O despotismo do costume, ou: Para onde vai a massa cinzenta

Do Capítulo III, “A Individualidade, como um dos elementos do bem-estar” de Sobre a Liberdade. John Stuart Mill, Londres, 1859 d.C.

 

I. Impulsos individuais e energia social

A natureza humana não é uma máquina que se reconstrua por um modelo, e se ponha a executar o que se prescreve, mas uma árvore que precisa crescer e se desenvolver em todas as suas partes, em conformidade com a tendência das forças interiores que fazem dela uma coisa viva.

Admitir-se-á, segundo toda a probabilidade, que é bom que o povo exercite as suas faculdades, e que uma obediência inteligente ao costume, ou mesmo, uma vez ou outra, um desvio inteligente do costume, vale mais que uma adesão cega e absolutamente maquinal. Até certo ponto admite-se que o nosso entendimento deve depender apenas de nós; mas já não admitimos com a mesma facilidade que os nossos desejos e os nossos impulsos devam também depender apenas de nós próprios, ou que, tal possa acontecer sem perigo absolutamente nenhum. E contudo os desejos e os impulsos fazem tanto parte dum homem em toda a integridade do seu ser, como as crenças e as restrições; e os impulsos, mesmo impetuosos, só são perigosos quando não equilibrados; quando umas certas direções da alma e umas certas aspirações interiores se desenvolvem até a mais alta expansão, enquanto outras, que deviam subsistir com elas, ficam fracas e inativas. Se os homens são maus, não é pela força das suas paixões: é pela fraqueza da sua consciência. Não há conexão natural entre os fortes impulsos e uma fraca consciência. A conexão natural é absolutamente outra. Dizer que os desejos e sentimentos duma pessoa são mais fortes e mais numerosos do que os doutra, quer unicamente dizer que há nela mais do rude material que sempre existe na natureza humana, e é por isso capaz, talvez de um mal maior, mas certamente de um maior bem. Dizer “impulsos fortes” é o mesmo que dizer “energia”. A energia pode ser aplicada no mal; mas maior bem pode resultar duma natureza enérgica do que duma que seja indolente e impassível. Os que têm mais fortes sentimentos naturais são aqueles cujos sentimentos cultivados podem ser mais fortes. As fortes sensibilidades que tornam os impulsos pessoais vívidos e poderosos, são elas mesmas também a origem onde se geram o mais apaixonado amor da virtude e o mais severo domínio de si mesmo. É pela cultura destes que a sociedade cumpre o seu dever, e protege os seus interesses, e não repudiando o estofo de que são feitos os heróis, pela simples razão de que não sabe como fazê-los. Diz-se que tem caráter aquele cujos desejos e impulsos são dele próprio – são a expressão da sua natureza, tais como foram desenvolvidos e modificados pela sua própria cultura. Aquele cujos desejos e impulsos não lhe pertencem, não tem propriamente caráter, como não o tem uma maquina a vapor. Se além de serem dele próprio, os seus impulsos forem fortes e governados por uma vontade forte, o seu caráter é enérgico. Todo aquele que julga que não se deve incitar essa individualidade dos desejos e impulsos deve sustentar que a sociedade não precisa de naturezas fortes – que não é desejável uma média elevada de energia.

