Para criar mentes maduras, ou: Apologia do Ensino Superior

Notas sobre a educação e a vida intelectual.

De John Henry Newman, cardeal formado pela Universidade de Oxford e Reitor fundador da Universidade Católica da Irlanda, hoje College Dublin, a maior universidade do país, beatificado pelo Papa Bento XVI em 2010. Dublin, entre 1852 e 1858 d.C.

oferecimento

 

 

 

I. A educação intelectual como disciplina na precisão mental

Do discurso sobre “Estudos elementares” da Ideia de uma Universidade.

Com frequência se tem observado que, quando os olhos da criança primeiro se abrem sobre o mundo, os raios refletidos da luz que os atingem da miríade de objetos circundantes não apresentam para ela nenhuma imagem, mas uma mescla de cores e sombras. Eles não se formam num todo; eles não surgem em primeiros planos e se misturam nas distâncias; eles não se dividem entre grupos; eles não se coalescem em unidades; não se combinam em pessoas; mas cada matiz e tom particular está por si mesmo, entalado em meio a milhares de outros sobre o vasto e achatado mosaico, sem nenhuma inteligência, e sem transmitir qualquer história, não mais do que o lado errado de uma rica tapeçaria. O bebezinho estica seus braços e dedos, como que para segurar ou olha o ir e vir das figuras, domina a ideia do formato e da perspectiva, invoca a informação dada pelos outros sentidos para assisti-lo em seu processo mental, e assim gradualmente converte o caleidoscópio em um uma figura. A primeira visão foi a mais esplêndida, a segunda a mais real; a primeira mais poética, a última mais filosófica. Ai de nós! que estamos a fazer a vida inteira, tanto como uma necessidade quanto como um dever, senão desaprendendo a poesia do mundo, e conquistando a sua prosa! Esta é a nossa educação, como meninos e homens, na ação da vida, e no quarto ou na biblioteca; em nossos afetos, em nosso objetivos, em nossas esperanças, e em nossas memórias. E assim é a educação do nosso intelecto; quero dizer, que uma porção principal da educação intelectual, dos labores tanto da escola quanto da universidade, é remover a obscuridade do olho da mente; fortalecer e aperfeiçoar sua visão; capacitá-lo a olhar fora no mundo diretamente adiante, firme e verdadeiramente; dar à mente clareza, exatidão, precisão; capacitá-la a usar as palavras corretamente, a entender o que cada uma diz, a conceber com justeza o que pensa sobre elas, a abstrair, comparar, analisar, dividir, definir, e raciocinar, corretamente. Há uma ciência particular que toma estes assuntos na mão, e é chamada lógica; mas não é pela lógica, certamente não é pela lógica sozinha, que a faculdade da qual falo é adquirida. O infante não aprende a soletrar e ler os matizes sobre sua retina por qualquer regra científica; nem o estudante aprende a precisão do pensamento por qualquer manual ou tratado. A instrução dada a ele, do tipo que for, se for realmente instrução, é principalmente, ou ao menos preeminentemente, isto: uma disciplina na precisão mental.

Meninos são sempre mais ou menos imprecisos, e muitos, ou mesmo a maioria, permanecem meninos todas as suas vidas. Quando, por exemplo, eu ouço palestrantes em encontros públicos declamando sobre “visões largas e esclarecidas,” ou sobre “liberdade de consciência,” ou sobre “o Evangelho,” ou qualquer outro tema popular do dia, eu estou longe de negar que alguns dentre eles sabem do que estão falando; mas seria satisfatório, em cada caso, estar seguro dos fatos; pois me parece que aquelas palavras familiares podem estar na mente de um homem para alguma outra coisa, muito religiosa com efeito, mas nebulosíssima, muito parecido à ideia de “civilização” que boia ante a visão mental de um Turco – quer dizer, se, quando ele para de fumar para pronunciar a palavra, ele condescende em refletir se tem mesmo algum sentido qualquer. Mais uma vez, um crítico, em um periódico, precipita, talvez, seus louvores a uma nova obra, como “talentosa, original, repleta de sentido e interesse, irresistível no argumento, e, no melhor sentido da palavra, um livro bastante legível;” – poderemos crer que ele se preocupa em atribuir qualquer sentido definido às palavras sobre as quais ele é tão perdulário? ou então que, se ele tivesse o hábito de atribuir sentido a elas, ele poderia alguma vez levar a si mesmo a tão pródigo e indiscriminado esbanjamento delas?

Para uma pessoa míope, cores fogem juntas e se misturam, delineamentos desaparecem, azuis e vermelhos e amarelos se tornam castanhos ou marrons; as lâmpadas ou velas de algum luminar se espalham num clarão sem sentido, ou se dissolvem numa via láctea. Ele pega uma lente, e a névoa se esclarece, cada imagem se destaca distinta, e os raios de luz recaem em seus centros. É a nebulosidade da visão intelectual que é a doença de todas as classes de homens por natureza, daqueles que leem e escrevem e compõem, tanto quanto daqueles que não são capazes – de todos aqueles que não tiveram uma educação realmente boa. Aqueles que não sabem ler ou escrever podem, no entanto, estar no número daqueles que remediaram e se livraram disso; aqueles que sabem, estão com frequência sob o poder disso. É uma aquisição muito separada da miscelânea de informação, ou conhecimento de livros.

II. O jornalismo e a concepção popular do Intelectual

Do Prefácio à Ideia de uma Universidade.

