Música soviética em três tempos

I. “Confusão ao Invés da Música”

Editorial do Pravda de 28 de janeiro de 1936

No dia 17 de janeiro de 1936, Joseph Stalin assistiu a performance do espetáculo O plácido Don de Ivan Dzerchinsky (1909-1978), baseado na novela de Mikhail Solokov. Segundo um comunicado oficial, Stalin teria feito questão de chamar a seu camarote o compositor, o regente e o diretor da casa, dando um explicito sinal positivo “aos esforços do teatro no apoio à ópera soviética, notando os consideráveis méritos políticos e ideológicos da produção”. Tratava-se do primeiro evento de um Festival de música soviética realizado naquele período e o Pequeno Teatro de ópera de Leningrado levaria ao Teatro Bolshoi de Moscou duas de suas mais recentes e bem sucedidas produções. A outra era Lady Macbeth do distrito de Mtsensky de Dimitri Chostakóvitch (1906-1975), que foi apresentada no dia 26 de janeiro. 
Com uma segunda sinfonia dedicada à revolução de Outubro e já um nome internacionalmente respeitado como representante da nova música soviética, Shostakovich estava longe de ser uma voz da resistência ao projeto revolucionário bolchevique. Mesmo o libreto de Lady Macbeth, sobre o texto de Nikolay Leskov, matiza parte do elemento patológico da protagonista Katerina Izmailova. Ela é na ópera quase uma vítima do “patriarcado”, como se poderia dizer hoje em dia, o que eventualmente seria uma forma bastante envolvente de atualizar a narrativa original para o novo projeto da cultura russa pós-revolucionária (que tinha entre suas linhas mestras, ao menos por referências auto-declaradas, a emancipação feminina).
Mas não foi assim que Stalin entendeu o espetáculo. O edital do Pravda – muito possivelmente ditado pelo próprio ditador – demonstra isso.

 

Com o desenvolvimento cultural geral de nosso país cresceu também a necessidade da boa música. Em nenhum momento e em nenhum outro lugar  compositor teve um público tão sensível, ávido por boas canções, boas obras instrumentais e óperas.

Para esta nova madura realidade cultural do público soviético, os teatros estão apresentando a ópera Lady MacBeth de Chostakóvitch como uma grande realização inovadora. A crítica musical, sempre pronta a servir, elogiou a ópera elevando-a aos céus, dando-lhe glórias retumbantes. O jovem compositor, em vez de ouvir críticas sérias que poderiam ajudar em seu amadurecimento e futuros trabalhos, só ouve elogios entusiasmados.

Pois desde o primeiro minuto, o ouvinte fica chocado com a dissonância deliberada e o fluxo incessante de sons – fragmentos de melodias, rugidos, guinchados. Seguir esta “música” é difícil – recordá-la, impossível. O canto no palco é substituído por gritos. O lirismo é suplantado pela selvageria de ritmos caóticos; a paixão é expressa por ruídos. Se há caminho para melodias claras e simples, o compositor decide deliberadamente atirar-se de volta ao deserto de seu caos musical. É evidente que tudo isto não é devido à falta de talento ou à falta de habilidade para descrever emoções fortes e simples em música.

Música feita como que de cabeça para baixo, apenas uma reminiscência de ópera clássica – e nada em comum com a tradição sinfônica ou com a simples e popular linguagem musical acessível a todos. Esta música é construída sobre a base da rejeição – a mesma base em que a arte “de esquerda” é acusada de afetada na simplicidade do teatro, na clareza realismo, nos recursos de imagens sugestivas ou no falar das palavras. Tudo aquilo que leva o teatro às características mais negativas do “meyerholdismo” são, aqui, com a música, infinitamente multiplicadas. A típica confusão “de esquerda” em vez da música humana natural. O poder da boa música para infectar as massas tem sido sacrificado por uma expressividade de pequeno-burguês, “formalismo” em busca da originalidade de um clowning barato.

O perigo dessa tendência para a música soviética é clara, assumindo a distorção de esquerda na ópera a partir das mesmas fontes que levaram a distorção de esquerda na pintura, poesia, ensino e ciência. “inovações” pequeno-burguesas que rompem com a arte real, a verdadeira ciência e literatura. O compositor de Lady MacBeth foi forçado a usar em sua música elementos do jazz nervoso, convulsões e espasmos, a fim de emprestar “paixão” para seus personagens. . . . Ele revela os comerciantes e as pessoas monotonamente, bestialmente. A mulher predadora é retratada como uma espécie de “vítima” da sociedade burguesa.

