Partículas elementares

Capítulo Sétimo do romance homônimo de Michel Houellebecq. Paris, 1998 d.C.

Tradução de Juremir Machado. Editora Meridional.

oferecimento

 

 

 

 

Alguns dizem:
“A civilização que construímos ainda é frágil,
Estamos apenas saindo da noite,
Dos últimos séculos de infelicidade, ainda carregamos a imagem hostil;
Não seria melhor que tudo isso continuasse escondido?”

O narrador levanta-se, concentra-se e lembra Com equanimidade, mas firmeza, levanta-se e lembra
Que uma revolução metafisica aconteceu.

Assim como os cristãos podiam ter uma representação das civilizações antigas, podiam formar
uma imagem completa das civilizações antigas, sem ser atingidos por interrogações ou dúvidas, Pois tinham superado um estágio,
Um patamar,
Tinham atravessado um ponto de ruptura;

Assim como os homens da era materialista podiam assistir, sem compreender, sem mesmo realmente ver, à repetição das cerimônias rituais cristãs,
Também não podiam ler e reler as obras originárias da antiga cultura cristã fora de uma perspectiva quase antropológica,
Incapazes de compreender os debates que tinham agitado seus ancestrais em torno das oscilações do pecado e da graça;

Da mesma forma, podemos, hoje, escutar a história da era materialista
Como uma velha história humana. História triste, mas não ficaremos, realmente, tristes
Pois não nos parecemos mais com esses homens. Filhos da carne e dos desejos deles, rejeitamos as suas categorias e filiações
Não conhecemos as alegrias deles; não conhecemos tampouco os sofrimentos deles,
Afastamos
Com indiferença
E sem nenhum esforço Esse universo de morte.

Os séculos de dor que são nossa herança,
Podemos, hoje, tirá-los do esquecimento
Algo aconteceu como uma segunda partilha,
E temos o direito de viver a nossa vida.

Entre 1905 e 1915, trabalhando quase sozinho, com co­nhecimentos matemáticos restritos, Albert Einstein conseguiu, a partir da primeira intuição que constituía o princípio da relativi­dade limitada, elaborar uma teoria geral da gravitação, do espaço e do tempo que exerceria influência decisiva sobre a evolução posterior da astrofísica. Esse esforço aleatório, solitário, realiza­do, conforme os termos de Hilbert, “para honra do espírito huma­no”, em campos sem utilidade aparente e, na época, inacessíveis à comunidade dos pesquisadores, pode ser comparado aos trabalhos de Cantor que estabeleceram uma tipologia do infinito em ato, ou aos esforços de Gottlob Frege para redefinir os funda­ mentos da lógica.

Pode-se também, destaca Hubczejak, na introdução a Clifden Notes, compará-lo à atividade intelectual solitária de Djerzinski, em Clifden, entre 2000 e 2009 – ainda mais que, tanto quanto Einstein, Djerzinski não dispunha de bagagem matemáti­ca suficiente para desenvolver as suas intuições a partir de uma base de fato rigorosa.

 

Topologia da meiose, sua primeira publicação, lançada em 2002, teve, contudo, considerável repercussão. Estabelecia, pela primeira vez com base em argumentos termodinâmicos irrefutáveis, que a separação cromossômica ocorrida no momen­to da meiose, gerando gametas haplóides, era, em si mesma, uma fonte de instabilidade estrutural; em outros termos, que toda es­pécie sexuada era necessariamente mortal.

Três conjecturas de topologia nos espaços de Hilbert, publicada em 2004, surpreenderia. Foi tomada como uma reação à dinâmica do contínuo, uma tentativa – de ressonâncias estranhamente platônicas – de redefinição de uma álgebra das formas. Embora reconhecendo o interesse das conjecturas pro­ postas, os matemáticos profissionais não deixaram de sublinhar a ausência de rigor das proposições, o caráter um pouco anacrô­nico da abordagem. De fato, Hubczejak confirma, Djerzinski não tinha, na época, acesso às publicações matemáticas mais recen­tes, além de que parecia não se interessar muito por elas.

