Nas trevas do coração: a horrenda vida e a morte horrorosa do horrível Mister Kurtz

Do terceiro e último capítulo de No Coração das Trevas de Joseph Conrad. Londres, 1902 d.C.

Tradução de José Roberto O’Shea para a Editora Hedra

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Ao anoitecer, no convés de um navio atracado no Tâmisa, Marlow, um marinheiro introspectivo e desencantado, conta sua jornada pelo Rio Congo a uma pequena audiência formada pelo Diretor da Companhia, um contador e o narrador anônimo do livro. Quando jovem, se candidatara ao posto de capitão de um barco à vapor para a “Companhia” – uma multinacional de comércio de marfim. Ao chegar à Estação Litorânea da Companhia na África, Marlow testemunha cenas de brutalidade, caos e devastação. De um contador que o impressiona pelas roupas impecáveis ouve pela primeira vez a respeito de Kurtz – um agente “notável” encarregado da Estação Interior. Após mais de 200 milhas de viagem, Marlow chega à Estação Central, onde é obrigado a esperar por alguns meses até que terminem de consertar o seu barco. Lá conhece o Gerente Geral da Companhia, segundo o qual Kurtz está gravemente enfermo. Conhece também um fabricante de tijolos obsoleto, já que não tem todos os materiais para fazer tijolos. Quando o barco fica pronto, Marlow parte acompanhado do Gerente, alguns agentes da Companhia e uma tripulação de nativos ex-canibais, supostamente com a missão de aliviar Kurtz de suas tribulações. Após sobreviverem a um ataque de flechas, chegam à Estação Interior, cercada por uma série de postes ornamentados com “bolas” que logo descobrirão serem cabeças. Um mercador russo, alcunhado por Marlow “O Arlequim”, aborda-os apresentando-se como um discípulo entusiasticamente devotado à sabedoria de Kurtz. Ele informa a Marlow que o barco fora atacado porque os nativos não queriam que Kurtz fosse levado.

 

A sombra comprida da floresta havia escorregado encosta abaixo enquanto conversávamos, chegando bem além do casebre arruinado, além da simbólica fileira de estacas. Aquilo tudo já estava na penumbra, enquanto nós, lá embaixo, ainda estávamos ao sol, e o braço de rio diante da clareira cintilava num esplendor plácido e deslumbrante, com uma curva escura e sombria acima e outra abaixo. Não se via na margem vivalma. O matagal não se mexia.

De repente, detrás de um dos cantos da casa, apareceu um grupo de homens, como se tivessem surgido do solo. Caminhavam com dificuldade e em bloco, o capim até a cintura, e transportavam uma padiola improvisada. De súbito, no vazio da paisagem, ecoou uma gritaria cuja estridência perfurou o ar imóvel, qual uma flecha afiada disparada diretamente contra o coração da terra. E, como por encanto, torrentes de seres humanos… seres humanos nus… carregando lanças, arcos, escudos, com olhares e movimentos selvagens, foram despejados na clareira pela floresta de fisionomia escura e pensativa. O matagal se mexeu, o capim ondulou por um momento, e então tudo se aquietou em atenta imobilidade.

“Agora, se ele não disser a coisa certa para eles, será o nosso fim”, disse o russo, a meu lado. O bloco de homens com a padiola também se detivera, na metade do caminho até o vapor, como que petrificado. Vi o homem na padiola erguer-se e sentar, esquálido, com o braço erguido acima dos ombros dos carregadores. “Tomara que o homem que sabe falar tão bem sobre amor, em geral, encontre uma boa razão para nos salvar desta vez”, eu disse. Eu lamentava amargamente o risco absurdo da nossa situação, como se estar à mercê daquele espectro horrendo fosse uma necessidade desonrosa. Eu não ouvia qualquer som, mas, pelo binóculo, via o braço magro estendido em sinal de comando, o maxilar inferior movendo-se, os olhos daquela assombração brilhando sombriamente numa cabeça ossuda que balançava com solavancos grotescos. Kurtz… Kurtz… significa “baixo” em alemão… não é? Bem, o nome era tão autêntico quanto tudo o mais em sua vida… e morte. Ele parecia ter ao menos dois metros de altura. A manta havia caído, e seu corpo emergira, deplorável e apavorante, como se saísse de uma mortalha. Eu conseguia ver suas costelas se mexendo, os ossos do braço acenando. Era como se uma forma animada da morte, entalhada em marfim velho, estivesse sacudindo a mão, ameaçadoramente, para um bando imóvel de homens feitos de bronze escuro e reluzente. Vi quando arreganhou a boca… o que lhe conferiu um aspecto estranhamente voraz, como se ele quisesse engolir todo o ar, toda a terra, todos os homens diante dele. Uma voz profunda chegou aos meus ouvidos, embora fraca. Ele devia estar gritando. Subitamente, caiu para trás. A padiola sacudiu, enquanto os carregadores cambaleavam, seguindo em frente, e quase ao mesmo tempo percebi que a multidão de selvagens desaparecia sem qualquer movimento perceptível de retirada, como se a floresta, que os ejetara tão repentinamente, os houvesse recolhido, como o ar é inalado numa longa aspiração.