Um homem intelectual, como a palavra hoje o concebe, é alguém cheio de “visões” sobre todos os assuntos da filosofia, sobre todos os assuntos do dia. É quase considerado uma desgraça não ter uma visão sobre qualquer questão desde o Advento Pessoal [de Deus] até a Cólera ou o Mesmerismo. Isto se deve em grande parte às necessidades da literatura periódica, hoje tão requisitada. Cada quarto de ano, cada mês, cada dia deve haver um fornecimento, para a gratificação do público, de novas e luminosas teorias sobre os tema da religião, política internacional, política doméstica, economia civil, finanças, comércio, agricultura, imigração, e as colônias. Escravidão, as minas de ouro, filosofia alemã, o Império Francês, Wellington, Peel, Irlanda, devem todos ser explorados, dia após dia, por aqueles chamados pensadores originais. Assim como o convidado do grande homem deve produzir suas boas histórias ou cantos no banquete da noite, como o orador de palanque exibe seus fatos notáveis ao meio-dia, assim o jornalista permanece sob a severa obrigação de improvisar suas visões lúcidas, e verdades numa casca de noz para a mesa do café-da-manhã. A natureza mesma da literatura periódica, quebrada em pequenos todos, e demandada pontualmente a uma determinada hora, implica o hábito desta filosofia improvisada. “Quase todas as edições do Rambler,” diz Boswell do Dr. Johnson, “foram escritas à medida que eram solicitadas pela imprensa; ele enviava uma certa porção da cópia de um ensaio, e escrevia o restante enquanto a parte anterior estava na impressão.” Poucos homens têm o talento de Johnson, quem a um grande vigor e recurso do intelecto, quando era francamente despertado, uniu um raro senso comum e um olhar consciencioso para a veracidade, que o preservou da extravagância ou frivolidade no escrever. Poucos homens são Johnsons; ainda assim quantos homens em nossos dias são assaltados pelas incessantes demandas sobre seus poderes mentais, que somente uma produtividade como a dele poderia adequadamente fornecer! Há uma exigência por uma temerária originalidade do conhecimento, por uma efervescente plausibilidade de argumento, que ele teria desprezado, mesmo que ele a pudesse ter exibido; uma exigência por uma teoria crua e uma filosofia insalubre, ao invés de nenhuma. É uma espécie de repetição do “Quid novi?” [o que há de novo?] do Areopagus, e deve receber uma resposta. É preciso encontrar homens que possam tratar, onde é necessário, como o sofista ateniense, de omni scibili [de todos os conhecimentos],

Grammaticus, Rhetor, Geometres, Pictor, Aliptes,
Augur, Schoenobates, Medicus, Magus, omnia novit.

Falo desses escritores com um sentimento de verdadeira simpatia por homens que estão sob o látego de uma cruel escravidão. Eu jamais estive de fato em tais circunstâncias eu mesmo, nem nas tentações que elas implicam; mas a maioria dos homens que já tiveram de lidar com composição devem conhecer o estresse que em certas ocasiões os acomete ao ter de escrever – um estresse por vezes tão agudo e tão singular que não se assemelha a mais nada a não ser a dor corporal. Esta dor é o sinal do desgaste natural do tecido mental; e, se trabalhos feitos comparativamente em repouso implicam tal fadiga e exaustão mental, qual não há de ser a estafa daqueles intelectos que devem se ostentar diariamente ante o público em vestes de gala, uma roupagem sempre nova e variada, e tecida, como faz o bicho-da-seda, a partir de si mesmos! Ainda assim, seja qual for a genuína simpatia que possamos sentir por estes ministros desta tão querida e perseguida luxúria, e seja qual for a ideia que tenhamos do grande poder intelectual que a literatura em questão revela, não podemos com honestidade fechar nossos olhos ao seu mal direto.

 

III. A Ética da Cultura

Do discurso sobre “O conhecimento visto em relação ao dever religioso” da Ideia de uma Universidade.    

O embelezamento do exterior é quase o começo e o fim da moralidade filosófica. Daí porque ela mire em ser modesta mais do que humilde; é assim que pode se orgulhar no momento mesmo em que é despretensiosa. À humildade, com efeito, ela sequer aspira; a humildade é uma das virtudes mais difíceis, tanto de conquistar quanto de manter. Ela repousa perto do próprio coração, e os seus testes são extraordinariamente delicados e sutis. Suas falsificações abundam; no entanto, estamos pouco preocupados com elas aqui, pois, eu repito, ela quase não é proferida, mesmo pelo nome, no código de ética que estamos explorando. Como foi observado com frequência, a civilização antiga não tinha a ideia, e não tinha uma palavra para expressá-la; ou antes, tinha a ideia, e a considerava um defeito do espírito, não uma virtude, de modo que a palavra que a denotava implicava uma reprovação. Quanto ao mundo moderno, você pode captar a ignorância dela por sua perversão do termo de algum modo paralelo “condescendência.” Pode-se dizer que a humildade, ou condescendência, vista como uma virtude de conduta, consista, como em outras coisas, em nosso colocar-nos a nós mesmos em nossos pensamentos no mesmo nível de nossos inferiores. Não é somente uma renúncia voluntária dos privilégios de nossa própria condição, mas uma efetiva participação ou aprovação da condição daqueles a quem nos inclinamos. Esta é a verdadeira humildade, que sintamos e nos comportemos como se fossemos baixos; não celebrar uma noção de nossa importância enquanto afetamos uma posição baixa. Tal foi a humildade de São Paulo, quando ele chamou a si mesmo “o último dos santos;” tal a humildade daqueles muitos homens santos que consideraram a si mesmos os maiores dos pecadores. É uma abdicação, até onde os seus próprios pensamentos estão em questão, daquelas prerrogativas e privilégios que os outros julgam merecer. Ora, não é pouco instrutivo contrastar com esta ideia – com este sentido teológico da palavra “condescendência” – seu sentido próprio no nosso idioma; ponha-as em justaposição, e você verá imediatamente a diferença entre a humildade do mundo e a humildade do Evangelho. Do modo como o mundo usa a palavra, “condescendência” é efetivamente um encurvar-se da pessoa, mas um dobrar-se adiante inesperado sem aquele mínimo esforço para deixar por uma única polegada que seja o assento no qual ele está tão firmemente estabelecido. É o gesto de um superior, que protesta a si mesmo, enquanto ele o realiza, que ele ainda é superior, e que ele não está fazendo nada além de um ato de graça em relação àqueles em cujo nível, em teoria, ele está se colocando a si mesmo. E esta é a ideia mais próxima que o filósofo pode formar da virtude do auto-abaixamento; fazer mais do que isso, na sua cabeça, é uma baixeza, ou uma hipocrisia, e imediatamente excita sua suspeição e desgosto. Tal como o mundo é, assim ele sempre foi; conhecemos o menosprezo que os pagãos educados tinham pelos mártires e confessores da Igreja, e é compartilhado por corpos anticatólicos em nossos dias.