Sobre as suas atividades, entre 2004 e 2007, dispõe-se, em realidade, de pouquíssimos registros. Ia, com freqüência, ao Cen­tro de Galway, mas as suas relações com os experimentadores eram puramente técnicas, funcionais. Aprendera alguns rudimen­tos do supercomputador Cray, o que lhe permitia não ter de recor­rer aos programadores. Apenas Walcott, que morava perto de Clifden e, de vez em quando, à tarde, visitava-o, parece ter mantido relações mais próximas com ele. Segundo Walcott, Djerzinski citava, volta e meia, Auguste Comte, especialmente as cartas a Clotilde de Vaux e a Síntese subjetiva, obra inacabada do filóso­fo. Inclusive no plano do método científico, Comte podia ser con­siderado como o verdadeiro fundador do positivismo. Nenhuma metafísica, nenhuma ontologia concebível na sua época, conse­guiu encantá-lo.

Colocado na situação intelectual de Niels Bohr, entre 1924 e 1927, é verossímil imaginar que Comte, destacava Djerzinski, teria mantido a sua atitude de positivista intransigente e aderido à interpretação de Copenhague. No entanto, a insistência do filóso­fo francês na realidade dos estados sociais em comparação com a ficção da existência individual, seu interesse constantemente re­novado pelos processos históricos e pelas correntes de pensamen­to, seu sentimentalismo exacerbado, sobretudo, permitem pensar que, talvez, ele não fosse hostil a um projeto de refundação ontológica mais recente, cuja consistência vinha das pesquisas de Zurek, Zeh e Hardcastle: a substituição de uma ontologia de ob­jetos por uma ontologia de estados.

Somente uma ontologia de estados, com efeito, poderia res­taurar a possibilidade prática das relações humanas. Numa ontologia de estados, as partículas seriam indiscerníveis e só po­deriam ser classificadas através de um observável numérico. As únicas entidades suscetíveis de reidentificação e nomeação, em tal ontologia, seriam as funções de onda e, através delas, os vetores de estado – daí a possibilidade analógica de dar novamente senti­do à fraternidade, à simpatia e ao amor.

Caminhavam na estrada de Ballyconneely. O oceano cinti­lava aos pés deles. No horizonte, o sol caía sobre o Atlântico. Cada vez mais, Walcott tinha a impressão de que o pensamento de Djerzinski extraviava-se em vias incertas, até mesmo místicas. Ele próprio continuava partidário de um instrumentalismo radi­cal. Oriundo de uma tradição pragmática anglo-saxã, influencia­do também pelo Círculo de Viena, desconfiava ligeiramente da obra de Comte, aos seus olhos ainda demasiado romântica. Ao contrário do materialismo, que substituíra, o positivismo podia, destacava, fundar um novo humanismo; isso, na realidade, pela primeira vez, pois o materialismo era, no fundo, incompatível com o humanismo e acabaria por destruí-lo.

De toda maneira, o materialismo tivera importância histórica: devia-se ultrapassar uma primeira barreira, Deus; os homens: fize­ram isso e mergulharam na aflição e na dúvida. Agora, ultrapassou­ se uma segunda barreira, em Copenhague. Não precisavam mais de Deus, nem da idéia de uma realidade subjacente. “Há percepções humanas, testemunhos humanos, experiências humanas”, dizia Walcott. “Há a razão que une essas percepções, e a emoção que lhes dá vida. Tudo isso se desenvolve na ausência de qualquer metafisica ou de qualquer ontologia. Não temos mais necessidade das idéias de Deus, de natureza ou de realidade. Sobre o resultado das experiênci­ as, um acordo pode ser estabelecido na comunidade dos observado­res através de uma intersubjetividade razoável. Teorias, que devem, o mais possível, satisfazer ao princípio da economia e, necessaria­ mente, ser refutáveis, ligam as experiências. Há um mundo percebi­do, um mundo sentido, um mundo humano.”

A posição era inatacável e Djerzinski estava consciente disso: seria a necessidade de ontologia uma doença infantil do espírito humano? Pelo fim de 2005, numa viagem a Dublin, ele descobriu o Book of Kells. Hubczejak não hesita em afirmar que a descoberta desse manuscrito, com iluminuras, extraordinaria­ mente complexo, obra, provavelmente, de monges irlandeses do século VII, constituiria o momento decisivo da evolução do pen­samento de Djerzinski. A contemplação demorada dessa obra, certamente, permitiu-lhe, através de uma série de intuições que, retrospectivamente, parecem-nos milagrosas, superar as dificul­dades dos cálculos de estabilidade energética nas macromoléculas encontradas em biologia.