Alguns peregrinos, atrás da padiola, carregavam as armas dele… duas espingardas, uma carabina pesada, uma pistola leve… os raios daquele Júpiter deplorável. O Gerente curvou-se, sussurrando enquanto caminhava ao lado da cabeça dele. Depuseram-no numa das pequenas choupanas… um cômodo com espaço apenas para um local para dormir, e uma ou duas banquetas, os senhores sabem. Havíamos trazido a correspondência dele atrasada, e uma pilha de envelopes rasgados e cartas abertas amontoavam-se sobre a cama. A mão dele vagava debilmente entre os papéis. Fiquei impressionado com o fogo dos seus olhos e com a languidez serena da sua expressão. Não era tanto a exaustão causada pela enfermidade. Não aparentava padecer dor. Aquela sombra parecia satisfeita e tranquila, como se por ora estivesse saciada do seu quinhão de emoções.

Ele manuseou uma das cartas e, olhando-me nos olhos, disse, “Muito prazer”. Alguém lhe escrevera a meu respeito. As tais recomendações especiais ressurgiam. O volume da voz que ele emitia sem esforço, quase sem se dar ao trabalho de mover os lábios, surpreendeu-me. Que voz! Que voz! Era grave, profunda, vibrante, enquanto o homem parecia incapaz de um sussurro. Contudo, ele tinha força suficiente… artificiosa, sem dúvida… para quase dar cabo de nós, conforme os senhores em breve poderão constatar. O Gerente apareceu à porta, calado; saí imediatamente, e ele puxou a cortina atrás de mim. O russo, observado com curiosidade pelos peregrinos, olhava para a margem do rio. Segui a direção do seu olhar.

Escuras formas humanas podiam ser avistadas a distância, esvoaçando indistintamente diante da sombria orla da floresta; perto do rio, duas brônzeas figuras apoiadas em longas lanças posicionavam-se ao sol, vestidas para guerra, com fantásticos adornos na cabeça, confeccionados com peles malhadas, figuras essas que, ao mesmo tempo, pareciam estátuas. E, da esquerda para a direita, ao longo da margem ensolarada, andava a selvagem e belíssima aparição de uma mulher.

Ela caminhava com os passos contados, envolta em panos listrados e com franjas, batendo os pés no solo, garbosamente, tilintando e sacudindo ornamentos bárbaros. Mantinha a cabeça erguida, os cabelos penteados na forma de elmo, perneiras de bronze até os joelhos, pulseiras de fio de bronze até os cotovelos, um sinal carmim pintado na face parda; inúmeros colares de contas de vidro, objetos bizarros, amuletos, presentes de feiticeiros, pendiam-lhe do corpo, reluzindo e balançando a cada passo. A indumentária decerto valia tanto quanto várias presas de elefante. A mulher era selvagem e soberba, assustadora e magnífica; havia naquela marcha algo ameaçador e majestoso. E, no silêncio que se abatera subitamente sobre toda aquela triste região, a imensa floresta, o corpo colossal da vida fecunda e misteriosa, parecia contemplá-la, reflexiva, como se contemplasse a imagem da sua própria alma tenebrosa e ardente.

Ela chegou até o vapor, deteve-se e nos encarou. Sua sombra comprida caiu à beira d’água. O rosto apresentava um aspecto trágico e feroz, de tristeza selvagem e dor emudecida, mescladas ao medo causado por uma determinação hesitante e incipiente. Deteve-se, olhando para nós, sem se mexer, e, à semelhança da própria selva, tinha um ar de reflexão acerca de um propósito inescrutável. Um minuto inteiro se passou, e então ela deu um passo adiante. Seguiram-se um tímido tilintar, um lampejo de metal amarelo, um balanço de panos franjados, e ela estancou, como se o coração tivesse falhado. O jovem ao meu lado rosnou. Os peregrinos atrás de mim murmuraram. Ela olhou para nós como se sua vida dependesse da inabalável firmeza daquele olhar. De repente, abriu os braços desnudos e os elevou, rijos, acima da cabeça, como se tomada por um desejo incontrolável de tocar o céu; ao mesmo tempo, sombras céleres lançaram-se pela terra, correram pelo rio e envolveram o vapor num abraço escuro. Um silêncio assustador pairou sobre a cena.

