Prenúncios da Imortalidade Recolhidos da Mais Tenra Infância

Ode de William Wordsworth composta em 1802 e publicada na coletânea Poems, in Two Volumes. Londres, 1807 d.C.

oferecimento

Tradução de Matheus Mavericco para a revista Escamandro.

I

Houve um tempo em que a relva, a fonte, o rio, a mata
         E o horizonte se vestiam
                  De uma luz grata,
         — Visto que assim me pareciam —,
E da opulência que nos sonhos é inata.
Hoje está sendo tal como foi outrora;—
         Seja o que for, eu,
         Na luz ou breu,
Eu não verei jamais o que se foi embora.

II

                  O arco-íris vai, vem,
                  E a rosa nos faz bem;
                  Alegre, a lua nota
Que o céu está completamente nu; à luz
                  De estrelas, a água brota
         E é belo o que ela reproduz;
         A aurora é sempre um nascimento;
         E contudo, eu sei muito bem
Que a glória passou por nós em algum momento.

III

Agora, enquanto as aves cantam de contento
         E enquanto o cordeirinho salta
                  Ao som do que o exalta,
A mim apenas veio uma ideia de dor:
Enunciei-o e de repente ela passou,
                  E me encho de alento:
Trombeteiam cascatas frente ao precipício;
Minha dor não mais matará o clima opulento;
Ouço o Eco que vem das grutas e ouço o Vento
Que encerra em si o sono tal como um resquício,
         E alegre é a terra;
                  Todo o mar
         Vem a se ufanar
                  E a Fera se aferra
         Ao sono na serra;—
                  Você, Criança,
Menino pastor, grite até onde, Ó Criança, o grito alcança!

IV

E vocês, Criaturas, eu escuto afinal
         O que dizem entre vocês
E vejo o céu que frui também vossa altivez;
         Meu ser em vosso festival,
                  Coroado, o total
De vossa dádiva — ah!, eu sinto… Ó mal!,
                  Fosse eu soturno enquanto
                  A Terra se adornasse,
                           Manhã de Maio face
                  A qual a infância nasce
                           No Mundo,
                  No vale remoto e fecundo;
                  Enquanto o sol nos acalora
E o Bebê sobe aos braços da Mãe: — ouço agora!
                  Com alegria eu ouço, eu ouço!
                  — Mas uma, uma Árvore existe,
Uma Planície que em minh’alma inda persiste,
Lembrando o que se foi e hoje e me deixa triste:
                  E o Amor-Perfeito
                  Diz: Que foi feito
         Do vislumbre visionário?
         Dos sonhos? Do esplendor vário?

V

Nosso nascer não passa de sono e de oblívio:
A Alma que nasce com nós, nosso Astro Vital,
         Vive longe de onde vive o
                  Trajeto de seu fanal;
         Não no esquecimento inteiro
         Nem na nudez por inteiro,
Mas, arrastando nuvens de glória, viemos
         De Deus — nele vivemos —:
É o Céu que a nós circunda e a nossa meninice!
As sombras da prisão começam a cobrir
                  O Menino que cresce;
Mas ele vê a luz, sabe aonde ela vai ir
                  E sabe que ela o acresce;
A Juventude, em sacerdócio à Natureza,
         Viaja ao Leste numa empresa
                  Guiada pela
                  Visão mais bela;
E ao largo o Homem vê que sua vida acaba
E que na luz do hábito ela enfim desaba.

VI

A Terra enche o colo com prazeres seus;
A Terra possui ânsias que ela mesma mantém,
E, possuindo um algo maternal também,
                  E honesta em seu intuito,
         A Terra, ama-de-leite, empenha-se
P’ra que o filho adotivo, a Humanidade, abstenha-se
         De todos seus apogeus
E do que nele for trajetória e for muito.

VII

Aprecie a Criança e a plêiade de encantos,
Tesouro de seis anos menor que um pigmeu!
Contemple a paz com que ele enfim adormeceu,
Preocupado co’os beijos de sua mãe, tantos!,
E as tantas bênçãos que seu pai lhe concedeu!
Veja, a seus pés, alguma tabela infantil,
Algum fragmento de seu sonho de ser humano,
Moldado graças a uma arte ainda pueril;
         Um casamento ou um festival,
         Um lamento ou um funeral;
                  E a isto ele é servil,
E nisto ele forma seu canto:
                  Assim afinar-se-á enquanto
Dialoga sobre o amor, o sucesso ou o dano;
                  Não demorará tanto
                  Até que largue isto
                  E de novo, e imprevisto,
Com alegria o Ator mirim faça outro ardil;
Enchendo pouco a pouco sua própria “farsa”
De Personagens, ‘té que a Vida fique esparsa
E, colocando-o na barca, a Vida o ressarça;
                  Como se imitar fosse
                  Tudo o que ele fosse.