E tudo isso é grosseiro, primitivo e vulgar. O compositor aparentemente nunca considerou o problema sojambre o quê o público soviético procura e espera na música. Ele ignorou a demanda da cultura soviética de que todas grosseria e selvageria sejam abolidas de todos os cantos da vida soviética. . . . Lady MacBeth vem tendo grande sucesso junto ao público burguês no exterior… Nossos teatros têm despendido uma grande quantidade de energia em dar ópera de Chostakóvitch uma apresentação completa. . . . Infelizmente, isso serviu apenas para realçar características vulgares da ópera mais vividamente. A atuação de talento merece gratidão; os esforços desperdiçados, arrependimento.

 

II. Carta aberta de Sergei Prokofiev em resposta à “Resolução sobre Música” do Comitê Central da União do Partido Comunista

1948 

O meu estado de saúde não me permite comparecer à Assembléia Geral dos Compositores Soviéticos. Gostaria, por conta disso, de expressar minhas ideias sobre a Resolução do Comitê Central da União do Partido Comunista (Bolshevik) de 10 de fevereiro de 1948, na presente carta. Peço para que seja lida na Assembléia se houver possibilidade.

A Resolução do Comitê Central distinguiu o tecido decadente na produção criativa de nossos compositores daquele saudável. Independentemente de quão doloroso possa ser para os compositores, eu mesmo incluído, eu dou boas-vindas à Resolução, que estabelece as condições necessárias para o retorno de toda saúde do organismo da música Soviética. A Resolução é particularmente importante por demonstrar que o movimento formalista é estranho ao povo Soviético, que leva ao empobrecimento e declínio da música. Aponta com claridade definitiva os objetivos a serem almejados pelos compositores soviéticos para prestar o melhor serviço ao povo soviético.

Naquilo que me compete, elementos de formalismo são peculiares à minha música desde pelo menos quinze ou vinte anos atrás. Aparentemente a infecção foi realizada pelo contato com as ideias ocidentais. Quando o erro formalista na ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensky foi exposto pelo Pravda em 1936, meditei de forma não breve sobre os componentes criativos de minha própria música, e cheguei a conclusão que meu método de composição era errado.

Como resultado comecei a buscar por um idioma mais significativo e claro. Em muitas de minhas obras posteriores – Alexander Nevsky, Um Brinde a Stalin, Romeu e Julieta, a Quinta Sinfonia – me forcei a me libertar dos elementos do formalismo e, me parece, fui bem-sucedido até certo ponto. A existência do formalismo em algumas de minhas obras é provavelmente explicada por uma certa complacência, uma realização insuficiente do fato que é completamente não desejada por nosso povo. A Resolução balançou o centro da consciência social de nossos compositores, ao tornar claro que tipo de música é ansiada pelo nosso povo, e os caminhos da erradicação da doença formalista também ficou evidente. . . .

 

III. Isaiah Berlin recebe Francis Poulenc e Dmitri Chostakóvitch

 

Em 1958 , em plena Guerra Fria, o filósofo e historiador das ideias Isaiah Berlin, um dos principais pensadores liberais do século 20 e crítico implacável do totalitarismo soviético, recebeu em sua casa o compositor Dmitri Chostakóvitch, que, apesar de sua difícil relação com o regime comunista, era apresentado como um símbolo das conquistas artísticas da URSS.

Tanto o compositor russo quanto o francês Francis Poulenc haviam sido convidados pela Universidade de Oxford, onde Berlin lecionava, para receberem o título honorário de doutores em música, daí a viagem. Na carta a seguir, escrita a um amigo quando a visita já havia terminado, Berlin descreve o seu convidado de fato como um símbolo soviético, mas não no sentido que Stalin desejaria. “É terrível ver um homem dotado de gênio vitimado por um regime, esmagado por ele até aceitar seu destino como se fosse algo normal”, afirma Berlin.

 

Poulenc e Chostakóvitch já chegaram e se foram. Meu Deus, foi uma agitação.