Ela virou-se, lentamente, caminhou pela margem e entrou no matagal, à esquerda. Uma única vez, voltou os olhos cintilantes em nossa direção, na penumbra da mata, antes de desaparecer.

“Se ela fizesse menção de subir a bordo, acho que teria mesmo tentado alvejá-la”, disse o homem dos remendos, com nervosismo. “Arrisquei a vida todos os dias na última quinzena, para mantê-la longe da casa. Um dia ela entrou e armou uma grande encrenca por causa daqueles trapos miseráveis que eu tinha apanhado na despensa para com eles remendar minhas roupas. Meu aspecto estava indecente. Ao menos deve ter sido isso, pois, enfurecida, ela falou com Kurtz durante uma hora, apontando para mim de vez em quando. Não entendo o dialeto daquela tribo. Para sorte minha, acho que Kurtz estava doente demais naquele dia para se importar com aquilo, ou teria havido confusão. Não dá para compreender… Não… é demais para mim. Ah, mas agora já acabou.”

Naquele instante ouvi a voz profunda de Kurtz detrás da cortina: “Salvar-me… salvar o marfim, você quer dizer. Não me diga! Salvar a mim! Ora, eu é que tive de salvá-lo. Agora você está interferindo nos meus planos. Doente. Doente. Nem tão doente quanto você pensa. Não importa. Vou levar a termo as minhas ideias… vou voltar. Vou lhe mostrar o que pode ser feito. Você e suas noçõezinhas de mascate… você está me atrapalhando. Eu vou voltar… eu…”

O Gerente saiu. Concedeu-me a honra de me pegar pelo braço e me levar até um canto. “Ele está muito abatido, muito abatido”, disse. Achava por bem suspirar, mas esqueceu de demonstrar uma tristeza convincente. “Fizemos por ele tudo o que podíamos… não fizemos? Mas não há como esconder um fato: o Sr. Kurtz fez mais mal do que bem à Companhia. Não percebeu que o momento não era adequado para agir com vigor. Cautela. Cautela. Eis o meu princípio. Ainda precisamos agir com cautela. A região está fechada para nós por enquanto. Deplorável. De modo geral, o comércio vai ser prejudicado. Não nego que existe uma quantidade extraordinária de marfim… em sua maioria fossilizado. Precisamos salvá-lo… a qualquer custo… mas, veja como é precária a situação… e por quê? Porque o método é ineficaz.” “Você”, eu disse, olhando para a margem, “chama isso de ‘método ineficaz’?” “Sem dúvida”, ele exclamou com ardor. “O senhor não chamaria?”… “Não é método nenhum”, murmurei, passado um instante. “Exatamente”, ele exultou. “Eu previ isso. Demonstra total falta de discernimento. É meu dever apontar isso à devida esfera.” “Ah!”, eu disse, “aquele sujeito… qual é mesmo o nome dele?… o fabricante de tijolos… vai lhe preparar um relatório legível.” Ele pareceu momentaneamente confuso. Achei que jamais havia respirado uma atmosfera tão insalubre, e voltei o pensamento para Kurtz, em busca de alívio… certamente, alívio. “Contudo, acho o Sr. Kurtz um homem notável”, eu disse com ênfase. Ele teve um sobressalto, lançou-me um olhar frio e pesado, disse, falando baixo, “ele era”, e deu as costas para mim. O meu prestígio acabara; vi-me no mesmo saco que Kurtz, na condição de partidário de métodos ineficazes. Eu era ineficaz. Ah, mas já era alguma coisa, ter ao menos uma opção entre pesadelos.

Eu havia, na realidade, me voltado para a selva, não para o Sr. Kurtz, que, eu tinha de admitir, estava praticamente enterrado. E, por um tempo, tive a impressão de estar, eu também, enterrado num grande túmulo repleto de segredos indizíveis. Senti um peso insuportável pressionando meu peito, cheiro de terra molhada, da presença invisível da decomposição vitoriosa, das trevas de uma noite impenetrável… O russo deu-me uma palmadinha no ombro. Ouvi-o murmurar e gaguejar algo como “irmão do mar… não poderia esconder… conhecimento de questões que afetariam a reputação do Sr. Kurtz”. Esperei. Para ele, é claro, o Sr. Kurtz não estava no túmulo; desconfio que, para ele, o Sr. Kurtz era um dos imortais. “Bem”, eu disse, finalmente, “fale logo. No fim das contas, sou amigo do Sr. Kurtz… de certo modo.”

