O Príncipe (não) deve ser (in)fiel

Capítulo 18o do Príncipe de Niccolò Maquiavel. Florença, 1532 d.C.

 

O quanto é louvável um príncipe manter a fidelidade e viver com integridade e não com astúcia, é coisa que todos entendem: não obstante, se vê, por experiência em nossos tempos, muitos príncipes que fizeram grandes coisas tendo a fidelidade em pouca conta, e que souberam com astúcia manobrar os cérebros dos homens; e no fim superaram àqueles que se fundaram na lealdade.

Deves portanto saber como são duas as formas de se combater: uma com a lei, a outra com a força: a primeira é própria do homem, a segunda dos animais: mas, dado que a primeira muitas vezes não basta, convém recorrer à segunda. Portanto a um príncipe é necessário saber usar bem a besta e o homem. Esta parte é ensinada aos príncipes abertamente pelos escritores antigos; os quais descrevem como Aquiles, e muitos outros príncipes antigos, foram entregues aos cuidados de Quíron o centauro, que sob sua disciplina os educou. O que não quer dizer outra coisa, esse ter por preceptor um meio animal meio homem, se não que é necessário a um príncipe se valer de uma e outra natureza; e uma sem a outra não é durável.

Sendo assim, um príncipe, necessitando se valer bem do animal, deve emular a raposa e o leão; porque o leão não se defende das armadilhas, a raposa não se defende dos lobos. É preciso, portanto, ser como a raposa para reconhecer as armadilhas e como o leão para afugentar os lobos. Aqueles que fazem somente as vezes do leão, não são astutos. Não pode portanto um soberano prudente, nem deve, observar a fidelidade quando tal observação se volte contra ele e quando desapareceram as causas que o levaram a prometê-la. E, se os homens fossem todos bons, este preceito não seria bom; mas porque são deploráveis e não o observarão em relação a ti, tu também não hás de observá-lo em relação a eles. Nem jamais a qualquer príncipe faltaram motivos legítimos para mascararem a inobservância. Disso se poderiam dar infinitos exemplos contemporâneos e mostrar quantos tratados de paz, quantas promessas se tornaram nulas e vãs pela infidelidade dos príncipes: e aquele que soube fazer melhor as vezes da raposa, foi o mais bem sucedido. Mas é necessário saber mascarar bem essa natureza, e ser um grande simulador e dissimulador: e são tão simplórios os homens, e tamanha é a sua subserviência às necessidades presentes, que aquele que engana encontrará sempre alguém que se deixará enganar.

Eu não quero, dos exemplos recentes, omitir um. [O papa] Alessandro VIo jamais fez outra coisa, jamais pensou em outra coisa, se não enganar os homens: e sempre encontrou alguém para o fazer. E jamais houve um homem que tivesse maior eficácia em asseverar e com muitas juras afirmar alguma coisa, que a observasse menos; não à toa sempre levou à cabo suas fraudes com suas promessas, porque conhecia bem esta parte do mundo.

A um príncipe, portanto, não é necessário ter de fato todas as qualidades descritas acima, mas é totalmente necessário parecer que as tem. Antes, acrescentarei o seguinte, que, tendo-as e observando-as sempre, são danosas, e parecendo tê-las, são úteis: como parecer piedoso, fiel, humano, inteiro, religioso, e ser; mas estar  em tal disposição de ânimo, que, precisando não ser, tu possas e saibas transmutar-te no contrário. E entenda bem isto, que um príncipe, e sobretudo um príncipe novo, não pode observar todas as coisas pelas quais os homens são considerados bons, sendo frequentemente necessário, para manter o Estado, agir contra a fidelidade, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião. E porém é necessário que ele tenha um ânimo disposto a mover-se conforme os ventos e as oscilações da fortuna ordenarem, e, como se disse acima, não abandonar o bem, se puder, mas saber entrar no mal, se necessário.

Deve, portanto, ter um príncipe um grande cuidado para que não lhe escape jamais da boca uma coisa que não seja plena das supracitadas cinco qualidades, e pareça, a quem o vê e ouve, todo piedade, todo fidelidade, todo integridade, todo religião. E não há coisa que seja mais necessária parecer tê-la do que esta última qualidade. E os homens de todo o mundo julgam mais aos olhos do que às mãos; porque pode-se ver a todos, mas tocar a poucos. Todos veem aquilo que tu pareces, poucos tocam naquilo que tu és; e esses poucos não ousam opor-se à opinião dos muitos que têm a majestade do Estado para os defender: e nas ações de todos os homens, e sobretudo dos príncipes, quando não há um tribunal ao qual apelar, se busca o resultado. Que portanto o príncipe se determine a conquistar e manter o Estado: os meios sempre serão julgados honrados e louváveis por todos; porque o povo se prende à aparência e ao resultado; e no mundo só existe o povo; e os poucos só garantem um lugar quando os muitos têm onde se apoiar. Um certo príncipe de nosso tempo, o qual não convém nomear, não prega jamais outra coisa que não a concórdia e a fidelidade, e de uma e de outra é o maior inimigo; e uma e outra, se as tivesse observado, lhes teria muitas vezes tomado ou a reputação ou o Estado.