Do Contrato Social

Extratos do Primeiro Livro do Contrato Social ou Princípios do Direito Político, “onde se investiga como o homem passa do Estado de natureza ao estado civil, e quais são as condições essenciais do pacto.” De Jean-Jacques Rousseau, Amsterdam, 1762 d.C.

Tradução de Marcelo Consentino

oferecimento

Preâmbulo

Eu quero investigar se na ordem civil pode haver qualquer regra de administração legítima e certa, tomando-se os homens tais quais eles são, e as leis tais quais elas podem ser: eu tentarei aliar sempre nesta pesquisa aquilo que o direito permite com aquilo que o interesse prescreve, a fim de que a justiça e a utilidade não se encontrem de modo algum divididas.

Eu entro na matéria sem provar a importância do meu tema. Perguntar-me-ão se eu sou príncipe ou legislador para escrever sobre a Política? Eu respondo que não, e que é por isso que eu escrevo sobre a Política. Se eu fosse príncipe ou legislador, eu não perderia meu tempo dizendo o que se deve fazer; eu o faria, ou me calaria.

Nascido cidadão de um Estado livre, e membro do [poder] soberano, qualquer influência débil que possa ter minha voz nos negócios públicos, o direito de votar basta para me impor o dever de me instruir. Feliz, todas as vezes que eu medito sobre os Governos, de encontrar sempre em minhas investigações novas razões para amar aquele do meu País!

A questão

(Capítulo I)

O homem nasceu livre, e por toda parte está acorrentado. Um se crê o senhor dos outros, e não deixa de ser mais escravo que eles. Como esta mudança se deu? Eu ignoro. O que a pode tornar legítima? Creio poder responder a essa questão.

Se eu não considerasse senão a força, e o efeito que deriva dela, eu diria: “Enquanto um povo é coagido a obedecer e enquanto obedece, ele faz bem; tão logo ele possa abalar seu jugo, se o abalar, faz ainda melhor; pois, recuperando sua liberdade pelo mesmo direito que a tirou dele, ou ele está legitimado a retomá-la, ou não estava quem a tomou.” Mas a ordem social é um direito sagrado que serve de base a todos os outros. Não obstante este direito não vem da natureza; ele está portanto fundado sobre as convenções. Trata-se de saber quais são estas convenções.

Das primeiras sociedades

(Do Capítulo II)

A mais antiga de todas as sociedades e a única natural é aquela da família: ainda que os filhos não permaneçam ligados ao pai senão pelo tempo que têm necessidade dele para se conservar. Tão logo essa necessidade cessa, o laço natural se dissolve. Os filhos, isentos da obediência que eles deviam ao pai, o pai, isento dos cuidados que ele devia aos filhos, reentram todos igualmente na independência. Se eles continuam a permanecer unidos, já não é naturalmente, é voluntariamente; e a família ela mesma só se mantém pela convenção.

Esta liberdade comum é uma consequência da natureza do homem. Sua primeira lei é de velar por sua própria conservação, seus primeiros cuidados são aqueles que ele se deve a si mesmo, e, tão logo ele entra na idade da razão, sendo só ele o juiz dos meios próprios a conservá-la, torna-se por isso seu senhor.

A família é portanto se quiserem o primeiro modelo das sociedades políticas; o chefe é a imagem do pai, o povo é a imagem dos filhos, e todos sendo iguais e livres não alienam sua liberdade senão por sua utilidade. Toda a diferença é que na família o amor do pai por seus filhos o paga pelos cuidados que ele presta, e que no Estado o prazer de comandar supre este amor que o chefe não tem por seus povos.

Que é preciso sempre retornar a uma primeira convenção

(Capítulo V)

Haverá sempre uma grande diferença entre submeter uma multidão, e reger uma sociedade. Que homens esparsos sejam sucessivamente submetidos a um só, seja qual for a quantidade deles, eu não vejo aí senão um senhor e escravos, eu não vejo um povo e seu chefe; é se quiserem uma agregação, mas não uma associação; não há aí bem público nem corpo político. Este homem, ainda que subjugasse a metade do mundo, não deixa de ser sempre um particular; seu interesse, separado daquele dos outros, não deixa de ser sempre um interesse privado. Se este mesmo homem perece, seu império depois dele permanece esparso e sem conexões, como o carvalho que se dissolve e termina num punhado de cinzas, depois que o fogo o consumiu.