Ele afirmou, com bastante formalidade, que, se não tivéssemos “a mesma profissão”, teria guardado a questão para si, sem se preocupar com as consequências. Suspeitava haver “má vontade flagrante contra ele, da parte daqueles brancos que…” “Você tem razão”, eu disse, lembrando uma certa conversa que escutara. “O Gerente acha que você deve ser enforcado.” Mostrou-se apreensivo diante dessa informação, o que, a princípio, me divertiu. “É melhor eu sair do caminho, discretamente”, disse, com seriedade. “Nada mais posso fazer por Kurtz agora, e eles logo encontrariam alguma desculpa. O que haveria de detê-los? Existe um posto militar a quatrocentos e oitenta quilômetros daqui.” “Bem, palavra de honra!”, eu disse, “talvez seja melhor você ir embora, se tiver amigos entre os selvagens da redondeza.” “Muitos”, ele disse. “É gente simples… e eu não quero nada, o senhor sabe.” Ficou parado, mordendo o lábio; então: “Não quero que aconteça nada de mal com esses brancos aqui, mas é claro que eu estava pensando na reputação do Sr. Kurtz… mas o senhor é meu irmão do mar e…” “Está bem”, eu disse, passado um momento. “A reputação do Sr. Kurtz estará a salvo comigo.” Eu desconhecia a verdade contida na minha própria fala.

Informou-me, abaixando o tom da voz, que Kurtz havia ordenado o ataque ao vapor. “Por vezes, ele detestava a ideia de ser levado embora… Mas não entendo essas questões. Sou um homem simples. Ele achava que o ataque os afugentaria… que os senhores desistiriam, supondo que ele estivesse morto. Não consegui impedi-lo. Ah, passei maus pedaços neste último mês.” “Muito bem”, eu disse. “Ele agora está bem.” “Si-i-im”, ele gaguejou, parecendo não estar muito convencido. “Obrigado”, eu disse, “vou ficar de olhos abertos.” “Mas, bico calado… hein?”, insistiu, com ansiedade. “Seria terrível para a reputação dele se alguém aqui…” Prometi discrição absoluta, com total gravidade. “Tenho uma canoa e três negros aguardando não longe daqui. Vou-me embora. O senhor pode me dar alguns cartuchos de Martini-Henry?” Eu podia, e o fiz com o devido sigilo. Serviu-se, piscando-me o olho, de um punhado do meu tabaco. “De marujo para marujo… o senhor sabe… o bom tabaco inglês.” À porta da cabine do piloto, virou-se… “Por acaso, o senhor não teria um par de sapatos sobrando?” Levantou uma perna. “Veja.” As solas estavam amarradas com barbantes, como uma sandália, sob o pé descalço. Desencavei um velho par, para o qual ele olhou com admiração, antes de enfiá-lo embaixo do braço esquerdo. Um dos bolsos (vermelho-vivo) estava estufado de cartuchos, do outro (azul-escuro) espreitava a Investigação de Towson etc. etc. Ele parecia se achar perfeitamente equipado para um novo encontro com a selva. “Ah! Nunca, nunca mais vou encontrar um homem como aquele. O senhor precisava tê-lo ouvido recitar poesia… e de autoria dele mesmo, segundo me disse. Poesia!” Fez girar os olhos, ao relembrar tal prazer. “Ah, ele abriu a minha mente!” “Adeus”, eu disse. Apertou-me a mão e sumiu noite adentro. Às vezes me pergunto se de fato o vi… se era possível encontrar um fenômeno daquele!…

Quando acordei, pouco depois da meia-noite, veio-me à mente a advertência que ele me fizera, uma insinuação de perigo que, na escuridão estrelada, parecia tão real que me fez levantar, com o propósito de dar uma espiada ao redor. Na colina uma grande fogueira ardia, devidamente iluminando um canto despencado da casa do posto. Um dos agentes, com um piquete formado por alguns dos nossos negros armados, guardava o marfim; mas na profundeza da floresta fachos vermelhos tremeluziam, parecendo afundar e emergir do solo, em meio a formas colunares obscuras, de uma negrura intensa, assinalando a posição exata do acampamento onde os adoradores do Sr. Kurtz praticavam a sua apreensiva vigília. O bater monótono de um grande tambor enchia o ar com pancadas surdas e uma vibração prolongada. O som contínuo e sonolento de muitos homens entoando para si algum misterioso feitiço surgiu da parede negra e chapada da mata, como o zumbido de abelhas que emana de uma colmeia, e provocou um estranho efeito narcotizante nos meus sentidos dormentes. Acho que eu estava cochilando, apoiado na amurada, quando uma repentina explosão de gritos, o rompante avassalador de um frêmito reprimido e misterioso, despertou-me num estado de espanto e perplexidade. O ruído cessou, repentinamente, e o som baixo e inebriante prosseguiu, produzindo um silêncio audível e reconfortante. Olhei por acaso para a pequena choupana. Lá dentro ardia uma luz, mas o Sr. Kurtz não estava ali.

