Morte e Ressurreição de Cristo

Das conferências de Karl Barth sobre o Credo dos Apóstolos reunidas sob o título “Esboço de uma Dogmática”, capítulos XVII e XVIII. Basileia, 1947 d.C.

 

Tradução de Paulo Zacarias para a Fonte Editorial

I. Foi Crucificado, Morto e Sepultado, Desceu ao Inferno

 

Na morte de Jesus Cristo, Deus humilhou a si mesmo e entregou a si mesmo, a fim de cumprir sua lei sobre todo homem pecador, assumindo seu lugar e, assim, de uma vez por todas, removendo do homem para si mesmo esta maldição que o afetou, a punição que o homem merecia, o passado que quer ver corrigido, o abandono no qual ele caiu.

O mistério da Encarnação se desdobra no mistério da Sexta-feira Santa e da Páscoa. E mais uma vez é como a vemos sempre presente no mistério completo da fé, ou seja, de que devemos sempre ver as duas coisas interligadas, devemos sempre entender uma pela outra. Na história da fé cristã, na verdade, sempre esteve latente que o conhecimento dos cristãos sempre pendeu mais para um lado do que para outro. Temos isto na decisiva inclinação da Igreja Ocidental em relação à theologia crucis – isto é, uma tendência em tornar público o fato de que ele foi entregue pelas nossas transgressões. Enquanto que a Igreja Oriental acentua mais o fato de que ele ressuscitou para nossa justificação, e, portanto, inclina-se para a teologia gloriae. Nesta questão não há nenhum sentido em querer jogar uma contra a outra. Você sabe desde o início que Lutero enfatizou a tendência ocidental – não a theologia gloriae, mas a theologia crucis. O que Lutero pretendeu dizer com isto está certo. Mas não devemos erigir e confirmar qualquer oposição; pois não há nenhuma theologia crucis que não tenha seu complemento na theologia gloriae. É evidente que não há nenhuma Páscoa sem a Sexta-feira da Paixão, mas do mesmo modo não há Sexta-feira da Paixão sem a Páscoa! Demasiada tribulação e sobriedade são facilmente lavradas no cristianismo. Mas se a cruz é a Cruz de Jesus Cristo e não uma especulação sobre a cruz, que qualquer pagão fundamentalmente também possa tecer, então não pode nem por um segundo ser esquecido ou ignorado que o Crucificado ressurgiu da morte no terceiro dia. Celebraremos, neste caso, a Sexta-feira da Paixão completamente diferente, e talvez seria desejável não cantar na Sexta-feira da Paixão os hinos tristes e desconsolados da Paixão, mas começar a cantar os hinos da Páscoa. Não foi uma coisa triste e pesarosa que aconteceu na Sexta-Feira da Paixão; pois ele ressuscitou. Quero ser o primeiro a declarar que você não pode tomar abstratamente o que temos a dizer sobre a morte e a Paixão de Cristo, mas já olhar além para o lugar onde sua glória é revelada.

Este âmago da cristologia tem sido descrito na velha teologia sob dois conceitos principais de exinanitio e o exaltatio de Cristo. Qual o significado que a humilhação e a exaltação assumem aqui?

A humilhação de Cristo inclui o todo, começando com “sofreu sob Pôncio Pilatos”, e decididamente visível em “foi crucificado, morto e sepultado, desceu ao inferno”. O que ocorreu primeiro, certamente, foi a humilhação deste homem que sofreu, morreu e transitou pelas mais densas trevas. Mas o que primeiro dá sua significação para a humilhação e o abandono deste homem é o fato de que este homem é o Filho de Deus, e de que não é outro senão o próprio Deus que se humilha e se entrega a si mesmo.

Assim, quando este fato é contrabalançado com o a exaltação de Jesus Cristo como o mistério da Páscoa, esta glorificação é, na verdade, uma auto-glorificação de Deus; é para sua honra que este triunfo aconteça: “Deus bradou em alta voz”. Mas o mistério verdadeiro da Páscoa não é que Deus é glorificado nele, mas que o homem é exaltado, elevado pela mão direita de Deus e permitido triunfar sobre o pecado, a morte e o diabo.