Nalguns estados primitivos da sociedade estas forças podiam dominar, e dominaram o poder que a sociedade então possuía de as disciplinar e governar. Houve um tempo em que o elemento de espontaneidade e de individualidade era excessivo, e o principio social sustentava uma rija luta com ele. A dificuldade de então, estava em levar os homens de corpo forte a prestar obediência a quaisquer regras que lhes exigissem o dominar os seus impulsos. Para superar esta dificuldade, a lei e a disciplina, como os Papas lutando contra os Imperadores, afirmavam um poder sobre o homem inteiro, pretendendo dominar toda a sua vida afim de lhes dominar o caráter – que a sociedade não encontrava outros meios suficientes de constranger. Mas a sociedade levou agora a vantagem sobre a individualidade; e o perigo que ameaça a natureza humana não é o excesso, mas a deficiência dos impulsos e das preferências pessoais. As coisas mudaram muito, desde o tempo em que as paixões dos que eram poderosos pela posição ou pelos dotes pessoais se achavam num estado de habitual rebelião contra as leis e ordenações e precisavam ser rigorosamente agrilhoadas para fazer com que as pessoas ao alcance do seu poder gozassem de alguma parcela de segurança. No nosso tempo, desde a mais alta classe da sociedade até a mais baixa, todos vivem como sob a vigilância duma censura hostil e temida. Não só no que se refere aos outros, mas no que se refere apenas a si mesmo, o indivíduo ou a família não pergunta lá consigo – o que hei de preferir? Ou, o que permitiria que o que em mim há de melhor e de mais alto se exercesse legitimamente, e o fizesse expandir e crescer? O que eles perguntam é: o que convém à minha posição? o que é que fazem geralmente as pessoas da minha posição e das minhas circunstâncias pecuniárias? ou (pior ainda), o que fazem geralmente as pessoas de posição e circunstâncias superiores às minhas? Não quero dizer com isto que escolham o que é do costume, de preferência ao que convém à sua inclinação pessoal. É que não lhes ocorre mesmo qualquer inclinação que não seja de costume. Assim se curva o espírito ao jugo: mesmo no que as pessoas fazem por prazer, a conformidade é a primeira coisa em que pensam; gostam de se sentir em multidão, escolhem, sim, mas só entre as coisas que usualmente se praticam; a originalidade do gosto, a excentricidade do proceder, evitam-se como se fossem crimes; até que à força de não seguirem os homens a sua própria natureza, já nenhuma natureza têm que seguir; as suas capacidades humanas minam-se e perecem ; tornam-se incapazes de quaisquer desejos fortes ou prazeres nativos, e não têm geralmente nem opiniões nem sentimentos propriamente seus. Ora é esta ou não a condição desejável da natureza humana ?

E, responde a teoria calvinista. Segundo ela, o maior mal do homem é a vontade livre. Todo o bem de que a humanidade é capaz está na obediência. Não há escolha; deveis fazer assim, e não de outro modo: “O que não é um dever é um pecado”. Se a natureza humana é essencialmente corrupta, não há redenção para o homem enquanto a natureza humana não estiver morta dentro dele. Para quem seguir esta teoria da vida, a aniquilação de qualquer das faculdades, capacidades e sensibilidades humanas não é mal nenhum: o homem não precisa de outra capacidade, senão a de se entregar à vontade de Deus; e se ele emprega alguma das suas faculdades para outro fim, melhor seria não as ter. Tal é a teoria do calvinismo; e é seguida duma forma moderada por muitos que se não consideram calvinistas: a moderação consiste em dar uma interpretação menos ascética à citada vontade de Deus, em afirmar que é sua vontade que a humanidade satisfaça algumas das suas inclinações; não, certamente, de modo que se prefira, mas por meio da obediência, isto é, pelo meio que lhe é prescrito pela autoridade, e, por conseguinte, pela necessária condição do caso, o mesmo para todos.

Sob uma forma assim insidiosa, há atualmente uma forte tendência para esta estreita teoria da vida, e para o tipo seco e descarnado de caráter humano que ela patrocina. Muitas pessoas, sem dúvida, pensam sinceramente que os seres humanos assim espremidos e mirrados são como o seu Criador quis que eles fossem; exatamente como aqueles que pensam que as árvores são muito mais lindas quando podadas ou recortadas em figuras de animais, do que como a natureza as fez. Mas se faz parte da religião crer que o homem foi criado por um Ente bom, é mais compatível com essa fé crer que esse Ente lhe deu todas as faculdades para que elas fossem cultivadas e desenvolvidas, em vez de desarraigadas e destruídas, e que o satisfaz que todas as suas criaturas se aproximem cada vez mais da concepção ideal contida nelas, e se exaltem em cada uma das suas virtualidades de compreensão, de ação, ou de satisfação. Há um tipo de excelência humana diferente da calvinista; uma concepção da humanidade pela qual se julga que a sua natureza lhe foi concedida para fins diferentes da renúncia. A “afirmação de si pagã” é um dos elementos do valor humano, no mesmo grau que a “negação de si cristã.” Há um ideal grego de desenvolvimento pessoal, com que o ideal platônico e cristão do governo de si mesmo em parte se liga mas que ele não invalida. Vale mais ser Jonh Knox que Alcibíades, mas vale mais ser Péricles que qualquer deles; nem um Péricles, se nestes tempos tivéssemos um, deixaria de ter qualquer coisa boa que tivesse pertencido a Jonh Knox.