Um povo, diz Grotius, pode se dar a um rei. Segundo Grotius um povo é portanto um povo antes de se dar a um rei. Este dom mesmo é um ato civil, ele supõe uma deliberação pública. Antes, portanto de examinar o ato pelo qual um povo elege um rei, seria bom examinar o ato pelo qual um povo é um povo. Pois este ato sendo necessariamente anterior ao outro é o verdadeiro fundamento da sociedade.

Com efeito, se não houvesse qualquer convenção anterior, onde estaria, a menos que a eleição fosse unânime, a obrigação para o pequeno número que se submete à escolha do grande, e de onde os cem que querem um mestre têm o direito de votar por dez que não o querem? A lei da pluralidade dos sufrágios é ela mesma um estabelecimento de convenção, e supõe ao menos uma vez a unanimidade.

Do Pacto Social

(Capítulo VI)

Eu suponho os homens chegados a este ponto onde os obstáculos nocivos à sua conservação no estado da natureza, levam a melhor, em função de sua resistência, sobre as forças que cada indivíduo pode empregar para se manter em seu estado. Então este estado primitivo não pode mais subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser.

Ora, como os homens não podem gerar novas forças, mas somente unir e dirigir aquelas que existem, eles não têm mais outro meio para se conservar, do que formar por agregação uma soma de forças capaz de levar a melhor sobre a resistência, do que as pôr em jogo por uma única força motriz e do que fazer com que ajam em harmonia.

Esta soma de forças não pode nascer senão do concurso de muitos: mas a força e a liberdade de cada homem, sendo os primeiros instrumentos de sua conservação, como ele as engajará sem se prejudicar, e sem negligenciar os cuidados que ele deve a si? Esta dificuldade que se levanta ante meu tema pode ser enunciada nestes termos.

“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça contudo senão a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes?” Tal é o problema fundamental ao qual o contrato social dá a solução.

As cláusulas deste contrato são de tal forma determinadas pela natureza do ato, que a menor modificação as tornaria vãs e sem efeito; de modo que, ainda que elas não tenham talvez sido enunciadas jamais, elas são por toda parte as mesmas, por toda parte tacitamente admitidas e reconhecidas; até o ponto que, sendo o pacto social violado, cada um reentra então em seus primeiros direitos e retoma sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual ele a renunciara.

Estas cláusulas bem entendidas se reduzem todas a uma só, a saber a alienação total de cada associado com todos os seus direitos a toda a comunidade: Pois primeiramente, cada um se dando inteiro, a condição é igual para todos, e a condição sendo igual para todos, ninguém tem interesse de a tornar onerosa aos outros.

Ademais, sendo a alienação feita sem reservas, a união é tão perfeita quanto ela pode ser e nenhum associado tem do que reclamar: Pois se restassem alguns direitos aos particulares, como não haveria nenhum superior comum capaz de sentenciar entre eles e o público, cada um sendo em algum ponto seu próprio juiz pretenderia logo o ser para todos, o estado da natureza subsistiria, e a associação se tornaria necessariamente tirânica ou vã.

Enfim cada um se dando a todos não se dá a ninguém, e como não há um associado sobre o qual não adquirimos o mesmo direito que cedemos a ele sobre nós, ganhamos o equivalente de tudo aquilo que perdemos, e mais força para conservar aquilo que temos.

Se portanto descartamos do pacto social aquilo que não é de sua essência, veremos que ele se reduz aos termos seguintes. Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua potência sob a suprema direção da vontade geral; e nós recebemos em corpo cada membro como parte indivisível do todo.

Imediatamente, em lugar da pessoa particular de cada contratante, este ato de associação produz um corpo moral e coletivo que é composto de tantos membros quanto a assembleia é de vozes, a qual recebe deste mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Esta pessoa pública que se forma assim pela união de todas as outras tomava outrora o nome de Cidade (Cité), e assume ora o nome de República ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros Estado quando ele é passivo, Soberano quando ele é ativo, Potência se comparado aos seus semelhantes. Em relação aos associados eles tomam coletivamente o nome de povo, e se chamam em particular Cidadãos como participantes da autoridade soberana, e Súditos como submetidos às leis do Estado. Mas estes termos se confundem frequentemente e são tomados uns pelos outros; basta saber distingui-los quando eles são empregados em toda a sua precisão.