Para começar, uma grande confusão com o Conselho Britânico, que tinha feito arranjos complicados para uma festa musical para C. [Chostakóvitch] na noite de segunda-feira (nós o receberíamos em casa na terça, e ele receberia seu título honorário com Macmillan e Gaitskell na quarta), mas a embaixada soviética parece estar travando algum tipo de guerra com o Conselho Britânico e praticamente o proibiu de ter contato com o conselho.

O resultado foi que a festa foi promovida sem ele, com muitas recriminações, indignação generalizada, telegramas, cólera e lágrimas. Finalmente ele apareceu, na terça-feira, e foi uma coisa maravilhosa.

Primeiro chegou a nossa sala de estar um jovem oficial soviético muito empertigado e rígido, bastante bonito, que disse: “Eu gostaria de me apresentar. Meu nome é Loginov [Y. Loginov, terceiro-secretário da embaixada soviética em Londres]. O compositor D. Chostakóvitch está no carro ali fora. Fomos informados de que os senhores o estariam aguardando às 16h. São 15h agora. O sr. gostaria que ele permanecesse no carro ou o quê?”

Explicamos que o estávamos aguardando às 15h e que seria perfeitamente permissível que entrasse imediatamente. Então o automóvel foi trazido cerimoniosamente para dentro, outro funcionário soviético saltou para fora e, finalmente, surgiu o próprio compositor, baixo, tímido, como um farmacêutico do Canadá, terrivelmente nervoso, com um tique se repetindo quase perpetuamente em seu rosto – nunca em toda minha vida eu tinha visto alguém tão assustado e reprimido.

Ele reapresentou os dois funcionários soviéticos como “meus amigos, meus grandes amigos”, mas, depois de ter estado um pouco conosco e de os dois soviéticos terem sido afastados do caminho, nunca mais os descreveu nesses termos, mas apenas como “os diplomatas”. A cada vez que os mencionava, uma expressão curiosa de angústia aparecia em seu rosto, mais ou menos como a expressão que às vezes aparece no rosto de Aline [mulher de Berlin]; de fato, na última manhã, quando ele estava esperando a chegada dos dois funcionários e se encontrava em um estado de pânico e desespero absolutos, eu disse em inglês (que ele não entende) a Aline, que também parecia um tanto quanto aflita, que a expressão dos rostos deles era idêntica.

De qualquer maneira, o problema era como conseguir que Chostakóvitch ficasse para o jantar e então fosse à festa musical oferecida na casa dos Trevor-Roper a ele e [Francis] Poulenc [compositor francês, 1899-1963]; e como nos livrarmos dos dois funcionários soviéticos, que lançavam uma sombra terrível sobre o evento.

No final, anunciei, com firmeza, que a universidade [de Oxford] tinha um conjunto rígido de normas a serem obedecidas; por essas normas, um funcionário da universidade iria aparecer em meia hora e levá-los para jantar no New College, depois do que eles seriam autorizados a assistir a uma peça (de David Pryce-Jones), enquanto um arranjo totalmente diferente tinha sido feito para Chostakóvitch.

Depois de olharem um para o outro para ver se estava bem, aceitaram a imposição com calma e abaixaram suas cabeças em submissão. O funcionário da universidade chegou no momento previsto, algum infeliz do New College foi persuadido a encarregar-se dos dois “diplomatas”, e Chostakóvitch foi deixado conosco.

*

Sua atitude ficou mais leve. Durante toda a visita, porém, ele pareceu um homem que passara a maior parte de sua vida em algum lugar escuro e sombrio, sob a supervisão de carcereiros de alguma espécie e, sempre que a menor referência era feita a fatos ou personalidades contemporâneos, o velho espasmo doloroso passava por seu rosto, que assumia então uma expressão assombrada ou mesmo perseguida, e ele caía em uma espécie de silêncio apavorado.

Era muito deprimente e aflitivo, e nos fazia gostar dele e sentir muita pena. Na hora devida, os outros convidados chegaram, Poulenc, Cécile [baronesa Cécile de Rothschild, 1913-95, amiga íntima de Aline], os Cecil, Jimmy Smith [James Frederick Arthur Smith, 1906-80, diretor da Royal Opera House], os Trevor-Roper etc. Poulenc se mostrou encantador com C., e este degelou visivelmente sob a influência benigna.