Tal é a ética da Filosofia, quando representada fidedignamente; mas uma época como esta, não pagã, mas assumidamente cristã, não pode se arriscar a reprovar a humildade em termos rígidos, ou se jactar do orgulho. Assim sendo, ela busca algum expediente pelo qual possa se cegar a si mesma para o estado real do caso. A humildade, com os seus graves a abnegados atributos, ela não pode amar; mas o que é mais belo, mais vitorioso, do que a modéstia? Qual virtude, a um primeiro olhar, simula a humildade tão bem? Contudo o que, de fato, é mais radicalmente distinto dela? Na verdade, por maior que seja o seu charme, a modéstia não é a mais profunda ou a mais religiosa das virtudes. Antes é a guarda avançada ou a sentinela da alma militante, e vigia continuamente seu intercurso nascente com o mundo ao redor. Ela rodeia os sentidos; sobe sobre a continência; protege o olho e ouvido; reina na voz e no gestual. Sua província é o comportamento exterior, como outras virtudes têm relação com questões teológicas, outras com a sociedade, e outras com a própria mente. E sendo mais superficial do que outras virtudes, é mais facilmente deslocada de sua companhia; admite estar associada com princípios ou qualidades naturalmente estrangeiras a si, e frequentemente serve de capuz a sentimentos ou fins para os quais nunca nos foi dada. Tão pequeno é o index necessário de humildade, que é mesmo compatível com o orgulho. Tanto melhor para os propósitos da filosofia; humilde ela não pode ser, assim a pronta modéstia se torna a sua humildade.

O orgulho, sob tal treino, ao invés de se apressar em gastar na educação da mente, se volta à ponderação; assume um novo nome; é chamado auto-respeito, e deixa de ser a qualidade desagradável, insociável que é em si mesma. Ainda que seja o motivo principal da alma, dificilmente vem à vista; e quando se mostra, então a delicadeza e a gentileza são o seu vestuário, e bom senso e senso de honra dirigem suas moções. Já não é mais um agente incansável sem um fim definido; tem um largo campo de empenho designado para si, e é subserviente àqueles interesses sociais que iria naturalmente perturbar. É dirigido no canal da indústria, frugalidade, honestidade, e obediência; e se torna a própria base da religião e moralidade tidas em honra em dias como os nossos. Torna-se a salvaguarda da castidade, o garantidor da veracidade, no baixo e no alto; é o verdadeiro deus doméstico da sociedade, tal como constituída no presente, inspirando a simplicidade e a decência na jovem serva, propriedade no porte e maneiras refinadas na sua senhora, retidão, virilidade, e generosidade na liderança da família. Ele difunde uma luz sobre a cidade e o campo; cobre o solo com belos edifícios e jardins sorridentes; ele lavra a terra, abastece e embeleza a loja. É o princípio estimulante da previdência por um lado, e da livre despesa de outro; de uma ambição honrada, e de um elegante gozo. Ele respira sobre a face da comunidade, e o sepulcro vazio é doravante belo de se olhar.

Refinado pela civilização que o trouxe à atividade, este auto-respeito infunde na mente um horror intenso à exibição, e uma aguda sensitividade à notoriedade e ao ridículo. Torna-se inimigo das extravagâncias de todo tipo; encolhe-se ante aquilo que chamam cenas; não tem misericórdia ante o heroico-burlesco, ante a presunção e o egocentrismo, a verbosidade na linguagem, ou aquilo que chamam prosaísmo na conversação. Detesta a adulação grosseira; não que tenda em absoluto à erradicação do apetite que o bajulador ministra, mas vê o absurdo de ceder a ele, ele entende o aborrecimento dado por isso aos outros, e se um tributo deve ser prestado ao rico e ao poderoso, ele demanda uma maior sutileza e arte na preparação. Assim a vaidade é transmutada em uma presunção de si mais perigosa, ao ser verificada em sua erupção natural. Ele ensina os homens a suprimir seus sentimentos e a controlar seus temperamentos, e a mitigar tanto a severidade quanto o tom de seus juízos. Prefere a sagacidade e a sátira espirituosa ao abater o que é objetável, como um método mais refinado e decente, assim como mais efetivo, do que o expediente que é natural às mentes não educadas. É por esta impaciência para com o trágico e o bombástico que ele está agora quieta mas energicamente se opondo à pratica não cristã do duelo, que ele estigmatiza como simplesmente de mau gosto e ultrapassado, e como o resquício de uma época bárbara; e certamente parece plausível que ele seja efetivo ante aquilo que a Religião buscou abolir em vão.