Não é transformando em uniformidade tudo o que é indivisível nos seres humanos, mas cultivando-o e excitando-o, dentro dos limites impostos pelos direitos e pelos interesses dos outros, que eles se tornam um nobre e belo objeto de contemplação; e como as obras participam do caráter de quem as faz, também pelo mesmo processo a vida se enriquece, se diversifica e anima, fornecendo um alimento mais abundante nos altos pensamentos e aos sentimentos elevados, e fortificando o laço que liga cada indivíduo à raça a que pertence, tornando-a infinitamente mais digna. Cada pessoa, na proporção do desenvolvimento da sua individualidade se torna mais útil para si, e por consequência de mais utilidade para os outros. Há uma maior exuberância de vida na sua própria existência, e quanto mais vida há nas unidades, mais há também na massa que delas se compõe. Não se pode dispensar uma certa compressão para obstar que os espécimes mais fortes da natureza humana usurpem os direitos dos outros; mas há para isto uma grande compensação, mesmo sob o ponto de vista do descobrimento humano. Os meios de desenvolvimento que o indivíduo perde quando abandona as suas inclinações às usurpações de outros, são principalmente obtidos a expensas do desenvolvimento das outras pessoas. E mesmo para ele há uma completa compensação no maior desenvolvimento da parte social da sua natureza, pela sujeição da parte pessoal. Abraçando as rígidas regras da justiça por causa dos outros, desenvolve os sentimentos e as capacidades que têm por objeto o bem dos outros. Mas ser reprimidos em coisas que não afetam o bem deles, apenas porque lhes desagrada, nada desenvolve de valioso, exceto aquela forja de caráter que pode originar-se na resistência à repressão. Se se submete, tudo nele se entorpece e embota. Para dar à natureza de cada um a sua ação conveniente, é essencial que a pessoas diferentes se permitam vidas diferentes. E exatamente na proporção em que esta latitude se tem exercido, que uma época vale no juízo da posteridade. Mesmo o despotismo não produz tão maus resultados, quando sob ele existe a individualidade; e tudo o que oprime a individualidade é despotismo, seja qual for o nome que se lhe der, quer seja essa doutrina o cumprir a vontade de Deus, quer seja o de satisfazer a vontade dos homens.

Tendo já escrito que dizer individualidade é o mesmo que dizer desenvolvimento e que só a cultura da individualidade produz, ou pode produzir, os seres humanos bem desenvolvidos, eu podia por ponto aqui no argumento: efetivamente, que mais ou melhor se pode dizer de qualquer condição das coisas humanas, do que afirmar que ela aproxima os próprios homens da melhor coisa que eles podem ser ? ou que pior se pode dizer de qualquer obstáculo ao bem do que confessar que ele impede isso? Mas sem dúvida estas considerações não são suficientes para convencer aqueles que mais precisam se convencer; e é necessário ainda mais para mostrar que os entes humanos assim desenvolvidos, de alguma utilidade são para os não desenvolvidos – mostrar aos que não desejam a liberdade, e aos que se não aproveitam dela, que alguma coisa ganham em permitir que outros a exerçam sem peias de qualquer espécie.

Lembrar-lhes-ei, pois, em primeiro lugar, que lhe seria possível aprender deles alguma coisa. Ninguém negará que a originalidade é um elemento de valor nas coisas humanas. Precisa-se sempre não só de quem descubra novas verdades e nos diga quando é que as velhas verdades o deixaram de ser, mas também de quem dê inicio a novas práticas, é o exemplo de conduta mais iluminada e de melhor gosto e sentido da vida humana. Só quem imaginasse que o mundo já atingiu toda a perfeição, podia negar o que asseveramos. E verdade que nem todos podem prestar este beneficio exatamente do mesmo modo: em relação a toda a humanidade, há muito poucas pessoas cujas experiências, se fossem adoptadas por outros, conseguiriam modificar a prática estabelecida. Mas essas poucas são o sal da terra; sem elas, a vida humana tornar-se-ia um pântano estagnado. Não só elas introduzem coisas boas que dantes não existiam, como também conservam a vida àquelas que já existem. E mesmo que não houvesse nada de novo a fazer, a Inteligência humana deixaria de ser necessária? Seria razão para que aqueles que fazem o que é antigo esquecessem porque é que o fazem, e o fizessem, não como homens, mas como animais? Há uma grande tendência nas melhores crenças e práticas a degenerar em sentimentos e ações maquinais; e a menos que não haja um conjunto de pessoas cuja originalidade sempre solícita obste e que essas crenças e essas práticas se tornem puramente tradicionais, uma tal matéria morta não resistiria ao mais insignificante embate com qualquer coisa realmente viva, e não subsistiria razão alguma para que a civilização não se extinguisse, como no império bizantino. É certo que os homens de gênio são, e hão de naturalmente ser sempre, uma pequena minoria; mas para ter mesmo essa minoria, é necessário preservar o solo onde ela prospera. O gênio só pode respirar livremente numa atmosfera de liberdade. Os homens de gênio são, ex vi termini [por definição], mais individuais do que quaisquer outros – menos capazes, por conseguinte, de se vasarem, sem compressão prejudicial, no pequeno número de moldes que a sociedade fornece para impedir aos seus membros o incômodo de formarem o seu próprio caráter. Se por timidez, consentem em ser vasados nesses moldes, e deixam ficar sem expansão alguma parte da sua natureza para a manter sob pressão, a sociedade pouco tem a esperar do seu gênio. Se são dum carácter forte e desprezam todas as peias, tornam-se alvo da sociedade que não conseguiu reduzi-los á mediocridade comum, para os apontar solenemente como loucos, vagabundos etc.; como se alguém se queixasse do rio Niágara por não correr tão mansamente por entre as suas margens como qualquer canal da Holanda.

