O significado social e moral do jazz

De Uma História do Povo Americano de Paul Johnson. Londres, 1997 d.C.

 

Se [no período entre-guerras] o sistema comercial e suas manifestações tais como os filmes de família de Hollywood e o bestiário animado totalmente americano de Disney, estavam homogeneizando os habitantes dos Estados Unidos e incitando-os rumo à suave vertente da mobilidade social ascendente, havia outra força crescendo na sociedade americana que estava acenando para ela, pela primeira vez, na direção oposta. […] Nos anos 20 a América tinha muito com o que chocar, cativar e fascinar – motorização em massa, publicidade estridente, filmes sem fim, LPs vendidos aos milhões, rádios vinte-e-quatro horas (o novo termo que a América, seguida pelo mundo, estava adotando para substituir o termo inglês mais sóbrio ‘wireless’). Havia [revistas humorísticas de charges e quadrinhos como] as ‘funnies.’ Havia o fotojornalismo de um tipo que a Europa ainda não tinha experimentado. Mas, acima de tudo, havia o jazz. Quando Arthur Schnabel fez uma turnê pela América e foi perguntado quais partituras ele gostaria de levar de volta, ele disse, ‘Jazz.’ Quando Darius Milhaud foi perguntado em seu retorno que tipo de música a América tinha, ele disse, ‘Jazz.’ Nos anos 20, de incontáveis maneiras diferentes, a América estava puxando o mundo atrás de si nas artes de massa assim como a França, no início do período moderno, puxou o mundo atrás de suas belas artes. Mas o jazz era o elemento excitante e criativo nessa conquista de massa, talvez o único que os criadores não americanos respeitavam. Assim o que ele significava?

O jazz entrou na tangente de uma tradição musical americana que era rica em canções mas infértil em tudo o mais. […]

Os escravos negros eram encorajados pelos latifundiários a exprimir a si mesmos através da música. Enquanto as artes visuais e dramáticas eram banidas como dispersivas, as músicas de trabalho chegavam a estimular a produção. Suas flautas e foles e possivelmente o banjo eles trouxeram da África. Eles se revelaram extraordinariamente habilidosos no uso de violinos populares surrados, que tomaram o papel melódico de liderança posteriormente assumido pelo clarinete, e na confecção de instrumentos com picaretas, tábuas de lavar, facas, latas, e outros instrumentos de percussão. Os corais negros vieram dos hinos europeus, não da África, embora alguns temas das canções talvez tenham origem na África.

[…]

Todas as formas da música americana foram ecléticas. Mas o jazz e o blues foram as mais ecléticas de todas em suas origens históricas. Eles foram o produto de um aspecto do crisol americano no qual os negros participaram plenamente – o som (e atrás do som, sentimento). O blues em um certo sentido foi diretamente derivado do trabalho escravo, dos ‘field hollers’ [as canções de trabalho no campo], mas indiretamente das baladas da Europa ocidental, dos spirituals inspirados na Bíblia, e dos gritos quentes do gospel nos encontros de campo. O jazz e os rags foram outra coisa: eram gozação, criticismo, protestos velados contra o triunfalismo do mundo do homem branco. A origem do termo ‘rag’ ou ‘ragging’ vem do jargão dos estudantes ingleses – é a provocação à autoridade através do mau comportamento. Assim como as gírias e o idioma americano atingiram seu impacto e adquiriram seu caráter ao provocar (‘ragging’) o padrão do inglês britânico, assim o negro americano provocou (‘ragged’) o inglês da classe média americana. […]

O piano rag era uma versão musical desse charme-pela-provocação. Antes da Guerra Civil, os negros raramente tinham acesso aos pianos. Mas eles podiam cantar. Seu status deu a eles um instinto para a paródia. Assim a Somnambula de Bellini, um hit na Nova York de 1837, foi avacalhada ou ragged como The Roof Scrambler (A Trepadora de Telhados). Músicos amadores negros ‘jazzeavam’ ou ‘raggeavam’ os clássicos alterando o compasso ou a ênfase, assim como as palavras. Os negros se revelaram brilhantes ao tocar com ritmos que produziam versões irônicas da música da tradição ocidental. O compasso, o ritmo era a chave. O cantor negro John Bubbles, com ‘Rhythms for Sale,’ deu o recado: ‘Todo mundo é louco pelo ritmo / Pros negros é uma maravilha / Porque têm o estoque cheio de ritmo.’ Dos anos 1860 em diante, os negros aprenderam o piano, frequentemente em modelos surrados, de segunda-mão. Como os britânicos já haviam descoberto desde 1790, o piano era um bem de consumo durável extraordinariamente bem adaptado à produção em massa. Já nos anos 1830, a América estava comprando e produzindo pianos em vastas quantidades. […] ‘Provavelmente não há nenhum outro país no mundo,’ escreveu um estudioso da música em 1904, ‘onde o piano é tão difundido quanto na América.’ A execução de obras clássicas para piano foi a epítome dos valores vitorianos, implicando trabalho duro, produzindo elevação moral e cultural, e enfatizando a domesticidade. Em seu uso comum, o piano foi esmagadoramente um instrumento feminino. Em 1922, por exemplo, as mulheres formavam 85% dos estudantes de música e 75% das audiências de concerto – sendo que o piano era o centro de ambas as atividades. Assim o abuso masculino do piano para produzir rags foi um protesto contra a disciplina doméstica e a predominância feminina, assim como o ragging negro de melodias brancas era um ato de provocação.