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Portanto é quase uma definição do gentleman dizer que ele é alguém que jamais inflige dor. Esta descrição é tanto refinada quanto, em todo o seu alcance, exata. Ele se ocupa na maior parte do tempo em meramente remover os obstáculos que prejudicam a ação livre e desembaraçada das pessoas ao seu redor; e ele concorre com os movimentos delas mais do que toma a iniciativa ele mesmo. Seus benefícios podem ser considerados similares àquilo que chamamos confortos ou conveniências em arranjos de uma natureza pessoal: como uma cadeira fácil ou um bom fogo, que fazem a sua parte em dissipar o frio e a fadiga, ainda que a natureza forneça tanto os meios de descanso quanto o calor animal sem eles. O verdadeiro gentleman do mesmo modo evita cuidadosamente qualquer coisa que possa causar um solavanco ou um sobressalto nas mentes daquele com quem está envolvido; todo choque de opinião, toda colisão do sentimento, todo constrangimento, ou suspeição, ou melancolia, ou ressentimento; sendo sua grande preocupação deixar todo mundo à vontade e em casa. Ele tem seus olhos em toda a sua companhia; ele é terno para com o encabulado, gentil para com o distante, e misericordioso para com o absurdo; ele consegue se lembrar com quem está falando; ele se guarda contra alusões intempestivas ou tópicos que venham a irritar; raras vezes ele é proeminente na conversação, e jamais cansativo. Ele faz leve os favores enquanto os presta, e parece estar recebendo enquanto está dando. Ele jamais fala de si mesmo exceto quando compelido, jamais defende a si mesmo por uma mera réplica; ele não tem ouvidos para a calúnia ou a fofoca, é escrupuloso ao atribuir motivações àqueles que interferem sobre ele, e interpreta todas as coisas para o melhor. Ele nunca é mesquinho ou pequeno em suas disputas, jamais toma uma vantagem injusta, jamais confunde personalidades ou dizeres agudos com argumentos, ou insinua o mal que ele não ousa declarar. De uma prudência de vistas longas, ele observa a máxima do antigo sábio, que nós deveríamos sempre conduzir a nós mesmos ao nosso inimigo como se ele vier um dia a ser nosso amigo. Ele tem bom senso demais para ser afrontado com insultos, ele é bem ocupado demais para se lembrar de injúrias, e indolente demais para suportar a malícia. Ele é paciente, previdente, e resignado, sobre princípios filosóficos; ele se submete à dor, porque é inevitável, à perda, porque é irreparável, e à morte, porque é o seu destino. Se ele se engaja em uma controvérsia de qualquer tipo, seu intelecto disciplinado o preserva da descortesia disparatada de mentes talvez melhores, mas menos educadas, que, como espadas cegas, dilaceram e retalham ao invés de passarem a fio, que erram o ponto da discussão, gastam sua força em banalidades, estimam mal seu adversário, e deixam a questão mais enredada do que quando a encontraram. Ele pode estar certo ou errado em sua opinião, mas ele é lúcido demais para ser injusto, ele é tão simples quanto é convincente, e tão breve quanto é decisivo. Em nenhum lugar encontraremos tanto candor, consideração, indulgência: ele se lança a si mesmo nas mentes dos seus antagonistas, ele releva os erros deles. Ele conhece a fraqueza da razão humana assim como a sua força, sua província e seus limites. Se não tem fé, terá a mente demasiado profunda e ampla para ridicularizar a religião ou para atuar contra ela; ele é sábio demais para ser um dogmatista ou fanático em sua infidelidade. Ele respeita a piedade e a devoção; ele até apoia as instituições como veneráveis, belas, ou úteis, mesmo não consentindo a elas; ele honra os ministros da religião, e se satisfaz em declinar seus mistérios sem agredi-los ou denunciá-los. Ele é amigo da tolerância religiosa, e isso, não só porque sua filosofia o ensinou a olhar a todas as formas de fé com um olho imparcial, mas também a gentileza e a feminilidade do sentimento, que é concomitante à civilização.

Não que ele não tenha uma religião também, a seu próprio modo, mesmo quando não é cristão. Neste caso a sua religião é uma da imaginação e do sentimento; é a encarnação daquelas ideias do sublime, do majestoso, e do belo, sem as quais não pode haver uma filosofia ampla. Por vezes ele reconhece o ser de Deus, por vezes ele investe um princípio ou qualidade desconhecida com os atributos da perfeição. E desta dedução da sua razão, ou criação de sua fantasia, ele tira a ocasião para muitos pensamentos excelentes, e o ponto de partida de um ensinamento tão variado e sistemático, que ele parece até mesmo um discípulo do Cristianismo. Da mesma precisão e firmeza de seus poderes lógicos, ele é capaz de ver quais sentimentos são consistentes naqueles que guardam seja lá qual for a doutrina religiosa, e aos outros ele parece sentir e conter todo um círculo de verdades teológicas, que existe em sua mente de maneira não diversa de um conjunto de deduções.

Estes são alguns delineamentos do caráter ético, que o intelecto cultivado formará, aparte do princípio religioso.

 

IV. O “dever do ceticismo”

Do capítulo sobre o “Sentido ilativo” da Gramática do assentimento.