Quando sustentamos estes dois pontos juntos, então o quadro que temos diante de nós é de uma inconcebível troca, de uma katalage, isto é, uma substituição. A reconciliação do homem com Deus acontece ao colocar Deus a si mesmo no lugar do homem e o homem no lugar de Deus, como o mais puro ato da graça. É este milagre inconcebível que se torna nossa reconciliação.

Quando a própria Confissão já acentua este “crucificado, morto e sepultado…” numa forma puramente externa através de uma franqueza e integridade de um registro que não é superabundante em palavras; além disso, quando os Evangelhos prolongam a história da Crucificação até um certo ponto, e quando em todos os tempos a Cruz de Jesus é evidenciada como o centro real de toda a fé cristã; quando em todos os séculos se ouve repetidas vezes, Ave crux única spe mea, temos de ser claros em que o ponto não é a glorificação e ênfase na morte em martírio de um fundador de uma religião – há histórias indubitáveis de mártires mais impressionantes, mas nas quais não estamos interessados – e nem mesmo é a expressão do universal sofrimento-do-mundo sobre a Cruz como uma espécie de símbolo do limite da experiência humana. Por meio disso nos distanciamos do conhecimento daqueles que têm testemunhado o Jesus Cristo crucificado. No sentido do testemunho apostólico, a crucificação de Jesus Cristo é a ação concreta do próprio Deus. Deus muda a si mesmo, o próprio Deus se torna mais próximo, Deus pensa que não é uma exploração ser divino, isto é, ele não se apega aos despojos como um salteador, mas Deus reparte consigo mesmo. Tal é a glória da sua Divindade, aquela onde ele pode ser “abnegado”, aquela onde ele pode, na verdade, perdoar a si mesmo em alguma coisa. Ele se mantém genuinamente verdadeiro para si mesmo, mas somente por meio de não ter de limitar-se à sua Divindade. É a profundeza da Divindade, a grandeza da sua glória que é revelada no próprio fato de que ela também pode se esconder em sua mais pura oposição, na mais profunda das rejeições e na maior das misérias da criatura. O que acontece na Crucificação de Cristo é que o Filho de Deus assume para si mesmo que deve se tornar a criatura em estado de revolta, que quer libertar-se da sua condição de criatura e declarar-se a si mesmo o Criador. Ele se põe a si mesmo nas necessidades da criatura e não a abandona a si mesma. Além disso, ele não apenas a ajuda de fora e a saúda de longe; ele faz sua a desgraça da sua criatura. Com que propósito? Para que sua criatura seja livre, para que o fardo que carrega sobre si seja tirado. A própria criatura deve estar em frangalhos, mas Deus não deseja isto; ele quer ver a sua salvação. É tão grande a ruína da criatura que qualquer coisa menos que a auto-entrega de Deus não seria suficiente para o seu resgate. Mas Deus é tão grande, que foi sua vontade entregar a si mesmo. Reconciliação significa Deus tomando o lugar do homem. Deixe-me acrescentar que nenhuma doutrina deste mistério central pode compreender com precisão e exaustão ou expressar até onde Deus interveio por nós. Não confunda minha teoria da reconciliação com a própria reconciliação. Todas as teorias da reconciliação não passam de indicadores. Mas esteja atento também para este “por nós”: nada pode ser subtraído dele! O que quer que a doutrina da reconciliação procure expressar, ela deve dizer isto.

Na morte de Jesus Cristo, Deus tem cumprido sua lei. Na morte de Jesus Cristo, ele atuou como Juiz para com o Homem. O homem se colocou num ponto no qual o veredicto de Deus é declarado sobre ele e tem de ser carregado inevitavelmente. O homem permanece diante de Deus como um pecador, como um ser que está separado de Deus, que se rebelou contra aquilo que ele deve ser. Ele se rebelou contra a graça; como se isso fosse pouco, ele virou as costas para a gratidão. Tal é a vida humana, este constante afastar-se, este vulgar e sutil pecado. O pecado leva o homem à necessidade inconcebível: ele se torna impossível diante de Deus. Ele se coloca onde Deus não pode vê-lo. Ele colocou-se, por assim dizer, por detrás das costas da graça de Deus. Mas as costas do “Sim” de Deus é o divino “Não”; é o julgamento. Assim como a graça de Deus é irresistivel, assim também seu julgamento é irresistível.