Insisto muito propositadamente na importância do gênio e na necessidade de o deixarem se exercer livremente, tanto no pensamento como na ação, convencido como estou de que ninguém contraditará este principio, pelo menos na teoria, mas sabendo também que quase todos, na realidade, lhe são totalmente indiferentes. Pensa-se que o gênio é uma bonita coisa se ele habilita um homem a escrever um poema ou a pintar um quadro. Mas no seu verdadeiro sentido, de originalidade no pensamento e na ação, ainda que ninguém diga que não é efetivamente uma coisa digna de ser admirada, quase todos, no íntimo, de si mesmos, pensam que podem passar muito bem sem ele. Infelizmente isto é bastante natural para que nos tenhamos de admirar. A originalidade é a única coisa cuja utilidade os espíritos não originais não podem perceber. Não podem ver que utilidade pode ela ter, e como o veriam? Se vissem para o que ela serve não haveria originalidade. O primeiro serviço que ela lhes tem a prestar é abrir-lhes os olhos, o que, uma vez feito, poderia torná-los também a eles originais. Entretanto, recordando que nada se fez ainda que alguém não fosse o primeiro a fazer e que todas as boas coisas que existem são os frutos da originalidade, devem ter a precisa modéstia para crer que ainda resta alguma coisa para cumprir e fiquem certos de que quanto menos cônscios forem de carência de originalidade, mais hão de precisar dela.

 

II. A intolerância dos medíocres

Em toda a verdade, qualquer que seja a homenagem que se professe pela real ou suposta superioridade mental, a tendência geral das coisas em todo o mundo é fazer da mediocridade o poder mais alto da humanidade. Na história antiga, na Idade Média, e em grau decrescente durante toda a longa transição do feudalismo para a época atual, o indivíduo foi um poder em si mesmo; e se tinha ou grandes talentos ou uma alta posição social, constituía um poder considerável. Mas hoje em dia os indivíduos perderam-se na multidão. Em politica é quase um lugar comum dizer-se que é a opinião pública que hoje governa o mundo. O único poder que merece esse nome é o das massas; e o dos governos enquanto eles se fazem órgãos das tendências e dos instintos das massas. Isto aplica-se tanto às relações morais e sociais da vida privada como às coisas publicas. Aqueles cujas opiniões prevalecem sob o nome de opinião pública não são sempre a mesma espécie de público: na América é toda a população branca, na Inglaterra é principalmente a classe média. Mas são sempre uma massa, quer dizer, a mediocridade coletiva. E, o que é uma coisa mais curiosa ainda, a massa não tira as suas opiniões dos dignitários da Igreja ou do Estado, dos chefes ostensivos, ou dos livros. O seu modo de pensar é formado por homens que se lhe assemelham muito, dirigindo-se-lhe ou falando-lhe em seu nome, na incitação do momento, através dos jornais. Eu não o lamento. Não afirmo que qualquer coisa de melhor seja compatível, em regra geral, com a presente mediocridade do espirito humano. Mas isso não impede que o governo da mediocridade seja um governo medíocre. Nenhum governo democrático ou de numerosa aristocracia, quer nos seus atos políticos, quer nas suas opiniões, qualidades e tom de espírito, se elevou jamais ou pode elevar-se acima da mediocridade, exceto quando os soberanos “Muitos” se têm deixado conduzir (o que sempre têm feito nos seus melhores tempos) pelos conselhos e influência de “Um” ou “Alguns” mais altamente dotados e instruídos. A iniciação de todas as coisas de saber e de nobreza parte e deve partir de indivíduos; geralmente parte primeiro dum individuo só. A honra e a glória do homem mediano está em ser capaz de seguir essa iniciativa, em poder corresponder inteiramente a coisas sábias e nobres e ser levado até elas com os olhos perfeitamente abertos. Não estou apoiando esse “culto dos heróis”, que aplaude o homem forte e genial por se apoderar do governo do mundo e o submeter contra vontade. Tudo o que ele pode reivindicar, é a liberdade de indicar o caminho. O poder de compelir os outros a segui-lo não só é incompatível com a liberdade e o desenvolvimento de todos os outros, mas diminui também o próprio homem poderoso. Parece, contudo, que quando as opiniões das massas medíocres se tornaram ou tornam em toda a parte o poder dominante, o contrapeso e corretivo para essa tendência seria a maior e mais pronunciada individualidade daqueles que ocupam as mais altas eminências do pensamento. É especialmente nestas circunstâncias que os indivíduos excepcionais, em vez de serem postos à margem, deviam ser incitados a proceder de modo diferente das massas.

