe o pensamento)
E, entretanto, aquela vida maravilhosa nós a deixamos fugir.

RUBEK (baixo, com insistência)
E o arrependimento não nos terá chegado demasiado tarde? Irene (não responde e permanece um momento silenciosa. Depois faz um gesto de desafio para o lado da charneca.) Olha, Arnold, o sol se esconde por trás dos picos. Não vês aqueles raios oblíquos que avermelham as urzes?

RUBEK (olhando para o mesmo lado)
Há muito tempo eu não via um pôr-de-sol nos fioells.

IRENE
E um nascer-de-sol?

RUBEK
Um nascer-de-sol? Creio que nunca vi.

IRENE (sorri docemente, mergulhada numa recordação)
Um dia vi um… um nascer-de-sol admirável.

RUBEK
Sim? Onde foi isso?

IRENE
No alto de um pico vertiginoso… Tu me havias levado lá prometendo mostrar-me todos os esplendores da terra, se eu quisesse…

RUBEK
Se quisesses?… Termina!

IRENE
Fiz o que desejavas. Eu te segui até ao alto da montanha e uma vez lá prosternei-me a teus pés… e te adorei. Eu te servi. (Um silêncio. Depois ela acrescenta em voz baixa.) Foi esse o meu nascer-de-sol.

RUBEK (desviando a conversa)
Não gostarias de nos acompanhar e morar conosco na nossa casa de campo?

IRENE (com um sorriso irônico)
Contigo e… aquela senhora?

RUBEK (insistindo)
Comigo… como nos dias da Ressurreição. E farias despertar de novo em mim tudo quanto está adormecido!… Tudo quanto ficou fechado depois que te foste… Queres, Irene?

IRENE (sacudindo a cabeça)
Não tenho mais a chave, Amold!

RUBEK
Sim, tu a tens! Es a única que a tens!… (Suplicando.) Vem socorrer-me… dá-me de novo a vida!

IRENE (impassível)
Isso tudo são sonhos vãos, devaneios ocos… e mortos. Para nossa vida em comum, não há ressurreição.

RUBEK (em tom cortante e peremptório)
Pois bem, continuemos a brincar.

IRENE
Sim, brinquemos, brinquemos… brinquemos somente! (Recomeçam a atirar na torrente folhas e pétalas, que flutuam e seguem. — Pela costa, no fundo, vêem-se chegar Ulfheim e Maja em trajes de caça. Acompanha-os o criado, conduzindo os cães ajoujados. O criado continua seu caminho, para a direita.)

RUBEK (vendo-os)
Olha! Aí vem a pequena Maja com o caçador de ursos!

IRENE
Sim, tua companheira.

RUBEK
Ou a do outro.

MAJA (passeia um olhar pelo planalto, dá com eles na margem da torrente e grita para Rubek)
Boa-noite, senhor professor! Sonhe comigo. Eu me vou à aventura?

RUBEK (gritando)
Que aventura?

MAJA (chegando mais perto)
Vou a procura da vida, para colocá-la acima de tudo.

RUBEK (zombeteiro)
Realmente, Majazinha? Tu também?

MAJA
E por que não? Fiz até, a propósito, uma cançãozinha. Ouça.
(Canta alegremente.)

Livre, bem livre, sem prisão, nem teto
Eu corto os ares, passarinho inquieto
Livre, bem livre, sem prisão, nem teto.

Eis-me desperta… enfim!

RUBEK
Estou vendo…

MAJA (respirando profundamente)
Como é bom o despertar!

RUBEK
Boa-noite, Sra. Rubek… felicidades!

ULFHEIM (protestando)
Alto lá!… Faça o favor de calar-se! Vai nos trazer má sorte, com os seus malditos votos. Não vê que vamos caçar?…

RUBEK
Que caça me trarás, Maja?

MAJA
Uma ave de rapina. Meter-lhe-ei um chumbo na asa e ela te poderá servir de modelo.

RUBEK (com um sorriso amargo e sarcástico)
Perfeito! quebrar uma asa… por inadvertência… é coisa em que há muito te especializaste.

MAJA (dando de ombros)
Ora!… Deixa-me agir à vontade, daqui por diante. (Inclina a cabeça com um risinho malicioso.) Adeus! Desejo-te uma bela noite de verão, na charneca.

RUBEK (em tom de gracejo)
Obrigado! E muita infelicidade para vocês e para a sua caça.

ULFHEIM (rindo com sarcasmo)
Agora sim! Isso são votos que nos agradam.

MAJA (rindo)
Obrigada, senhor professor, obrigada. (Atravessam a parte visível do planalto e desaparecem pelo declive na direita.)

RUBEK (após um curto silêncio)
Uma bela noite na charneca… isso sim seria viver!

IRENE (subitamente, com um clarão no olhar)
Queres uma noite de verão na charneca… comigo?

RUBEK (estendendo-lhe os braços)
Sim, sim… vem!

IRENE
Oh! meu amado, meu senhor e dono!

RUBEK
Irene!

IRENE (com voz rouca, sorrindo e levantando uma mão tateante)
Será apenas um episódio… (Vivamente, em voz baixa.) Não vire a cabeça, Arnold!

RUBEK (baixando também a voz)
Que há?

IRENE
Uma figura imóvel que está me olhando.

RUBEK (voltando-se sem querer)
Onde? (Estremece.) Ah!

(Entrevê-se a cabeça da diaconisa entre os arbustos, no declive da direita. Tem o olhar constantemente fixo em Irene.)

IRENE (ergue-se e diz com voz abafada)
Temos que nos separar. Não! Fica sentado. Estás ouvindo? Não deves seguir-me. (Curva-se para ele e diz-lhe em voz baixa.) Até logo… esta noite… na charneca.

RUBEK
Virás, Irene?

IRENE
Virei sem falta. Espera-me aqui.

RUBEK (repete como num sonho)
Uma noite na charneca… contigo. .. contigo… (Seus olhares se encontram.) Oh! Irene… teria sido a vida… e nós a perdemos… os dois!

IRENE
O irreparável só o veremos quando… (Interrompe-se subitamente.)

RUBEK (com olhar interrogador)
Quando?…

IRENE
… Quando despertarmos de entre os mortos.

RUBEK
E que veremos então?

IRENE
Que deixamos a vida passar… que não vivemos. (Alcança o declive e desce. A diaconisa afasta-se, dando-lhe passagem, e segue-a. — Rubek permanece sentado à beira da torrente.)

VOZ DE MAJA (na montanha, cantando alegremente)

Livre, bem livre sem prisão, nem teto
Eu corto os ares, passarinho inquieto
Livre, bem livre sem prisão, nem teto.