Acho que teria dado um grito, se houvesse acreditado nos meus próprios olhos. Mas não acreditei neles a princípio… a coisa parecia mesmo impossível. O fato é que fiquei completamente debilitado por um medo direto, um temor puramente abstrato, sem ligação com qualquer forma concreta de perigo físico. O que tornou a emoção esmagadora foi… como poderei definir… o impacto moral que sofri, como se algo absolutamente monstruoso, intolerável ao pensamento e detestável à alma, houvesse investido contra mim inesperadamente. Isso durou, é claro, uma simples fração de segundo, e então a conhecida sensação de perigo mortal e comum, a possibilidade de um repentino assalto e massacre, ou algo parecido, que me parecia iminente, foi muito bem-vinda e alentadora. Pacificou-me a tal ponto que, na verdade, não soei qualquer alarme.

Um agente, todo abotoado dentro de um sobretudo, dormia numa cadeira no convés a um metro de mim. Os gritos não o despertaram; ele roncava levemente. Deixei-o entregue ao sono e pulei para a margem. Não traí o Sr. Kurtz… a ordem era jamais traí-lo… estava escrito que eu deveria ser leal ao pesadelo que escolhera. Estava ansioso por lidar sozinho com aquela sombra… e até hoje não sei por que resistia tanto em dividir com alguém a negrura peculiar daquela experiência.

Assim que pisei na margem vi uma trilha… uma trilha larga através do capim. Recordo o júbilo com que disse a mim mesmo, “ele não consegue andar… arrasta-se de quatro… agora o peguei”. O capim estava molhado de orvalho. Apertei o passo, de punhos cerrados. Acho que pensava em cair em cima dele e dar-lhe uma surra. Não sei. Tinha pensamentos bastante imbecis. A velha tricoteira com o gato se imiscuiu em minha memória, como a pessoa mais inadequada para se posicionar num dos pontos extremos de um caso daqueles. Avistei uma fileira de peregrinos disparando chumbo para cima, com as Winchesters apoiadas no quadril. Achei que jamais retornaria ao vapor, e imaginei-me vivendo sozinho e desarmado na mata até uma idade avançada. Tolices assim… os senhores sabem. E recordo que confundi o bater do tambor com as batidas do meu coração, e que fiquei satisfeito com a tranquila regularidade deste.
Mas, segui a trilha… então, parei para escutar. A noite estava bem clara, um espaço azul-escuro que faiscava com o orvalho e a luz das estrelas e no qual as coisas negras se mantinham imóveis. Julguei perceber um movimento adiante. Sentia-me estranhamente seguro de tudo naquela noite. Cheguei a sair da trilha, correndo num grande semicírculo (creio que o fiz rindo comigo mesmo), de modo a ficar à frente daquela comoção, do tal movimento que eu vira… se é que de fato avistara algo. Estava correndo em torno de Kurtz, como se fosse uma brincadeira de criança.

Dei de cara com ele e, se não tivesse me ouvido chegar, eu teria mesmo caído em cima dele; mas levantou-se a tempo. Pôs-se de pé, trôpego, alto, pálido, indistinto como o vapor exalado pela terra, e cambaleou um pouco, sombrio e calado à minha frente, enquanto atrás de mim o fogo assomava entre as árvores, e o murmúrio de muitas vozes emanava da floresta. Eu havia surgido à frente dele com astúcia, mas quando o confrontei, percebi tudo; enxerguei o perigo em sua devida dimensão. Não havia de modo algum acabado. Imaginem se ele começasse a gritar. Embora mal pudesse ficar de pé, ainda havia muito vigor em sua voz. “Saia daqui… esconda-se”, ele disse, naquele tom profundo. Foi horrível. Olhei para trás. Estávamos a menos de trinta metros da fogueira mais próxima. Uma figura negra levantou-se e caminhou sobre longas pernas negras, sacudindo longos braços negros contra o clarão. Tinha chifres… chifres de antílope, creio eu… na cabeça. Algum feiticeiro, algum bruxo, sem dúvida; tinha um aspecto demoníaco. “O senhor sabe o que está fazendo?”, sussurrei. “Perfeitamente”, ele respondeu, elevando a voz para pronunciar apenas aquela palavra; soou-me longínqua e, ao mesmo tempo, alta como uma saudação através de um megafone. Se resolver encrencar, estamos perdidos, pensei comigo. Não se tratava, evidentemente, de uma troca de socos, sem falar na aversão natural que eu tinha à ideia de bater naquela Sombra… naquela coisa errante e atormentada. “O senhor vai se perder”, eu disse… “se perder totalmente”. Às vezes temos um lampejo de inspiração, os senhores sabem. Eu disse a coisa certa, embora, a bem da verdade, ele não pudesse estar mais perdido do que naquele momento em que as bases da nossa intimidade estavam sendo estabelecidas… para resistir… resistir… até o fim… além do fim.