Noutros tempos não havia nenhuma vantagem em que eles assim procedessem, salvo se procediam não só diferentemente, mas melhor. Atualmente, o simples exemplo de não conformismo, a simples recusa de genuflexão perante o costume, é um verdadeiro serviço. Precisamente porque a tirania de opinião é de tal maneira que censura toda a excentricidade, é conveniente, para arrostar com essa tirania, que sejamos excêntricos. A excentricidade tem sempre abundado onde e quando tem abundado a força de caráter; e a soma de excentricidade de uma sociedade tem sido proporcional à soma de gênio, de vigor mental e de coragem moral que ela continha. O facto de tão poucos hoje em dia se atreverem a ser excêntricos revela bem o perigo capital do nosso tempo.

Disse que importa dar o maior desafogo às coisas que não estão consagradas pelo costume para que em tempo se possa saber quais são aqueles que se podem converter em costume por sua vez. Mas a independência da ação e a desatenção pelo costume não são as únicas coisas que merecem estímulo pelas probabilidades que apresentam de melhores modos de ação e costumes mais dignos de adopção geral; nem são unicamente as pessoas de decidida superioridade mental que têm justo título a dirigir as suas vidas a seu modo. Não há nenhuma razão para que toda a existência humana seja construída conforme um único ou um pequeno número de modelos. Todo o homem que possui alguma parcela de senso comum e de experiência tem nos modelos que cria a melhor maneira de delinear a sua vida, não porque eles sejam absolutamente melhores, mas porque foram criados por ele mesmo. Os entes humanos não são como os carneiros, e mesmo estes não são indistintamente iguais. Nenhum homem pode vestir um casaco ou calçar umas botas que lhe fiquem bem, sem que as tivesse mandado fazer sob medida ou que tenha todo um armazém para escolher; e será mais fácil que lhe assente bem qualquer vida do que qualquer casaco, ou são os homens mais semelhantes em toda a sua conformação física e espiritual do que na forma dos pés? Mesmo quando a única, condição a atender fosse a diversidade dos gostos, era já a razão suficiente para não se tentar formá-las todas por um único modelo. Mas pessoas diferentes também requerem condições diferentes para o seu desenvolvimento espiritual, e podem tão pouco existir no mesmo meio moral como todas as variedades de plantas podem viver no mesmo meio físico, na mesma atmosfera e no mesmo clima. As mesmas coisas que para determinadas pessoas são auxílios, são embaraços para outros. Um determinado modo de vida é uma condição de saúde para um, mantendo na melhor disposição todas as suas faculdades, enquanto para outro pode ser um fardo aflitivo, que suspende ou aniquila toda a vida interior. São tais diferenças entre os seres humanos nas suas origens de prazer, na sua sensibilidade para a dor, e no modo como sobre eles atuam as diferentes condições físicas e morais, que, sem uma correspondente diversidade nos seus modos de vida, não obtém o seu legítimo quinhão de felicidade, nem atingem a estatura mental, moral e estética de que a sua natureza é capaz. Porque há de então a tolerância, tanto quanto se relaciona com o sentimento público, estender-se só aos gostos e modos de vida que conquistam a aquiescência coletiva só pela multidão dos seus aderentes? Em parte alguma, exceto em algumas instituições monásticas, se deixa de reconhecer inteiramente a diversidade de gostos; uma pessoa pode, sem merecer por isso a censura, gostar ou não gostar do exercício do remo ou do fumo, ou da música, ou dos jogos atléticos, ou do xadrez, ou das cartas, ou do estudo, porque tanto os que gostam de cada uma destas coisas, como os que não gostam delas, são numerosos demais para serem reprimidos. E contudo o homem, e ainda mais a mulher, que são acusados de fazer “o que ninguém faz” ou de não fazer “o que todos fazem” torna-se objeto de tanta censura como se tivesse praticado algum grave delito moral. Precisam as pessoas de um título ou outro emblema de categoria, para se poderem entregar algum tanto ao prazer de procederem como lhes apraz sem detrimento da sua estima. Entregarem-se algum tanto, repito: porque quem se permitir uma maior liberdade, incorre o risco de alguma coisa pior do que palavras injuriosas – corre o perigo de o darem por lunático, e de lhe sequestrarem os bens em proveito de seus parentes.