O direito de fazer suposições tem sido disputado; mas, quando as objeções são examinadas, eu creio que elas só chegam a mostrar que não temos direito na discussão de fazer qualquer suposição que quisermos. Assim, nas pesquisas históricas, parece justo dizer que nenhum testemunho deveria ser recebido, exceto tal qual vêm de testemunhas competentes, enquanto não é injusto proclamar, por outro lado, que a tradição, ainda que não autenticada, estando (como se diz) em possessão, tem uma prescrição a seu favor, e deve, prima facie, ou provisoriamente, ser recebida. Aqui estão os materiais de uma disputa justa; mas há escritores que parecem ter ido muito além desse ceticismo razoável, estabelecendo como uma proposição geral que não temos direito na filosofia a fazer qualquer pressuposição seja lá qual for, e que deveríamos começar com uma dúvida universal. Isto, entretanto, é de todas as pressuposições a maior, e proibi-las é proibi-la. A própria dúvida é um estado positivo, e implica um hábito definido da mente, e portanto necessariamente implica um sistema de princípios e doutrinas próprios. Mais uma vez, se nada deve ser pressuposto, o que é o nosso próprio método de raciocinar senão uma suposição? e o que é a nossa própria natureza? A própria sensação de prazer e dor, que é uma das mais íntimas porções de nós mesmos, inevitavelmente traduz-se a si mesma em pressuposições intelectuais.

Dos dois, eu preferiria manter que temos o dever de começar acreditando em tudo que é oferecido à nossa aceitação, do que manter que é nosso dever duvidar de tudo. Esse, de fato, parece ser o verdadeiro caminho do aprendizado. Nesse caso, nós logo descobrimos e descartamos o que é contraditório; e o erro, tendo sempre alguma porção de verdade em si, e a verdade tendo uma realidade que o erro não tem, podemos esperar que quando houver um propósito honesto e razoáveis talentos nós de algum modo abriremos caminho à nossa frente, com o erro caindo da mente, e a verdade a desenvolvendo e ocupando.

 

V. O que é uma Universidade

Do capítulo homônimo de Ascenção e queda das Universidades, por ocasião dos primeiros trabalhos da Universidade Católica.

Se me pedissem para descrever tão breve e popularmente possível, o que era uma Universidade, eu deveria esboçar minha resposta a partir daquela antiga designação de Studium Generale, ou “Escola de Aprendizado Universal.” Esta descrição implica a aglutinação de estranhos de todas as partes em um ponto; – de todas as partes; de outro modo, como você encontrará professores e estudantes para cada departamento do conhecimento? e em um ponto; de outro modo, como pode haver algo que se possa chamar uma escola? Assim sendo, em sua forma simples e rudimentar, é uma escola de conhecimento de todos os tipos, consistindo em professores e aprendizes de todo canto. Muitas coisas são necessárias para completar e satisfazer a ideia incorporada nesta descrição; mas tal como foi feita, a Universidade parece ser em sua essência um local de comunicação e circulação de pensamento, através de um intercurso pessoal, por uma vasta extensão do país.

Não há nada artificioso ou insensato nesta ideia assim apresentada a nós; e se isso for uma Universidade, então uma Universidade nada mais faz do que contemplar uma necessidade da nossa natureza, e nada mais é do que um espécimen em um meio particular, dentre muitos outros que podem ser verificados em outros, de conseguir uma provisão para essa necessidade. Educação mútua, num sentido amplo do termo, é uma das grandes e incessantes ocupações da sociedade humana, levada a cabo em parte com um propósito determinado, em parte não. Uma geração forma a outra; e esta geração existente está sempre atuando e reagindo sobre si mesma nas pessoas de seus membros individuais. Ora, nesse processo, os livros, eu quase não preciso dizer, isto é, a litera scripta, são um instrumento especial. É verdade; e o é enfaticamente nesta época. Considerando os poderes prodigiosos da imprensa, e como ela se desenvolveu nesses tempos nas edições jamais intermitentes de periódicos, tratados, panfletos, obras em série, e literatura ligeira, devemos conceder que jamais houve um tempo que prometeu de maneira mais franca dispensar quaisquer outros meios de informação e instrução. O que mais podemos querer, você dirá, para a educação intelectual do homem todo, e de todo homem, do que uma tão exuberante e diversificada e persistente promulgação de todos os tipos de conhecimento? Por que, você perguntará, devemos subir até o conhecimento, se o conhecimento desce até nós? A Sibila escreveu suas profecias sobre as folhas da floresta, e as perdeu; mas aqui se pode condescender prudentemente a uma tão descuidada profusão, pois pode ser proporcionada sem perda, em consequência da quase fabulosa fecundidade do instrumento que estas últimas épocas inventaram. Temos sermões em pedras, e livros nas correntes dos riachos; obras mais amplas e exaustivas do que aquelas que deram aos antigos uma imortalidade vêm à público toda manhã, e são projetadas adiante até os confins da terra à taxa de centenas de milhares por dia. Nossos assentos estão mosqueados, nossos pavimentos estão polvilhados, com uma multidão de pequenos tratados; e os próprios tijolos dos muros de nossa cidade pregam a sabedoria, informando-nos com suas placas onde podemos comprá-la a bom preço imediatamente.