Havia também a questão da velocidade. As músicas africanas eram lentas. Os spirituals negros do Sul Profundo eram lentos. Quando os negros vieram para o Norte após a Guerra Civil, eles precisaram acelerar em resposta à agitação americana. O jazz e o rag foram a sua resposta. O ragtime era tão percussivo quanto rápido – daí o termo gangster para a metralhadora, um Piano de Chicago. Quando os negros vieram para o norte e começaram a usar pianos em larga escala, eles fizeram dele o equivalente a um tambor africano. Eles enfatizaram em especial as ‘claves pretas,’ as cinco negras, o pentatônico africano ou modo de cinco notas em oposição às ‘claves brancas’ da escala diatônica ocidental. Ragging significava sincopar, pondo a ênfase fora do compasso ou no compasso fraco. Era um genuíno crisol porque o baixo da mão esquerda executava um firme estilo ocidental de marcha em tempo 2/4 enquanto o agudo da mão direita realizava a síncope africana. […] É possível que o piano rag fosse uma tentativa deliberada de alguns negros talentosos de realizar uma contribuição singular à música ‘artística’ e fosse projetado para ser notado. Talvez tenha algo a ver com a forma de dança negra do cake-walk, com um elemento de paródia, e significasse uma tentativa consciente dos negros de dar o seu próprio troco no classicismo. Scott Joplin, o maior dos raggers do piano, era um músico sofisticado bem versado em música clássica, que até tentou compor uma ópera rag, Treemonisha, mas fracassou. […]

O rag se desenvolveu nas cidades do Norte como Chicago e nas periferias em lugares como St. Louis e Louisville. O jazz, uma música fundida a partir das bandas de pífano-e-tambor, dos spirituals e das bandas de cordas negras, com o rag como um grão de pimenta, veio de Mobile, Alabama, e acima de tudo de Nova Orleans, especialmente do distrito da luz vermelha de Storyville. Estas cidades do Golfo eram egregiamente multi-étnicas e multirraciais – sempre foram – e é impossível identificar todas as diversas linhagens históricas embrenhadas na tecelagem dessa malha. Ferdinand ‘Rocambole’ Morton no piano e Charles ‘Buddy’ Bolden na corneta – tocaram em funerais, festas caseiras, e boates. Era comum para uma banda funeral de Nova Orleans tocar ‘direito’ à caminho do cemitério, e então ‘raggear’, sincopar, e tirar sarro na volta rumo à festa. Joe ‘Rei’ Oliver e Louis Armstrong – ambos trompetistas – também vieram de Nova Orleans, levando com o tempo a sua música rumo a Chicago e à fama. Edward ‘Duque’ Ellington, por outro lado, veio de Washington DC e se mudou para Nova York para trabalhar no Cotton Club do Harlem. Em suas origens ao menos, nem o rag nem o jazz estavam muito longe do boteco caipira, o honky-tonk, ou mesmo do bordel, e suas características histriônicas e percussivas desenvolvidas a partir da necessidade de se fazer ouvir em meio à algazarra esfumaçada. ‘Jazz’ era um termo negro para o intercurso sexual; assim como ‘eagle-rocking’ e ‘boogie-woogie,’ uma variação negra de ‘humpy-pumpy.’ Tudo isso não era incompatível com um contexto religioso também. ‘T-Bone’ Walker foi citado dizendo, ‘O blues vem muito da igreja. A primeira vez que ouvi um piano boogie-woogie foi a primeira vez que fui à igreja.’