Jantamos e então fomos à sala de estar dos Trevor-Roper [o historiador Hugh Trevor-Roper e sua mulher estavam encarregados de hospedar Francis Poulenc].

Ali, C. imediatamente se dirigiu ao canto mais próximo e sentou-se, contraído como um porco-espinho, ocasionalmente dando um sorriso fraco quando eu fazia algum chiste especialmente ousado.

Sua sonata para violoncelo foi tocada por um jovem e muito belo violoncelista do Ceilão [atual Sri Lanka]; ele ouviu com calma, me disse que o violoncelista era bom e o pianista, muito ruim (o que era absolutamente verdade), e se queixou com o violoncelista, dizendo que este errara em dois trechos. O violoncelista enrubesceu, mostrou a partitura, e C. viu que a partitura confirmava o que o violoncelista tocara.

Não podia entender como isso podia ser, até, de repente, se dar conta de que ela tinha sido editada por Piatigorski [1903-76, violoncelista], que, é claro, alterara a partitura arbitrariamente para agradar a si mesmo; foi esse o momento em que C. chegou mais perto de se enfurecer de verdade, tirou um lápis e riscou violentamente as falsificações de Piatigorski, substituindo-as por sua própria versão original. Depois disso se acalmou e retornou a seu cantinho.

Em seguida, canções de Poulenc foram cantadas pela senhorita Margaret Ritchie [nome artístico da soprano Mabel Willard Ritchie, 1902-69], absurdamente, à maneira inglesa vitoriana ridícula. Chostakóvitch se contorceu um pouco, mas Poulenc, muito educado, muito mundano, a parabenizou e fez caretas para os outros pelas costas dela.

Depois disso, foi tocado um movimento da sonata de Poulenc para violoncelo, para aplacá-lo, e então houve um silêncio, e eu disse a C. que todos ficariam muito felizes se ele também tocasse um pouco.

Sem pronunciar palavra, foi ao piano e tocou um prelúdio e fuga – um dos 24 que compôs, como Bach – com tamanha magnificência, profundidade e paixão, e a própria obra era tão maravilhosa, tão séria, original e inesquecível, que tudo de Poulenc saiu voando pela janela e não pôde ser recapturado.

Poulenc chegou a tocar alguma coisa de “Les Biches” [“As Corças”, balé de 1924] e mais alguma coisa, mas a sua música não pôde mais ser ouvida – lamentavelmente, a decadência do mundo ocidental se tornara demasiado aparente.

Enquanto tocava, o rosto de C. realmente se transformara; a timidez e o pavor tinham desaparecido, e um olhar de tremenda intensidade e, realmente, inspiração, apareceu; imagino que é assim que os compositores do século 19 deviam parecer quando tocavam. Mas não acho que esse olhar tenha sido muito visto no mundo ocidental no século 20.

Depois disso, deixou de tocar, e várias pessoas quiseram ser apresentadas. Ele mostrou ao primeiro violinista da Orquestra Philarmonia como tocar o segundo e o terceiro movimentos de seu concerto; falou a Desmond Shawe-Taylor [crítico musical do “Sunday Times”] sobre seus planos futuros; deu autógrafos, comeu e bebeu.

Poulenc, embora tivesse sido bem tratado, se sentiu um tanto quanto relegado, um pouco como Cocteau quando Picasso está presente. Todo mundo sentiu que foi uma ocasião notável, singular e comovente e, embora ele não falasse inglês, todos, menos os mais indiferentes e filisteus, sentiram-se comovidos e o manifestaram mais tarde de diversas maneiras. Foram de fato uma ocasião e uma experiência singulares.

Depois disso, em casa, ele falou um pouco, reclamou da falta de um piano, discorreu sobre seu gosto musical e foi dormir quase feliz, penso.

Enquanto isso, seus dois guardiões foram a uma festa de estudantes do New College, então ao baile Exeter, divertiram-se muitíssimo, trocaram insultos e gracejos com estudantes e membros graduados da universidade e, obviamente, se divertiram. Revelaram ser muito simpáticos -podiam ter sangue húngaro pingando das mãos [referência à repressão soviética ao levante popular ocorrido, em 1956, na Hungria], mas, pessoalmente, eram camponeses ingênuos, um tanto quanto inexpressivos, que, evidentemente, não hesitariam em nos matar a tiros atendendo a ordens superiores, mas que ao mesmo tempo tinham um certo charme.