“Eu tinha grandes planos”, ele murmurou, hesitante. “Sim”, eu disse, “mas se tentar gritar, parto sua cabeça com…” Não havia pau nem pedra por perto. “Eu o estrangulo”, corrigi. “Eu estava prestes a realizar grandes coisas”, ele apelou, com a voz ardente e num tom de tamanho anseio, que meu sangue gelou. “E agora, por causa desse pilantra imbecil.” “Seu sucesso na Europa está garantido, de qualquer jeito”, afirmei com convicção. Eu não queria estrangulá-lo, os senhores entendem… e, de fato, isso teria pouca utilidade, em termos práticos. Tentei quebrar o encantamento, o encantamento pesado e mudo da selva que parecia atraí-lo para seu impiedoso seio, ao despertar instintos brutais esquecidos, ao tocar a memória de monstruosas paixões saciadas. Eu estava convencido de que isso, unicamente, o levara à fronteira da selva, através do matagal, na direção do brilho das fogueiras, do pulsar dos tambores, do zumbir das estranhas cantilenas; unicamente isso havia seduzido sua alma corrupta para além dos limites das aspirações permissíveis. E, os senhores não percebem, o terror da situação não era a possibilidade de ser golpeado na cabeça… embora eu tivesse a noção clara de tal perigo… mas nisso, no fato de eu ter de lidar com um ser ao qual era inútil apelar em nome do que quer que fosse, nem do que era elevado, nem do que era baixo. Eu precisava, a exemplo dos próprios negros, invocar… ele próprio… a sua exaltada e incrível degradação. Nada havia acima nem abaixo dele… e eu sabia disso. Soltara-se da Terra a pontapés. Homem maldito! Chutara a própria Terra, despedaçando-a. Ele estava sozinho… e, diante dele, eu não sabia se pisava o chão ou flutuava no ar. Venho contando aos senhores o que dissemos… repetindo as frases que pronunciamos… mas de que adianta? Eram palavras comuns, corriqueiras… sons vagos e conhecidos que todos nós trocamos todos os dias da vida. Mas e daí? Por trás delas, a meu ver, havia o caráter sugestivo de palavras ouvidas em sonhos, de frases ditas em pesadelos. Alma! Se alguém um dia lutou com uma alma, esse alguém sou eu. E tampouco estava discutindo com um louco. Acreditem se quiserem, o raciocínio dele era perfeitamente lúcido… concentrado, é verdade, nele próprio, com uma intensidade terrível, mas lúcido, e nisso residia minha única chance… exceto, é claro, dar cabo dele naquela hora e lugar, o que não era boa ideia, pois o barulho seria inevitável. Mas sua alma estava louca. Sozinha na mata, olhara para dentro de si mesma e, por Deus, vou lhes contar, enlouquecera. Fui obrigado… por causa dos meus pecados, suponho… a me submeter à provação de olhar dentro dela também. Eloquência alguma poderá ser mais destruidora da fé que se tem na humanidade do que o rompante final de sinceridade expresso por ele. E lutou muito consigo mesmo. Eu vi… eu ouvi… Vi o mistério inconcebível de uma alma que não conhecia limite, nem fé, nem medo, mas que lutava cegamente contra si mesma. Consegui manter a cabeça relativamente fria, mas, quando afinal o estirei no sofá, enxuguei minha testa, enquanto as pernas tremiam como se eu houvesse carregado meia tonelada nas costas morro abaixo. E, na verdade, eu apenas o apoiara, com seu braço ossudo em volta do meu pescoço… e ele não pesava muito mais do que uma criança.