Para as mulheres americanas de classe alta e média tudo soou um pouco suspeito. As sufragistas e feministas, lideradas por Carrie Chapman Catt (1859-1947), presidente da Associação Nacional Americana para o Sufrágio das Mulheres, ficaram particularmente ultrajadas, em nome das artistas mulheres, em relação àquilo que elas denominaram ‘estupro’ do piano pelos raggers, que tocavam ‘música de puteiros de pretos,’ auxiliados, cada vez mais, por ‘judeus malandros e inescrupulosos.’ A Federação Nacional de Clubes de Mulheres insistia que elas iriam arrancar a música americana ‘das mãos do estrangeiro infiel’ e dos ‘favelados negros.’ […]

A oposição feminina ao elemento negro na nova música levou a uma considerável celeuma e a uma franca reelaboração da história pelos artistas brancos que o adotaram. Um exemplo foi Irving Berlin (1888-1989), o maior ragger branco. Nascido Israel Baline na Rússia, filho de um diretor de coro, ele cruzou o Atlântico em 1893 na terceira classe acompanhado de cinco irmãos, com oito malas entre eles, e foram viver em Cherry Street, a pior região do Lower East Side. Ele frequentou a escola somente por cinco anos, depois aos doze foi para as ruas e para as espeluncas cantar por dinheiro. Ele sobreviveu para compor um enorme tesouro de 355 hits, zelosamente guardado por sua própria casa editorial (1914). Ele parodiou Paderewski, o ‘gênio de longos cabelos,’ com as suas exageradas gesticulações com a mão direita ao piano, e ele ‘raggeou’ as boas-vindas da América a Verdi em ‘Watch your Step.’ A sua ‘Alexander’s Ragtime Band,’ um trabalho que fez dele o ‘Rei do Ragtime’ (1912), era fundamentalmente uma marcha exemplar mas a letra foi ‘raggeada’ – Berlin descobriu que se podia  ‘raggear’ (ou ‘achincalhar’) uma canção sincopando suas palavras e alterando a ênfase no compasso mais fraco. Berlin negou a origem negra de sua música. Ele alegou que os judeus eram parte da Broadway e da cultura pop de Nova York desde 1850, enquanto os negros eram novatos pós-Guerra Civil. ‘Nossos compositores populares,’ afirmou, ‘…não são negros mas brancos puro sangue, muitos de ascendência russa.’ Ele veio de uma tradição paralela de gozação antiautoritária, de judeus desprezados versus senhores góis. O iídiche era uma versão popular estrangeira do Alto Alemão do mesmo modo que o inglês negro era uma versão estrangeira popular do inglês americano padrão. Seu primeiro trabalho pago foi como ‘garçom cantante’ no Nigger Mike’s na Chinatown de Nova York (o proprietário era um judeu russo, que posava de negro), onde ele protagonizou atos satíricos como um cantor italiano, um judeu, um alemão, um irlandês e um negro. Tudo era elíptico, invertido, de cabeça pra baixo, avacalhado. Ele chamou a si mesmo Cooney. Quando chegou ao topo ele chutou longe todos os degraus negros da escada pela qual havia subido.

Um caso similar foi Al Jolson, outro filho de um diretor de coro, nascido Asa Yelson perto de São Petesburgo no início dos anos 1880. Excepcionalmente ansioso para um profissional, um negro disse a ele: ‘Você ia ficar muito mais engraçado, chefe, se pintasse a sua cara de preto que nem a minha. As pessoas sempre riem do negro.’ Ele seguiu esse conselho e se tornou ‘o cara-preta com a voz da Grande Ópera,’ cujo filme de 1927, O Cantor de Jazz, fez dele uma grande estrela. Na Broadway, valia o adágio, você começa negro ou étnico e se torna cada vez mais branco e mais Waspy [protestante anglo-saxão] quanto mais sucesso faz. O caso clássico desta ascensão foi Fred Astaire (1899-1987), um imigrante de segunda geração de Omaha, Nebraska, nascido Frederick Austerlitz, que começou como um dançarino do estilo negro e gradualmente se transformou naquilo que Mencken chamou um ‘arrasta-pé de classe.’ Astaire partiu para o novo estilo preto-no-branco de cantar quando o microfone elétrico chegou em 1925, e ele se transformou a si mesmo de um judeu-negro de teatro de revista em um sofisticado fraque-e-cartola branco da Quinta Avenida e da Park Lane. Isso implicou outro chute nos degraus. O mais estrepitoso dos músicos brancos puros de jazz foi aquele muito a propósito chamado Paul Whiteman (1890-1967), um homem imensamente ganancioso pesando 130 quilos que originalmente tocou viola na Orquestra Sinfônica de San Francisco e depois foi para Nova York para se transformar no ‘Rei do Jazz.’ Seu primeiro hit gravado foi ‘Avalon’ (1920), uma versão pop de uma ária da Tosca de Puccini, e ele seguiu o caminho familiar de caricaturar, excitar, tocar para as gargalhadas. Ele se empenhou num esforço elaborado e altamente bem sucedido de fazer o jazz respeitável ao levar ao palco um grande concerto na Aeolian Hall em 12 de Fevereiro de 1924, no qual Rhapsody in Blue de George Gershwin (1898-1937) recebeu sua primeira performance. Mas ele insistia que o jazz era uma invenção branca, sua banda era toda branca, e em seu livro Jazz (1926) ele não menciona sequer um único negro.