Agora podemos entender o que foi declarado de Cristo, que ele foi “crucificado, morto e sepultado…”, como a expressão daquilo que está, na verdade, cumprido sobre o homem.

Crucificado. Quando um israelita era crucificado, significava que ele era amaldiçoado, banido, não apenas do domínio da vida, mas da aliança com Deus, removido do círculo dos eleitos. Crucificado significava rejeitado, ser entregue à morte da forca infligida aos pagãos. Vamos deixar claro o que está envolvido no julgamento de Deus, no qual a criatura humana tem de sofrer do lado de Deus como uma criatura pecadora; ele está envolvido na rejeição, na maldição. “Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro”. O que recaiu sobre Cristo é o que deveria recair sobre nós.

Morto. A morte é o fim de todas as possibilidades presentes de vida. Morrer significa exaurir a última das possibilidades que nos foi dada. Quer desejemos interpretar morrer fisicamente e metafisicamente, seja o que for que aconteça, uma coisa é certa, que acontece o último ato que pode acontecer na existência da criatura. Seja o que for que aconteça além da morte deve, pelo menos, ser algo diferente da continuidade desta vida. A morte realmente significa fim. Este é o julgamento perante o qual nossa vida está: a espera da morte. Nascer e crescer, amadurecer e envelhecer, é caminhar em direção ao momento no qual para cada um de nós será o fim, definitivamente o fim. A questão vista deste lado, é uma questão que transforma a morte num elemento em nossa vida, sobre o qual preferimos não pensar.

Sepultado. Ele permanece lá tão discretamente e numa simples superficialidade. Mas ele não está lá por nada. Algum dia seremos enterrados. Algum dia um punhado de homens se dirigirão ao cemitério onde descerão um caixão e todos retornarão para casa; mas alguém não voltará, e este tal serei eu. O selo da morte será que eles me enterrarão como uma coisa que é supérflua e perturbadora na terra dos vivos. “Sepultado” dá à morte o caráter de passagem e declínio e à existência humana o caráter de transitoriedade e corruptibilidade. Então, qual o significado da vida humana? Significa apressar-se para a sepultura. O homem apressa-se para encontrar o seu passado. Este passado, no qual não há mais futuro, será a coisa final: tudo o que somos terá ido e terá sido corrompido. Talvez a memória permanecerá, enquanto houver homens que gostem de lembrar-se de nós. Mas algum dia eles também morrerão e a memória deles também se extinguirá. Não há um grande nome na história humana que num dia ou outro não será esquecido. Este é o significado de ser “sepultado”; e este é o julgamento sobre o homem, que no túmulo ele é deixado ao esquecimento. Esta é a resposta de Deus para o pecado: não há nada mais para ser feito com o homem pecador, exceto enterrá-lo e esquecê-lo.

Desceu ao inferno. No Antigo Testamento a imagem de inferno é algo diferente do que se desenvolveu posteriormente. Inferno, o lugar do inferi, Hades no sentido do Antigo Testamento, é, na verdade, o lugar de tormento, o lugar de completa separação, onde o homem continua a existir apenas como um não-ser, como uma sombra. Os israelitas pensavam neste lugar como um lugar onde os homens se perpetuavam suspensos a rodear como sombras furtivas. E a parte ruim sobre estar no inferno no sentido do Antigo Testamento é que na morte não podiam mais louvar a Deus, não podiam mais ver sua face, não podiam mais cumprir as regras do Sabath de Israel. É um estado de exclusão de Deus, o que torna a morte tão temerosa, e que faz do inferno o que ele é. O homem estar separado de Deus significa estar num lugar de tormento. “Choro e ranger de dentes” – nossa imaginação não está adequada para esta realidade, esta existência sem Deus. O ateu não está consciente do que é a não-existência de Deus. A não-existência de Deus é a existência no inferno. O que mais além disto é oferecido como resultado do pecado? O homem não se separou de Deus por seu próprio ato? “Desceu ao inferno” é simplesmente a confirmação disto. O julgamento de Deus é justo – isto é, ele oferece ao homem o que ele quer. Deus não seria Deus, o Criador não seria o Criador, a criatura não seria a criatura e o homem não seria o homem, se este veredicto e sua execução pudessem ser detidos.