Eu reconheço tudo isso, e muito mais; essa certamente é a nossa educação popular, e seus efeitos são notáveis. Não obstante, depois de tudo, mesmo nesta época, sempre que os homens são realmente sérios sobre adquirir o que, na linguagem do comércio, chamam “um bom produto,” quando eles buscam algo preciso, algo refinado, algo realmente luminoso, algo realmente amplo, algo seleto, eles vão a outro mercado; eles se permitem, num formato ou no outro, o método rival, o método antigo, da instrução oral, da comunicação presente entre homem e homem, de professores ao invés da erudição, da influência pessoal de um mestre, e da humilde imitação de um discípulo, e, em consequência, de grandes centros de peregrinação e aglomeração, que um tal método de educação necessariamente envolve. Isso, creio eu, se mostrará válido em todos os departamentos ou aspectos da sociedade que possuem interesse suficiente para reunir homens juntos, ou constituir o que se chama “um mundo.” Vale no mundo político, e no mundo elevado, e no mundo religioso; e vale também no mundo literário e científico.

Se as ações dos homens podem ser tomadas por algum teste de suas convicções, então temos razão ao dizer isto, ou seja: que a província e o inestimável benefício da litera scripta é o de ser um registro da verdade, e uma autoridade de apelação, e um instrumento de ensino nas mãos do professor; mas que, se quisermos nos tornar rigorosos e totalmente providos em qualquer ramo do conhecimento que seja diversificado e complicado, devemos consultar o homem vivo e ouvir sua voz viva. Não tenho a obrigação de investigar a causa disso, e tudo o que eu disser será, tenho consciência, carente de sua análise completa: talvez devamos sugerir, que nenhum livro pode nos conduzir através da quantidade de questões minuciosas que se é possível fazer a respeito de qualquer assunto extenso, nem pode pôr o dedo nas próprias dificuldades que são separadamente sentidas por cada leitor em sucessão. Ou, mais uma vez, que nenhum livro pode transmitir o espírito especial e as delicadas peculiaridades de seu tema com a rapidez e a certeza presente na simpatia da mente com a mente, através dos olhos, o aspecto, o acento, e as maneiras, nas expressões casuais lançadas ao sabor do momento, e os vieses não calculados da conversação familiar. Mas eu já estou me alongando muito naquilo que não passa de uma porção incidental do meu assunto principal. Seja lá qual for a causa, o fato é inegável. Os princípios gerais de qualquer investigação você pode aprender através dos livros em casa; mas o detalhe, a cor, o tom, o ar, a vida que a faz viver em nós, você deve apanhar tudo isso daqueles em quem ela já vive. Você deve imitar o estudante de Francês ou Alemão, que não se contenta com sua gramática, mas vai a Paris ou Dresden; você deve tomar o exemplo do jovem artista, que aspira visitar os grandes mestres em Florença ou em Roma. Até que tenhamos descoberto algum daguerreotipo, que extraia o curso do pensamento, e a forma, os lineamentos e os aspectos da verdade, tão completa e minuciosamente, quanto o instrumento ótico reproduz o objeto sensível, devemos ir aos professores da sabedoria para aprender a sabedoria, devemos recorrer à fonte, e beber de lá. Porções dela podem ir dela até os confins da terra através dos livros; mas a plenitude está em um lugar ou no outro. É em tais aglomerações e congregações do intelecto que os próprios livros, as obras primas do gênio humano, são escritos, ou ao menos originados.

O princípio sobre o qual venho insistindo é tão óbvio, e os exemplos em questão são tão acessíveis, que eu deveria julgar cansativo seguir nesse assunto, exceto pelo fato de que uma ou duas ilustrações podem servir para explicar minha própria linguagem sobre isso, que talvez não tenha feito justiça à doutrina sobre a qual ela vem tentando persuadir.

Por exemplo, as maneiras polidas e o comportamento bem-educado que são tão difíceis de se conquistar, e logo, quando conquistados, são estritamente pessoais; que são tão admirados na sociedade, e da sociedade são adquiridos. Tudo que serve para constituir um gentleman – o porte, o andar, o trato, gestos, voz; a desenvoltura, o autocontrole, a cortesia, o poder de conversação, o talento de não ofender; o princípio elevado, a delicadeza do pensamento, a alegria da expressão, o gosto e a propriedade, a generosidade e a paciência, o candor e a consideração, a disponibilidade – essas qualidades, algumas delas vêm pela natureza, algumas podem ser encontradas em qualquer nível social, algumas são um preceito direto do Cristianismo; mas a união total delas, coligadas na unidade de um caráter individual, acaso esperamos que possam ser aprendidas dos livros? não são necessariamente adquiridas, quando estão presentes, em alta companhia? A própria natureza do caso nos leva a dizer; você não pode esgrimir sem um antagonista, nem desafiar seja quem for a uma disputa antes de ter sustentado uma tese; e do mesmo modo, conforme a razão, você não pode aprender a conversar até que tenha feito o mundo conversar com você; você não pode desaprender sua timidez natural, ou inabilidade, ou persistente deformidade, até ter cumprido o seu turno na escola das boas maneiras. Bem, e não é assim na realidade? A metrópole, a corte, as grandes casas de cada região, são os centros aos quais em momentos determinados o campo vai, como a santuários de refinamento e bom gosto; e então no devido tempo o campo retorna para sua casa, enriquecido com uma porção das realizações sociais, que estas mesmas visitas convocam e elevam nos seus graciosos dispensadores. Somos incapazes de conceber como o tipo “gentleman” pode de outra forma ser mantido; e ele é mantido desta forma.