Ao fim a tentativa de reescrever o roteiro sem os negros foi um fracasso total. De fato, mesmo no início dos anos 20, os negros estavam conseguindo conquistar algum crédito na ribalta. Bandas negras eram bem recebidas em Paris, como foi Florence Mills em Londres. The Plantation Review (1922), Dixie to Broadway (1924) e The Blackbirds (1926) foram hits de Nova York. E Josephine Baker, após seu sucesso de 1925 em Paris com La Revue Nègre, na qual ela fez de peito nu uma danse sauvage, retornou para muitos triunfos na América também. Já em 1922, nas Ziegfeld Follies, Gilda Gray cantou ‘Está Escurecendo na Broadway,’ com o seu remate, ‘Você deve virar negro pra entrar na nova onda.’ O que foi descoberto nos anos 20, pela primeira vez, foi que a música negra tinha um charme próprio precisamente porque era negra, e que a mobilidade social descendente era um elemento importante na nova forma artística. Ir às boates e se reunir onde tocavam jazz foi um modo pelo qual os próprios debutantes da Classe A ‘raggearam’ os bailes da alta sociedade nos quais eles eram esperados. O editor de musicais da Broadway Edward Marks pontificou: ‘As melhores músicas vêm da sarjeta.’ Falar um inglês não gramatical era uma forma de protesto social contra os costumes estabelecidos. Irving Berlin sabia quando usar o inglês correto, como no seu ‘God Bless America;’ ele usou o outro tipo, como em ‘Ain’t You Going,’ para deliberadamente ‘raggear.’ Foi uma das ironias da história que figuras intensamente arrivistas como ele mesmo, vindo do nada para se tornar multimilionários e pilares do establishment (em 1926 ele surrupiou a fina flor da alta sociedade Ellin Mackay da casa de seus pais e passou as últimas décadas da sua vida rastreando qualquer infração aos seus royalties), foram também aqueles que, ante a conveniência de seus interesses comerciais, encorajaram o gosto entre os jovens a se mover rumo às classes baixas. Uma tendência similar era observável entre os escritores negros, como Langston Hughes (1902-67), poeta, dramaturgo, novelista e jornalista, e estrela daquilo que veio a se chamar a Renascença do Harlem dos anos 20 e 30: ele enfureceu a classe média negra convencional em seu movimento rumo às classes altas por deliberadamente mover o seu idioma para o fim da feira. Resenhistas negros chamaram-no de ‘Pé-rapado do esgoto,’ por se meter a escrever poesia que de fato não passava de ‘lixo fedendo na sarjeta.’

É importante se dar conta de que a mobilidade social descendente foi, de início, somente uma fratura minúscula no suave monólito da sociedade ascendente da América. O jazz, por exemplo, era um gosto de elite nos anos 20. Só depois que foi simplificado, purgado, e tornado respeitável pelas bandas brancas de Glenn Miller e Tommy Dorsey (transformando-se em ‘swing’ no processo) ele começou a conquistar as massas de 1935 em diante. Então nos anos 40 veio o bop, com músicos negros como Charlie Parker (sax alto), Dizzie Gillespie (trompete), Thelonious Monk (piano), e cantoras como Ella Fitzgerald, fazendo bebop. Daí se seguiu o cool, o hard bop e o soul jazz nos anos 50, o rock nos anos 60, e nos anos 70 misturas de jazz e rock dominadas por instrumentos eletrônicos. E todo o tempo a música pop estava se aglomerando para envolver os vários estilos e tradições na fantasmagoria da música comercial engrenada para o gosto de incontáveis milhões de jovens facilmente manipuláveis mas cada vez mais afluentes. E, dos mundos do jazz e do pop, o hábito da droga se espalhou nas massas como a mais acelerada de todas as formas de mobilidade social para baixo.