Um caráter dos mais nítidos da direção presente da opinião publica é um propósito de intolerância para qualquer manifestação de liberdade mais acentuada. A média geral da humanidade não é só de medíocres inteligências, como também de medíocres inclinações: não tem gostos nem desejos bastante fortes que a levem para alguma cousa fora do uso, e por consequência não compreende os que os têm, e classifica-os de loucos e desorientados, que está habituada a olhar com desprezo. A este facto, que é geral, só temos de acrescentar a suposição de se haver produzido um forte movimento para o progresso da moral, e é evidente o que temos a esperar. E hoje que este movimento se está delineando; muito se tem realizado com o fim de uma maior regularidade de conduta e diminuição de excessos; e há em toda parte um espírito filantrópico, para cujo exercício campo algum é mais convidativo do que o progresso moral dos nossos semelhantes. Estas tendências dos tempos fazem com que o público esteja melhor preparado do que em tempos muito remotos a prescrever regras gerais de conduta e procurar conformar-se cada qual á norma adoptada. E essa norma, expressa ou tácita, consiste em nada se ambicionar fortemente. O seu ideal de caráter é não o ter: mutilar por compressão, como o pé de uma dama chinesa, toda aquela parte da natureza humana que se torna proeminente e tende a fazer da pessoa alguma coisa diferente da comum mediocridade.

Como sucede comumente com os ideais que excluem metade do que é desejável, a norma presente de aprovação produz apenas uma irritação inferior da outra metade. Em vez de grandes energias guiadas por uma razão vigorosa, e fortes sentimentos fortemente dominados por uma vontade consciente, produz apenas fracos sentimentos e fracas energias, que podem por isso manter-se em conformidade exterior com a regra, sem força alguma, quer da vontade, quer da razão. Já os caráteres enérgicos vão se tornando em larga escala simplesmente tradicionalistas. Hoje, com exceção do comércio, mal se vê, nesta terra, um escoadouro para a energia. A energia que se gasta no comércio ainda se pode reputar considerável. A pouca que resta é desperdiçada num ou noutro capricho, que pode ser útil, mesmo filantrópico, mas que é quase sempre uma coisa de pequena extensão. A grandeza da Inglaterra é, presentemente, toda coletiva: pequenos individualmente, só parecemos capazes de alguma coisa de grande pelo hábito que temos de nos ligarmos; e com isto se contentam absolutamente os nossos filantropos morais e religiosos. Mas foram homens de outra têmpera que fizeram da Inglaterra o que ela tem sido; e homens dê outra têmpera é que nos são precisos para evitar o seu declínio.