E agora um segundo exemplo: e aqui também eu falarei sem experiência pessoal no assunto que estou introduzindo. Eu admito que não estive no Parlamento, não mais do que eu imaginei no beau monde; ainda assim eu não posso deixar de pensar que o estadismo, assim como a alta formação, é aprendida, não pelos livros, mas em certos centros de educação. Se não for presunçoso dizer isso, o Parlamento põe um homem de luzes au courant da política e dos negócios de estado de um modo surpreendente para si mesmo. Um membro do Legislativo, e toleravelmente observador, começa a ver as coisas com novos olhos, mesmo que suas convicções não passem por qualquer mudança. As palavras têm um sentido agora, e as ideias uma realidade, tais quais não tinham antes. Ele ouve um belo montante de discursos públicos e conversações privadas, que jamais vão ao prelo. A orientação das medidas e eventos, a ação dos partidos, e as pessoas de amigos ou inimigos, vêm à tona para o homem que está no meio delas com contornos que a mais diligente averiguação dos jornais não será capaz de lhes dar. É o acesso às linhas-mestras da sabedoria e da experiência política, é o intercurso diário, de um tipo ou de outro, com uma multidão que vai até eles, sua familiaridade com os negócios, seu acesso às contribuições do fato e da opinião lançados juntos por muitas testemunhas de muitos lugares, que fazem isso por ele. No entanto, não preciso justificar um fato, ao qual basta indicar; que as Casas do Parlamento e a atmosfera ao seu redor são uma espécie de Universidade da política.

No que tange ao mundo da ciência, encontramos uma notável instância do princípio que venho ilustrando, nos simpósios periódicos para o seu avanço, que surgiram no curso dos últimos vinte anos, tais como a Associação Britânica. Tais encontros pareceriam a muitas pessoas a um primeiro olhar simplesmente disparatados. Acima de todos os objetos de estudo, a ciência é transmitida, é propagada pelos livros, ou pelo ensino em privado; experimentos e investigações são conduzidos em silêncio; descobertas são feitas na solidão. Que têm os filósofos a ver com as celebridades festivas, e as solenidades panegíricas com a verdade matemática e física? Ainda assim, a um olhar mais detido na questão, descobrimos que nem mesmo o pensamento científico pode dispensar as sugestões, a instrução, o estímulo, a simpatia, o intercurso com a humanidade em larga escala, que tais encontros asseguram. Uma boa época do ano é escolhida, quando os dias são longos, os céus claros, a terra sorridente, e toda a natureza se regozija; uma cidade ou vilarejo, de nome antigo ou opulência moderna, são esporadicamente tomados, onde as edificações são espaçosas e a hospitalidade, cordial. A novidade do local e da circunstância, o excitamento pelo estrangeiro, ou o refresco das faces bem conhecidas, a majestade da classe ou do gênio, as caridades amáveis de homens satisfeitos tanto consigo mesmos quanto com seus próximos; os espíritos elevados, a circulação do pensamento, a curiosidade; as seções matinais, o exercício a céu aberto, a mesa bem fornida e merecida, a hilaridade graciosa, o círculo vespertino; a palestra brilhante, as discussões ou colisões ou palpites de grandes homens uns para com os outros, as narrativas dos processos científicos, das esperanças, frustrações, conflitos, e sucessos, as esplêndidas orações elegíacas; considera-se que estes e outros componentes semelhantes da celebração anual fazem algo real e substancial para o avanço do conhecimento que não pode ser concretizado de nenhuma outra forma. Evidentemente eles podem ser não mais do que ocasionais; eles correspondem ao Ato, ou Inauguração ou Comemoração anual de uma Universidade, não à sua condição cotidiana; mas eles têm uma natureza universitária; e eu posso crer perfeitamente na sua utilidade. Eles surgem na promoção de uma comunicação do conhecimento viva e, por assim dizer, corporal de uns para os outros, de um intercâmbio geral de ideias, e de uma comparação e ajuste da ciência com a ciência, de um alargamento da mente, intelectual e social, de um ardente amor pelo estudo especializado, que pode ser escolhido por cada indivíduo, e de uma nobre devoção aos seus interesses.

Tais encontros, eu repito, são só periódicos, e só parcialmente representam a ideia de uma Universidade. O alvoroço e o turbilhão que são os seus usuais concomitantes, estão em desacordo com a ordem e a gravidade da educação intelectual honesta. Nós aspiramos por meios de instrução que não envolvam a interrupção de nossos hábitos ordinários; nem é preciso buscá-los por muito tempo, pois o curso natural das coisas os traz de volta, enquanto debatemos sobre isso. Em todo grande país, a própria metrópole se torna uma espécie de Universidade necessária, quer queiramos quer não. Quando a cidade principal é a sede da corte, da alta sociedade, da política, e da lei, então inevitavelmente é a sede das letras também; e em nossos dias, por um longo período de anos, Londres e Paris são em verdade e em atividade Universidades, embora em Paris a sua mais famosa universidade já não exista, e em Londres uma Universidade mal existe exceto como uma junta administrativa. Os jornais, os almanaques, os semanários, as revistas, os periódicos de todos os tipos, o mercado editorial, as livrarias, museus, e academias encontradas nelas, as sociedades eruditas e científicas, necessariamente as investe com as funções de uma Universidade; e a atmosfera do intelecto, que numa época passada pairava sobre Oxford ou Bolonha ou Salamanca, moveu-se, com a mudança dos tempos, para longe, junto ao centro do governo civil. Para lá vão jovens de todas as partes do país, estudantes de direito, medicina, e das belas artes, e os employés e attachés da literatura. Lá eles vivem, como a sorte determina; e ficam satisfeitos com seus lares temporários, pois encontram nele tudo o que lhes foi prometido. Não vieram em vão, no que diz respeito ao próprio objetivo que os trouxe. Não aprenderam nenhuma religião particular, mas aprenderam bem a sua própria profissão particular. Além disso, eles se familiarizaram com os hábitos, maneiras e opiniões da sua residência temporária, e fizeram sua parte na manutenção das suas tradições. Não podemos portanto ficar sem Universidades virtuais; uma metrópole é isso: a questão simples é, se a educação buscada e dada deveria ser baseada em um princípio, formada sob a norma, dirigida aos fins mais altos, ou deixada à sucessão aleatória dos mestres e das escolas, um após o outro, com um desperdício melancólico de pensamento e uma ameaça extrema à verdade.