Sem necessariamente subscrever todas as afirmações de Hubczejak, deve-se reconhecer que o Book of Kells sempre, ao longo dos séculos, despertou, entre os comentadores, efusões admirativas quase extáticas. Pode-se, por exemplo, citar a des­crição feita, em 1185, por Giraldus Cambrensis:

“Este contém a concordância dos quatro Evangelhos, se­gundo o texto de São Jerônimo, e quase tantos desenhos quanto páginas, todos ornados com cores maravilhosas. Aqui se pode contemplar o rosto da majestade divina, milagrosamente dese­nhado; ali as representações místicas dos evangelistas, tendo seis, quatro, duas asas. Aqui se verá a águia, ali o touro, aqui o rosto de um homem, ali a cara de um leão, e inúmeros outros desenhos. Se olhados com rapidez, en passant, pode-se imagi­nar que não passam de rabiscos. Nada se verá de sutil, embora tudo seja sutil. Mas, caso se tenha o cuidado de considerá-los com muita atenção, de penetrar com o olhar os segredos da arte, descobrir-se-á tantas complexidades, tão delicadas e sutis, tão ligadas, entrelaçadas, amarradas, e cores tão frescas e lu­minosas que se declarará, abertamente, que essas coisas não devem vir da obra humana, mas dos anjos.”

Pode-se também concordar com Hubczejak quando ele afir­ ma que toda nova filosofia, mesmo a que escolhe exprimir-se sob a forma de uma axiomática puramente lógica, é, na realidade, solidária de uma nova concepção visual do universo. Dando à humanidade a imortalidade física, Djerzinski modificou, eviden­temente, em profundidade, nossa concepção do tempo; mas o seu maior mérito, segundo Hubczejak, foi ter estabelecido as condições para uma nova filosofia do espaço.

Do mesmo modo que a imagem do mundo do budismo tibetano é inseparável de uma contemplação prolongada das figuras infinitas e circulares oferecidas por mandalas; do mes­mo modo que se pode ter uma imagem fiel do pensamento de Demócrito, observando o brilho do sol em pedras brancas, numa ilha grega, numa tarde de agosto; do mesmo modo, pode-se compreender mais facilmente o pensamento de Djerzinski pelo mergulho nessa arquitetura infinita de cruz e de espirais que constituem o fundo ornamental do Book of Kells, ou relendo, inspirada neste, a magnífica Meditação sobre o entrelaçamen­to, publicada em separado de Clifden Notes.

“As formas da natureza são formas humanas”, escreve Djerzinski. “É em nosso cérebro que aparecem os triângulos, os entrelaçamentos e as ramificações. Nós os reconhecemos e apre­ciamos; vivemos no meio deles. No meio de nossas criações hu­manas, comunicáveis ao homem, desenvolvemo-nos e morremos. No meio do espaço, espaço humano, realizamos medidas; com elas, criamos o espaço, o espaço entre nossos instrumentos.”

“O homem pouco instruído apavora-se com essa idéia de espaço”, continua Djerzinski. “Imagina-o imenso, noturno e es­cancarado. Imagina os seres sob a forma elementar de uma bola, isolada no espaço, encolhida no espaço, esmagada pela eterna presença das três dimensões. Apavorados com a idéia de espa­ ço, os seres humanos encolhem-se; têm frio, medo. No melhor dos casos, atravessam o espaço, cumprimentam-se, com triste­za, no meio do espaço. Contudo, esse espaço está neles mesmos, nada mais é do que a própria criação mental deles.”

“Nesse espaço que lhes medo, os seres humanos apren­dem a viver e a morrer”, escreve ainda Djerzinski. “No meio desse espaço mental criam-se a separação, o afastamento e o sofrimento. Quanto a isso, existem poucos comentários: o amante ouve o chamado da amada, além dos oceanos e das montanhas; além das montanhas e dos oceanos, a mãe ouve o chamado do filho. O amor une, para sempre. A prática do bem é uma liga­ção; a do mal, um desligamento. A separação é o outro nome do mal; como também o outro nome da mentira. Só existe, com efeito, um entrelaçamento magnifico, imenso e recíproco.”