Do Soberano

(Capítulo VII)

Vê-se por esta fórmula que o ato de associação encerra um empenho recíproco do público com os particulares, e que cada indivíduo, contratante, por assim dizer, consigo mesmo, se encontra empenhado sob uma dupla relação; a saber, como membro do Soberano para com os particulares, e como membro do Estado para com o Soberano. Mas não se pode aplicar aqui a máxima do direito civil que ninguém é obrigado aos empenhos que assumiu para consigo mesmo; pois há muita diferença entre se obrigar para consigo, ou para com um todo do qual se é parte.

É preciso notar ainda que a deliberação pública, que pode obrigar todos os súditos em relação ao Soberano, em razão de duas diferentes relações sob as quais cada um deles é visto, pode, pela razão contrária, obrigar o Soberano para consigo mesmo, e que, por conseguinte, é contra a natureza do corpo político que o Soberano se imponha uma lei que ele possa infringir. Não podendo se considerar senão sob uma única e mesma relação ele está então na mesma situação de um particular contratante consigo mesmo: por onde vemos que não há e nem pode haver nenhuma espécie de lei fundamental obrigatória para o corpo do povo , nem mesmo o contrato social. O que não significa que este corpo não possa se engajar perfeitamente bem para com outro naquilo que não derroga este contrato; pois em relação ao estrangeiro, ele se torna um ser simples, um indivíduo.

Mas o corpo político ou o Soberano, não extraindo seu ser senão da saúde do contrato não pode jamais se obrigar, mesmo em relação a outro, em nada que derrogue este ato primitivo, como alienar alguma porção de si mesmo ou de se submeter a um outro Soberano. Violar este ato pelo qual ele existe seria se aniquilar, e aquilo que não é nada não produz nada.

Assim que esta multidão estiver reunida em um corpo, não se pode ofender um dos membros sem atacar o corpo; ainda menos ofender o corpo sem que os membros sejam afetados. Assim o dever e o interesse obrigam igualmente as duas partes contratantes e cooperarem mutuamente, e os mesmos homens devem buscar reunir sob esta dupla relação todas as vantagens que dependem dela.

Ora, o Soberano não sendo formado senão de particulares que o compõem não tem nem pode ter interesse contrário aos deles; por conseguinte a potência Soberana não tem qualquer necessidade de garantias para com os súditos, porque é impossível que o corpo queira atentar contra todos os seus membros, e veremos adiante que ele não pode atentar contra nenhum em particular. O Soberano, pelo simples fato de que ele existe, é sempre aquilo que deve ser.

Mas não é assim quando se trata dos súditos em relação ao Soberano, a quem, apesar do interesse comum, ninguém responderia por seus engajamentos se ele não encontrasse meios de assegurar sua fidelidade.

Com efeito cada indivíduo pode como homem ter uma vontade particular contrária ou dessemelhante à vontade geral que ele tem como Cidadão. Seu interesse particular pode lhe falar de um modo completamente diverso que o interesse comum; sua existência absoluta e naturalmente independente pode lhe fazer visualizar aquilo que deve à causa comum como uma contribuição gratuita, cuja perda será menos nociva aos outros do que o pagamento será oneroso para ele, e observando a pessoa moral que constitui o Estado como um ser de razão porque não se trata de um homem, ele gozaria dos direitos do cidadão sem querer preencher os deveres do súdito; injustiça cujo progresso causaria a ruina do corpo político.

A fim portando de que este pacto social não seja um vão formulário, ele encerra tacitamente este engajamento que é o único capaz de dar força aos outros, que aquele que se recusar a obedecer à vontade geral, será coagido por todo o corpo: o que não significa outra coisa senão que ele será forçado a ser livre; pois tal é a condição que, sendo dada por cada Cidadão à Pátria, lhe garante contra toda dependência pessoal; condição que faz o artifício e o jogo da máquina política, e que é a única que torna legítimos os engajamentos civis, os quais, sem isso seriam absurdos, tirânicos, e submetidos aos mais enormes abusos.

Tradução: Marcelo Consentino