VIII

Você, cujo semblante exterior desmente
                  Teu valor inerente;
Você, grande Filósofo, que mantém ainda
A herança; você, que é a Visão entre a cegueira,
Que, surdo e mudo, lê a profundeza infinda
Sempre assombrada pela mente altaneira, —
                  Ó Vidente!, Ó Profeta!
                  Que a verdade afeta
E a quem nós procuramos de qualquer maneira,
Por toda a vida, presos no escuro da cova;
Você, sobre quem flui a Fonte da Existência
Que escraviza ao mesmo tempo que renova,
Algo impossível de se ignorar a presença;
                  A quem a cova
É cama solitária sem sentido ou luz
                  Do que lá fora luz,
Um lugar onde se descansa e onde se pensa;
Você, Criança, ainda ilustre na amplitude
Da aérea liberdade de tua atitude,
P’ra quê, com dores tão solenes, provocar
Os anos a te darem o que eles vão te dar,
Assim tão cega e santa imersa na batalha?
Não tarda e teu espírito cai no retardo
De uma rotina que imporá a ti um fardo
Que pese e quase como a vida se equivalha!

IX

                  Alegria!, que em nós
                  Inda palpita
                  E repercute a voz —
                  E nos evita!
Pensar no meu passado faz com que em mim nasça
Uma bênção perpétua: não aquela graça
Que glorifica aquele a quem ela agracia —
Prazer e liberdade, o credo que perpassa
A Infância inteira, na labuta ou calmaria,
Pleno do tatalar da fé que se atavia:—
                  Nem por estes elevo
                  Canções de louvor e enlevo;
         Mas pelas questões obstinadas
         De senso e coisas externadas
         Distantes de nós, sublimadas;
         Vagos temores da Criatura
Que vaga em meio a mundos não realizados,
Altos instintos onde a efêmera Figura
Treme tal como tremem os Sentenciados:
                  Por tais afetos prévios
                  E recordações breves, o
         Que vierem a ser, sejam,
Pois são fontes de luz e nos clarejam,
Pois são pontos de luz de nosso olhar;
         Guarde a estima por nós, guardando o seu poder
De que a turba dos anos se encurte no Ser
Da Calmaria imorredoura: o despertar
                  P’ra vida eterna:
O que a surdez e a insânia que às vezes governa,
                  O Pai, o Filho
E o que vê na alegria um odioso empecilho,
Não poderão matar nem retirar o brilho!
         Assim, sendo o clima propício,
                  Por distantes que estejamos,
Sentimos sempre aquele mar sem fim ou início
                  Que nos trouxe aonde estamos,
E vemos sempre a Infância que brinca na areia,
E ouvimos sempre o som do mar que assenhoreia.

X

Pois cantem, Aves, cantem canções de contento!
                  E que o Cordeiro salte,
                  Alegre, ao som que o exalte!
Nossas vozes serão uma só em pensamento,
         Você que brinca ou flauteia
         E que tem na sua veia
         O agrado que Maio alardeia!
Pois muito embora a glória, que antes cintilara,
Tenha tornado-se distante e coisa rara,
         E embora nada traga novamente a hora
Do esplendor no relvado, ou da flor que vigora;
                  Nós não vamos chorar; iremos
                  Achar forças no que tivemos
                  Um dia; no afeto primeiro
                  Que ainda se mantém inteiro;
                  No pensamento que consola
                  E medra quando a dor desola;
                  Na fé que enxerga além da morte
E na sabedoria do que nós vivemos.

XI

E vocês, Bosques, Fontes, Picos, Matagais,
Não previram que o amor já não seria mais!
E entanto, o coração de meu coração sente
O poder de vocês; eu abandonei somente
Um prazer p’ra viver vosso ciclo usual.
Amo o rio que em seu canal se convulsiona,
Mais do que quando, assim como ele, eu fui frugal;
A luz da Aurora é pura e, como habitual,
                  Emociona;
As nuvens que rodeiam o pôr-do-sol ganham
O tom-de-cor daquele olhar que mantivera
Vigília sobre nossa tênue Primavera;
Outras raças têm sido, e outras glórias se apanham.
Graças ao coração, que fizemos morada,
Graças a todo o seu temor, carinho e encanto,
Sei que da flor mais simples pode ser gerada
Meditação profunda demais para o pranto.