O despotismo do costume é em toda a parte o obstáculo permanente ao progresso humano, estando em incessante antagonismo com a disposição daqueles que tendem a alguma coisa melhor do que o costume, e que se chama, segundo as circunstâncias, espírito de liberdade ou espírito de progresso. O espirito de progresso nem sempre é espirito de liberdade, porque pode dar-se o caso de se querer forçar o povo a progressos que ele não deseja; e o espírito de liberdade, na medida em que resiste a tais tentativas pode aliar-se aqui ou ali, hoje ou amanhã, com os inimigos do progresso; o que não quer dizer que a liberdade não seja a única origem infalível e permanente do progresso, desde que por ela há tantos centros independentes possíveis de progresso quantos são os indivíduos. Contudo, o princípio progressivo, sob uma ou outra forma, quer como amor da liberdade, quer como desejo do progresso, é antagônico ao costume, trazendo consigo, pelo menos uma emancipação desse jugo; e a luta entre os dois constitui, certamente, o principal interesse da história da humanidade. A maior parte do mundo não tem, propriamente falando uma história, porque o despotismo do costume é completo. Tal acontece em todo o Oriente. O costume é ali, em todas as coisas, a apelação final; justiça e direito querem dizer: conformidade ao costume; ninguém pensa em resistir ao argumento do costume, fora um ou outro tirano embriagado do poder. E nós vemos o resultado. Essas nações deviam ter tido, em tempos, originalidade; elas não brotaram da terra populosas, letradas e versadas em muitas artes da vida; foram elas que conseguiram tudo isso, e foram as maiores e mais poderosas nações do mundo. O que são elas agora? Súditas ou dependentes de tribos cujos antepassados erravam nas florestas quando os seus tinham palácios magníficos e suntuosos templos, mas sobre quem o costume exerceu o domínio a meias com a liberdade e com o progresso. Parece que um povo pode ser progressivo por um certo tempo, e depois parar: quando é que para? Quando deixa de possuir individualidades. Se tal tiver de acontecer com as nações da Europa, não será exatamente da mesma maneira: o despotismo de costume de que estas nações estão ameaçadas não é propriamente estacionário. Proscreve a singularidade, mas não impede a mudança, contanto que todos mudem conjuntamente. Nós nos descartamos dos costumes fixos dos nossos avós, cada qual tem ainda de se vestir como os outros vestem, mas a moda pode mudar duas ou três vezes por ano. Assim temos cuidado em que, quando há mudança, seja por amor da mudança, e nunca por uma ideia de beleza ou conveniência; porque não se poderia formar em toda a gente no mesmo momento a mesma ideia de beleza ou conveniência, que seja simultaneamente posta de parte por todos noutro momento. Todavia, nós somos tão amigos do progresso como da mudança: fazemos continuamente novas invenções em artes mecânicas, e conservamo-las até que outras melhores as venham substituir; somos impacientes por melhoramentos em política, em educação, mesmo em moral, ainda que nesta última a nossa ideia de progresso consista principalmente em convencer ou obrigar as outras pessoas a serem tão boas como nós. Não é ao progresso que nos opomos: pelo contrário, orgulhamo-nos mesmo de ser o povo mais progressivo que ainda houve. É contra a individualidade que nós combatemos: pensamos que faríamos maravilhas se nos tivéssemos feito todos iguais, esquecendo que é exatamente a diferença entre as pessoas que antes de mais nada chama a atenção ou para a imperfeição do seu próprio tipo, e a superioridade doutro, ou para a possibilidade pela combinação das vantagens de ambos, de produzir alguma coisa melhor do que qualquer dos dois. Na China temos nós uma advertência e um exemplo – nação de muito engenho e, a certos respeitos, de sabedoria mesmo, tendo a boa fortuna, tão rara, de ter sido dotada nos seus primeiros tempos de um conjunto de ótimos costumes, obra, até certo ponto, de homens a quem até os homens mais cultos da Europa têm de conceder, dentro de certos limites, o título de sábios e de filósofos. Além disso, são notáveis pela excelência da sua arte em espalhar, tanto quanto possível, a sua sabedoria por todo o povo, e assegurar, aos que mais a assimilaram, a ocupação dos postos de honra e de Poder. Seguramente o povo que faz isto descobriu o segredo da marcha progressiva e devia ter-se conservado com firmeza à testa do movimento do mundo. Pelo contrário, tornou-se estacionário e assim tem ficado há milhares de anos, e se alguma vez progrediu, isso mesmo é feito pelos estrangeiros. A China conseguiu, além de toda a expectativa, aquilo por que os filantropos ingleses se esforçam com tanta diligência; fazer um povo todo igual, dirigindo os seus pensamentos e o seu proceder pelos mesmos motivos e pelas mesmas regras: e tais são os frutos. O moderno regime da opinião publica é, numa forma não organizada, o que são a educação e os sistemas políticos numa forma organizada; e a não ser que a individualidade possa resistir a este jugo, a Europa tenderá, apesar dos seus nobres precedentes e o seu professo cristianismo, a tornar-se numa outra China.