Quando partimos no dia seguinte, ao meio-dia, a multidão, de cuja presença detrás da cortina de árvores eu estivera plenamente consciente o tempo inteiro, refluiu da mata, encheu a clareira, cobriu a encosta do morro com uma grande massa de corpos nus, ofegantes, trêmulos, brônzeos. Subi um pouco a correnteza, depois dei uma guinada rio abaixo; dois mil olhos seguiam as evoluções do enfurecido demônio-do-rio, chapinhando, sacudindo, batendo na água com sua cauda terrível e expelindo fumaça negra no ar. À frente da primeira fila, ao longo da margem, três homens, lambuzados da cabeça aos pés com barro vermelho, andavam empertigados de um lado para o outro, demonstrando nervosismo. Quando nos aproximamos outra vez, eles se voltaram para o rio, batendo os pés no solo, meneando as cabeças encimadas por chifres e balançando os corpos escarlates; sacudiam contra o enfurecido demônio-do-rio um punhado de penas pretas e uma pele nojenta com um rabo dependurado… algo que parecia uma cabaça ressecada; a cada momento, gritavam em coro sequências de palavras impressionantes, que não tinham qualquer semelhança com sons de linguagem humana; e o profundo murmúrio da multidão, subitamente interrompido, parecia a resposta formulada por alguma litania satânica.

Tínhamos carregado Kurtz até a cabine do piloto. Ali era mais arejado. Deitado no sofá, ele olhava fixamente pela veneziana aberta. Surgiu um redemoinho dentre a massa de corpos, e a mulher com elmo à cabeça e face parda correu até a beira do rio. Estendeu as mãos, gritou algo e toda a multidão selvagem repetiu o grito, formando um coro de expressões articuladas, rápidas, ofegantes.

“O senhor entende isso?”, perguntei.

Ele continuou a olhar através de mim, com olhos faiscantes, ansiosos, e uma expressão mista de desejo e ódio. Não ofereceu resposta, mas percebi que um sorriso, um sorriso de significado indefinível, surgira em seus lábios descoloridos que, no instante seguinte, contorceram-se convulsivamente. “Não entendo?”, ele disse, com vagar, ofegando, como se as palavras lhe houvessem sido arrancadas por algum poder sobrenatural.

Puxei a corda do apito, e fiz isso porque vi os peregrinos no convés pegando as carabinas, com ar de quem prevê um bom divertimento. Em reação ao guincho repentino, um movimento de horror abjeto percorreu a massa de corpos apinhados. “Não! Não os espante daqui!”, alguém gritou no convés, desconsoladamente. Puxei a corda várias vezes. Eles se dispersaram e correram, saltaram, agacharam, deram meia-volta, tentando se esquivar do horror daquele som aéreo. Os três sujeitos vermelhos caíram de bruços na margem, como se tivessem sido fuzilados. Apenas a mulher, bárbara e soberba, sequer se mexeu e, num gesto trágico, estendeu os braços nus em nossa direção, acima do rio taciturno e resplandecente.

E então aquela gente imbecil lá embaixo no convés começou a se divertir, e eu não vi mais nada, por causa da fumaça.

A correnteza marrom fluía rapidamente do coração das trevas, levando-nos rumo ao mar, numa velocidade duas vezes maior do que a da nossa jornada rio acima. E a vida de Kurtz corria rapidamente também, vazando, vazando do seu coração rumo ao mar do tempo inexorável. O Gerente estava bastante plácido; já não demonstrava nenhuma apreensão vital, e nos contemplou a ambos com um olhar compreensivo, de satisfação: o “caso” resultara tão bem quanto ele tinha esperado. Percebi que chegava o momento em que eu seria o último integrante do grupo que praticava

o “método ineficaz”. Os peregrinos me olhavam com desagrado. Eu era, digamos, contado entre os mortos. É estranho como aceitei aquela parceria imprevista, aquela escolha entre pesadelos que fui forçado a fazer na terra tenebrosa, invadida por aqueles espectros cruéis e gananciosos.

Kurtz falou. Que voz! Que voz! Soou profunda até o final. A voz sobrevivera às suas forças para esconder nas magníficas dobras da eloquência as trevas infecundas do seu coração. Ah, como ele se esforçava, como se esforçava. Os resíduos do seu cérebro gasto eram agora assombrados por imagens sombrias… imagens de riqueza e fama revolvendo obsequiosamente em torno do seu inextinguível dom da expressão grandiosa. Minha Pretendida, meu posto, minha carreira, minhas ideias… eram esses os tópicos das suas eventuais expressões de elevados sentimentos. A sombra do Kurtz original visitava o leito do engodo vazio cujo destino era ser agora enterrado no barro primevo. Mas tanto o amor diabólico quanto o ódio espectral dos mistérios descobertos disputavam a posse daquela alma plena de emoções primitivas, ávida de falsa fama, de honrarias enganosas, de todas as aparências de sucesso e poder.