O próprio ensino religioso nos fornece uma ilustração de nosso tema até um certo ponto. Ela de fato não se senta meramente nos centros do mundo; isso é impossível pela natureza do caso. É dirigida aos muitos não aos poucos; a matéria de que trata é a verdade necessária para nós, não a verdade recôndita e rara; mas ela concorre com o princípio de uma Universidade até onde isto, a saber, que o seu grande instrumento, ou melhor órgão, sempre foi aquele que a natureza prescreve em toda educação, a presença pessoal do professor, ou, em linguagem teológica, a Tradição Oral. É a voz viva, a forma que respira, o semblante expressivo, que prega, que catequisa. A Verdade, um espírito sutil, invisível, multifacetado, é derramada na mente do scholar por seus olhos e ouvidos, através de seus afetos, imaginação, e razão; é derramada na sua mente e selada lá em perpetuidade, através da constante proposição e repetição, questionamento e re-questionamento, correção e explicação, progressão e então pelo recurso aos primeiros princípios, por todos aqueles caminhos que estão implicados na palavra “catequisar.” Nas épocas primitivas, foi um trabalho de longo termo; meses, por vezes anos, eram devotados à árdua tarefa de desenganar a mente do cristão incipiente de seus erros pagãos, e de moldá-la sobre a fé cristã. As Escrituras com efeito estavam à mão para o estudo daqueles que podiam se permitir dedicar-se a elas; mas Santo Irineu não hesita em falar de raças inteiras, que foram convertidas ao cristianismo, sem serem capazes de lê-las. Ser incapaz de ler ou escrever não era naqueles tempos nenhuma evidência de falta de instrução: os eremitas do deserto eram, nesse sentido da palavra, iletrados; ainda assim o grande Santo Antônio, ainda que não conhecesse as letras, era páreo na disputa para os filósofos eruditos que vinham prová-lo. Didimus por sua vez, o grande teólogo alexandrino, era cego. A antiga disciplina, chamada a Disciplina Arcani, envolvia o mesmo princípio. As mais sagradas doutrinas da Revelação não foram comunicadas aos livros mas passaram através da sucessiva tradição. O ensino sobre a Santíssima Trindade e a Eucaristia parece ter sido transmitido assim de mão em mão por uns cem anos; e quando no tempo foi reduzido à escrita, preencheu muitos fólios, e ainda não foi esgotado.

Mas eu disse mais do que o suficiente como uma ilustração; eu termino como comecei: uma Universidade é um lugar de concurso, aonde os estudantes vêm de todo canto para todo tipo de conhecimento. Não se pode ter o melhor de todo tipo em toda parte; deve-se ir a alguma grande cidade ou empório para isso. Lá você tem todas as produções seletas da natureza e da arte juntas, as quais você encontra cada uma em seu próprio espaço separado em algum lugar. Todas as riquezas do campo, e da terra, são reunidas lá; há os melhores mercados, e neles os melhores trabalhadores. É o centro do comércio, a suprema corte da moda, o árbitro de talentos rivais, e o padrão de coisas raras e preciosas. É o lugar para se ver galerias de pinturas de primeira categoria, e para ouvir vozes maravilhosas e performers de habilidade transcendente. É o lugar para grandes pregadores, grandes oradores, grandes nobres, grandes estadistas. Na natureza das coisas, a magnitude e a unidade vão juntas; a excelência implica um centro. E isso, pela terceira ou quarta vez, é uma Universidade; eu espero não estar aborrecendo o leitor ao repeti-lo. É o lugar onde mil escolas fazem contribuições; onde o intelecto pode em segurança vaguear e especular, certo de encontrar seu igual em alguma atividade antagonista, e seu juiz no tribunal da verdade. É um lugar onde a investigação é empurrada para frente, e as descobertas verificadas e aperfeiçoadas, e a precipitação se torna inócua, e o erro é exposto, pela colisão de mente com mente, e conhecimento com conhecimento. É onde o professor se torna eloquente, e é um missionário e um pregador, exibindo sua ciência em sua mais completa e vitoriosa forma, derramando-a com o zelo do entusiasmo, e acendendo o seu próprio amor por ela no peito de seus ouvintes. É o lugar onde o catequista faz bom o seu solo à medida que avança, pisando na verdade dia a dia na memória pronta, firmando-a e ajustando-a na razão que se expande. É um lugar que ganha a admiração do jovem por sua celebridade, que acende os afetos da pessoa de meia idade por sua beleza, e atarraxa a fidelidade do velho por suas associações. É um núcleo de sabedoria, uma luz do mundo, um ministro da fé, uma Alma Mater da geração ascendente. É isso e é ainda muito mais, e exige uma cabeça e uma mão melhores que as minhas para descrevê-la bem.

Assim é uma Universidade em sua ideia e propósito; assim em grande medida ela foi antes de nosso tempo. Será alguma vez assim de novo? Estamos indo adiante na força da Cruz, sob o patronato da Santíssima Virgem, em nome de São Patrick, para tentarmos.