*

No dia seguinte, o tique nervoso de C. recomeçou, ele passou pelos horrores da cerimônia de entrega do título, ficou terrivelmente constrangido ao conhecer várias pessoas que falavam russo no almoço no All Souls, a todo momento buscava refúgio comigo, que, afinal, era representante credenciado da universidade, cadastrado como tal pela embaixada soviética.

As pessoas lhe faziam perguntas intoleráveis como “o que aconteceu com suas segunda, terceira e quarta sinfonias?” – obras admiráveis condenadas pelo regime. Ele respondia, embaraçado, “não foram um grande sucesso”, o que era literalmente verdade, mas sofria ao falar.

Vários russos tentaram conversar com ele, naturalmente, e ele conseguiu se afastar com enorme esforço e agonia.

Finalmente o levamos para casa, o vestimos num traje formal e o enviamos para jantar no Christ Church com os outros agraciados com títulos honorários, como o primeiro-ministro [Harold Macmillan], Gaitskell etc. Ele voltou para casa mais morto do que vivo, mas se levantou cedo pela manhã e nos ofereceu as partituras de três obras com inscrições apropriadas. Chegou a falar um pouco sobre sua mulher e seus filhos.

Às 10h, os guardiões deveriam vir buscá-lo, mas se atrasaram. Ele entrou em estado de pânico nervoso, me fez ligar três vezes para o hotel Mitre, começou a esfregar as mãos em desespero, se perguntou o que aconteceria se chegasse tarde à embaixada, como poderia explicar o atraso, se perguntou se seus guardiões o teriam abandonado de alguma maneira ou se algum erro teria sido cometido pelo qual ele seria culpado, e mergulhou num estado neurótico lamentável.

Mas os guardiões apareceram, explicando que tinham se atrasado porque foram comprar guias para Oxfordshire na Blackwell, e o levaram embora. Fui convidado para almoçar com ele na embaixada soviética no dia seguinte, mas não aceitei o convite.

C. já me vira o suficiente e sabia o bastante sobre mim para se dar conta de que eu compreendia sua posição demasiado bem e que pensava que seria melhor para ele encontrar todos os músicos britânicos etc. que ele conheceria em Londres, com a ajuda de intérpretes, sem o constrangimento da presença de um observador que compreendia suas reações um pouco bem demais. Então, por uma espécie de sensibilidade – acho que você concordará que não foi descabida –, eu recusei e acabou assim.

A coisa toda me deixou com uma sensação curiosa de como é viver em um século 19 artificial – pois é isso o que Chostakóvitch faz – e que efeito extraordinário a censura e a prisão exercem sobre o gênio criativo. Elas o limitam, mas o aprofundam.

Preciso parar por aqui e ir almoçar com Peter e seus amigos da escola, reunidos lá fora em volta da mesa, mas o rosto de C. sempre vai me assombrar um pouco. É terrível ver um homem dotado de gênio vitimado por um regime, esmagado por ele até aceitar seu destino como se fosse algo normal, quase apavorado diante da ideia de ser mergulhado em alguma outra vida, com todos os poderes de indignação, resistência e protesto removidos, como uma abelha da qual se retira o ferrão, pensando que a infelicidade é felicidade e que a tortura é vida normal.

Com muito afeto,

Isaiah

 

Tradução e notas:  “Confusão ao Invés de Música” e Carta de Prokofiev (Leandro Oliveira); Carta de Isaiah Berlin (Clara Allain para a editora Companhia das Letras). 
Fontes: (i) “Confusão ao invés da música”, tradução em inglês (“Muddle Instead of Music”); (ii) Carta de Prokofiev: Music in the Western World – A History in Documents editado por P. Weiss e R. Taruskin; (iii)  A íntegra da carta de Berlin está incluída em “Enlightening – Letters 1946-1960” e foi publicada no Brasil pela Companhia das Letras. 
Ilustração: Montagem de Frank Castorf para a ópera Sigfried. Bayreuth, 2013.