Por vezes ele era ridiculamente infantil. Queria que reis o recepcionassem em estações ferroviárias no seu retorno do medonho Lugar Nenhum, onde pretendera realizar grandes feitos. “Se mostrarmos a eles que temos algo realmente lucrativo, não haverá limites ao reconhecimento da nossa capacidade”, ele dizia. “É claro que devemos levar em conta os motivos. Os motivos certos… sempre.” Deslizavam ao lado do vapor longos trechos do rio que pareciam ser sempre os mesmos, curvas monótonas, exatamente iguais, com suas multidões de árvores seculares observando pacientemente aquele sujo fragmento de outro mundo, o precursor da mudança, da conquista, do comércio, dos massacres, das bênçãos. Eu olhava adiante… pilotando. “Feche a veneziana”, disse Kurtz de repente, um dia; “não aguento olhar para isso.” Fecheia veneziana. Fez-se um silêncio. “Ah, mas ainda te arranco o coração!”, ele gritou para a selva invisível.

Enguiçamos… conforme eu já esperava… e tivemos de atracar na cabeceira de uma ilha para fazer reparos. Aquele atraso foi a primeira coisa que abalou a confiança de Kurtz. Certa manhã, ele me deu um maço de papéis e uma fotografia… o pacote amarrado com um cadarço de sapato. “Guarde isso para mim”, ele disse. “Aquele tolo canalha (referindo-se ao Gerente) é capaz de bisbilhotar as minhas caixas quando não estou olhando.” À tarde fui vê-lo. Estava deitado de costas, com os olhos fechados, e me retirei em surdina, mas ouvi quando murmurou: “Viver corretamente, morrer, morrer…” Fiquei escutando. Não houve mais nada. Estaria ensaiando algum discurso enquanto dormia, ou seria aquilo o fragmento de uma frase de algum artigo de jornal? Ele já havia escrito para jornais, e pretendia fazê-lo de novo, “para a divulgação das minhas ideias. É um dever”.

As trevas de Kurtz eram impenetráveis. Olhei para ele como quem olha para um homem que se encontra no fundo de um precipício onde o sol nunca brilha. Mas eu não dispunha de muito tempo para ele, porque estava ajudando o maquinista a desmontar os cilindros avariados, a desentortar um eixo de conexão e outras coisas assim. Vivia numa bagunça infernal de ferrugem, limas, porcas, parafusos, chaves de boca, martelos, furadeiras… coisas que abomino porque não me relaciono bem com elas. Eu cuidava da pequena forja que felizmente tínhamos abordo; trabalhava exaustivamente num miserável monte de sucata… a não ser quando tremia tanto que sequer podia ficar de pé.

Certa noite, ao entrar com uma vela, assustei-me ao ouvi-lo dizer, com a voz um pouco trêmula, “estou deitado aqui no escuro esperando a morte”. A luz estava a cerca de trinta centímetros dos olhos dele. Forcei-me a murmurar, “Ah, bobagem!”, e fiquei de pé ao lado dele como que petrificado.

Eu jamais vira, e espero jamais voltar a ver, algo que se assemelhe à alteração que se abateu sobre a fisionomia dele. Não, não fiquei comovido. Fiquei fascinado. Era como se um véu tivesse sido rasgado. Vi naquele rosto de marfim a expressão de um orgulho melancólico, uma força implacável, um terror covarde… um desespero intenso e irremediável. Teria ele vivido novamente, em cada detalhe, desejo, tentação e entrega, naquele instante de total conhecimento? Exclamou, num sussurro, para alguma imagem, alguma visão… exclamou duas vezes, um gemido que não era mais do que um suspiro:

“O horror! O horror!”

Soprei a vela e deixei a cabine. Os peregrinos ceavam na sala de refeições, e sentei-me diante do Gerente, que ergueu os olhos, oferecendo-me um relance inquisitivo, o qual consegui ignorar. Ele se recostou, sereno, com aquele seu sorriso peculiar selando as veladas profundezas da sua baixeza. Uma chuva contínua de pequenas moscas fluía sobre a lâmpada, sobre a toalha de mesa, sobre nossas mãos e faces. De repente, o menino que servia o Gerente introduziu a cabeça atrevida pelo vão da porta e disse num tom de desprezo mordaz:

“Sinhô Kurtz… ele morto.”

Todos os peregrinos correram para ver. Eu fiquei e continuei a minha ceia. Acho que fui considerado brutalmente insensível. No entanto, não comi muito. Havia ali uma lâmpada… luz… os senhores entendem… e lá fora estava tremendamente, tremendamente escuro. Não tornei a me aproximar do homem notável que pronunciara um julgamento acerca das aventuras de sua própria alma nesta Terra. A voz se fora. Que mais houvera ali? Mas é claro que estou ciente de que no dia seguinte os peregrinos enterraram algo num buraco lamacento.

 

Ilustração: O Major General britânico Horatio Gordon Robley com sua coleção de cabeças tatuadas, as chamadas mokomocai, dos povos aborígenes neozeolandeses maori (1895).