Que é que até agora tem livrado a Europa desta sorte? Que é que tem feito da família das nações europeias uma porção de humanidade que avança, em vez duma porção de humanidade que para? Não é nenhuma excelência superior que nela haja, que, quando existe, existe como efeito e não como causa, mas a sua notabilíssima diversidade de caráter e de cultura. Os indivíduos, as classes, as nações, têm sido extremamente diferentes umas das outras: abrigaram uma grande variedade de caminhos, levando cada qual a alguma coisa de valor; e apesar de em todas as épocas terem sido sempre intolerantes uns para os outros os que seguem caminhos diferentes, e cada um deles tenha julgado uma coisa excelente que todos fossem obrigados a trilhar o seu caminho, raramente têm obtido um sucesso efetivo as suas tentativas para mutuamente se estorvarem e cada qual se tem resignado, afinal, a aceitar a seu tempo o bem que os outros lhe podem oferecer. A Europa, na minha opinião, deve absolutamente o seu desenvolvimento progressivo e plurilateral a esta pluralidade de caminhos. Contudo, já entra a possuir este beneficio em grau muito menos considerável. Avança decidida para o ideal chinês de igualar toda a gente. M. de Tocqueville, na sua última e notável obra observa que os franceses de agora se parecem mais uns com os outros dos que os da precedente geração. A mesma observação se pode fazer a respeito dos ingleses, e com maior razão. Numa passagem já mencionada de Wilhelm von Humboldt, cita ele duas condições necessárias do desenvolvimento humano, pela necessidade que existe de tornar as pessoas dessemelhantes: a saber, a liberdade e a variedade de situações. A segunda destas duas condições vai dia a dia diminuindo neste país. As circunstâncias que cercam as diferentes classes e os diferentes indivíduos e formam os seus caráteres vão se tornando dia a dia mais homogêneas. Noutros tempos, classes diferentes, lugares vizinhos diferentes, comércios e profissões diferentes, viviam podemos dizê-lo, em mundos diferentes; hoje vivem exatamente no mesmo. Até certo ponto, leem as mesmas coisas, prestam atenção às mesmas coisas, veem as mesmas coisas, vão para os mesmos lugares, dirigem as suas esperanças e os seus temores aos mesmos objetos, têm os mesmos direitos e liberdades, os mesmos meios de os afirmar. Mesmo que sejam ainda grandes as diferenças de situação que subsistem, não se podem comparar com as que deixaram de existir.

Mas a assimilação vai mais longe. Promovem-na todas as alterações políticas do tempo, visto que todas elas tendem a elevar os que estão em baixo e a fazer descer os que estão em cima. Promove-a toda a extensão da educação, porque a educação submete toda a gente a um certo número de influências comuns e lhe dá acesso no sortimento geral do factos e dos sentimentos. Promove-a o progresso dos meios de comunicação, pondo em contato pessoal habitantes de lugares longínquos e assegurando uma corrente contínua de mudanças entre um e outro lugar. Promove-a o aumento do comércio e das indústrias, difundindo mais largamente as vantagens de cômodas circunstâncias e patenteando todos os objetos de ambição, mesmo os mais altos, à competição geral, pelo que o desejo de elevação deixa de ser um caráter particular a uma classe, para ser o de todas elas. Mas, mais do que tudo, contribui para uma geral uniformidade do gênero humano o completo estabelecimento, neste e noutros países livres, do predomínio da opinião pública no Estado. Como as várias eminências sociais que habilitavam as pessoas nelas investidas a desprezar a opinião do povo gradualmente se foram nivelando como a ideia mesmo de resistir à vontade do público, quando positivamente se conhece que ele tem uma vontade, desaparece cada vez mais dos espíritos dos políticos práticos; deixa de existir qualquer reduto onde ainda possa haver insubmissão ao conformismo — qualquer poder substanciado na sociedade que, oposto por si mesmo ao predomínio dos números, seja interessado a tomar sob a sua proteção as opiniões e tendências diferentes das do público.

A combinação de todas estas causas forma uma massa tão grande de influências hostis à Individualidade, que não é fácil ver como é que ela poderá manter seu posto. Fá-lo-á com dificuldade crescente, a menos que a parte inteligente do público venha a sentir o seu valor, e a ver que é bom que haja diferenças, ainda mesmo que não sejam para melhor. Se alguma vez têm de ser afirmados os direitos da Individualidade, é agora a ocasião, enquanto se não faz essa assimilação forçada. Só nos primeiros tempos podemos nos opor à usurpação. A pretensão de que todos os outros se nos hão de assimilar vai aumentando com o andar dos tempos. Se a nossa resistência espera que a vida esteja reduzida à quasi um tipo uniforme, quando lá chegarmos todos os desvios desse tipo comum serão considerados ímpios, imorais, monstruosos mesmo, e contrários à natureza. A humanidade bem depressa perde o dom de conceber a diversidade, quando por tanto tempo se desacostumou de a ver.

 

Tradução atualizada da série Biblioteca Internacional, Volume XVII .