Hubczejak observou, com razão, que o grande mérito de Djerzinski não foi ter sabido ultrapassar o conceito de liberdade individual (pois esse conceito, na sua época, já estava bastante desvalorizado e sabia-se que não poderia servir de base a nenhum progresso humano), mas ter conseguido, através de interpreta­ções, um tanto aleatórias, diga-se de passagem, dos postulados da mecânica quântica, restaurar as condições de possibilidade do amor. Quanto a isso, deve-se, uma vez mais, evocar a imagem de Annabelle: sem ter, ele próprio, conhecido o amor, Djerzinski pôde, graças a Annabelle, ter uma imagem dele. Conseguiu perceber que o amor, de certa maneira, através de modalidades ainda desconheci­das, pode existir. Essa noção o guiou, muito provavelmente, ao lon­go dos últimos meses de elaboração teórica, dos quais temos tão poucos detalhes.

 

Segundo o testemunho das raras pessoas que conviveram com ele, na Irlanda, nas últimas semanas, Djerzinski parecia conformado, com o rosto ansioso e móvel em paz. Caminhava muito, sem objetivo preciso, na Sky Road; longos passeios de divagação; caminhava na presença do céu. A estrada do Oeste serpenteava ao longo das colinas, ora abrupta ora suave. O mar cintilava, refratando uma luz móvel sobre as últimas ilhas ro­chosas. Afastando-se rapidamente no horizonte, as nuvens for­mavam uma massa luminosa e confusa, de uma estranha pre­sença material. Caminhava muito tempo, sem esforço, o rosto banhado por uma bruma aquática e ligeira. Suas pesquisas, sa­bia, tinham acabado. Na peça transformada em gabinete, cuja janela dava para a ponta de Errislannan, colocara em ordem as suas anotações – várias centenas de páginas sobre os mais varia­ dos assuntos. O resultado dos trabalhos propriamente científi­cos não ultrapassava 80 páginas datilografadas – não havia jul­gado necessário detalhar os cálculos.

Em 27 de março de 2009, no final da tarde, foi à agência central dos correios de Galway. Enviou um exemplar dos seus trabalhos para a Academia de Ciências de Paris; outro para a revista Nature, na Grã-Bretanha. Sobre o que ocorreu em seguida, não se tem a menor certeza. O fato de que seu carro tenha sido encontrado nas proximidades de Aughrus Point levou naturalmente a pensar-se em suicídio – tanto que nem Walcott nem qualquer técnico do Centro surpreendeu-se com isso.

“Ele tinha algo de terrivelmente triste”, declararia Walcott. “Acho que foi o ser mais triste que encontrei na vida e, ainda assim, a palavra tristeza parece-me fraca; devia dizer que existia nele algo destruído, inteiramente devastado. Sempre tive a im­ pressão de que a vida para ele era um fardo, que não tinha mais nenhuma relação com a vida. Creio que suportou exatamente o necessário para terminar as suas investigações; ninguém de nós pode imaginar o esforço que realizou para isso.”

O mistério em torno do desaparecimento de Djerzinski per­sistiu, apesar de tudo, pois o fato de que o corpo nunca foi encon­trado alimentou uma lenda tenaz pela qual ele teria ido para a Ásia, ao Tibete, confrontar seus trabalhos com certos ensinamentos da tradição budista. Hipótese, hoje, rejeitada. Por um lado, não se descobriu nenhuma passagem aérea com partida da Irlanda. Por outro lado, os desenhos encontrados nas últimas páginas do seu caderno de notas, interpretados, durante algum tempo, como mandalas, acabaram por ser identificados como combinações de símbolos célticos próximos dos utilizados no Book of Kells.

Pensamos, hoje, que Michel Djerzinski morreu na Irlanda, lugar que havia escolhido para viver seus últimos anos. Pensa­mos também que, terminadas as pesquisas, sentindo-se sem qual­quer vínculo humano, escolheu morrer. Numerosos testemunhos confirmam o seu fascínio por essa ponta extrema do mundo oci­dental, constantemente banhada por uma luz móvel e suave, na qual gostava de passear, onde, como escreve numa das últimas anotações, “o céu, a luz e a água confundem-se”. Pensamos, hoje, que Michel Djerzinski entrou no mar.

 

Ilustração: detalhe do Book of Kells.