Porém, agora, a Confissão nos diz que a execução deste veredicto é efetivada por Deus desta forma, que ele, o próprio Deus, em Jesus Cristo seu Filho, uma vez verdadeiro Deus e verdadeiro homem, assumiu o lugar do homem condenado. O julgamento de Deus é executado, a lei de Deus assume seu curso, mas de uma tal forma que o que o homem tinha de sofrer é sofrido por Aquele, que como Filho de Deus sofreu por todos. Tal é o senhorio de Jesus Cristo, que se ofereceu por nós diante de Deus, tomando sobre si o que nos pertencia. Nele, Deus se faz responsável, até ao ponto no qual somos amaldiçoados e culpados e perdidos. Ele estava em seu Filho, que na pessoa deste homem crucificado suporta no Gólgota tudo aquilo que deveria ser levado por nós. Desta forma ele põe um fim à maldição. Não é da vontade de Deus que o homem pereça; não é da vontade de Deus que o homem pague o que estava sujeito a pagar; em outras palavras, Deus extirpa o pecado. Ele o faz, não a despeito da sua justiça, mas é a própria justiça de Deus que ele, o Santo, intervenha a favor nós, os profanos, que ele queira salvar-nos e assim o faça. Justiça no Antigo Testamento não é a justiça do juiz que faz o devedor pagar, mas a ação de um juiz que no acusado reconhece o vilão que ele deseja ajudar dando-lhe os direitos. É isto que significa justiça. Justiça significa assentar o direito. E é isto que Deus faz. Certamente, não sem a punição ser suportada e toda a angústia irromper, mas através de ele colocar-se no lugar do culpado. Ele que pode e faz isto é justificado pelo fato de que ele assume o papel da sua criatura. A misericórdia de Deus e a justiça de Deus não são divergentes entre si.

Seu Filho não é igualmente querido para ele,
Ele o entregou; pois ele
Do fogo eterno através do seu sangue
Me resgataria,

Este é o mistério da Sexta-feira da Paixão.

Mas, na verdade, estamos olhando para além da Sexta-feira da Paixão, quando dizemos que Deus vem em nosso lugar e assume nosso castigo sobre si. Deste modo, ele, na verdade, o toma de nós. Todo sofrimento, toda tentação, assim como nosso morrer, é apenas a sombra do julgamento que Deus já executou a nossa favor. Aquilo que na verdade nos afetava e podia nos afetar, foi, na verdade, lançado fora de nós na morte de Cristo. Isto está atestado pelas palavras de Cristo na Cruz: “Está consumado!” Portanto, na visão da Cruz de Cristo somos convidados, por um lado, a perceber a magnitude e peso do nosso pecado e o custo do nosso perdão. Num sentido mais rigoroso não há conhecimento do pecado exceto à luz da Cruz de Cristo. Pois somente compreende o que é o pecado, quem sabe que seu pecado é perdoado. Por outro lado podemos perceber que o preço é pago ao nosso favor, pois somos absolvidos do pecado e suas consequências. Não somos mais tratados e vistos por Deus como pecadores, que devem passar sob o julgamento por sua culpa. Não temos mais nada para pagar. Somos absolvidos gratuitamente, sola gratia, pela própria intervenção de Deus por nós.

 

II . Ao Terceiro Dia Ressurgiu dos Mortos

 

Na Ressurreição de Jesus Cristo, o homem é, de uma vez por todas, exaltado e levado a descobrir com Deus seu direito contra todos os seus adversários e assim libertar-se para viver uma nova vida, na qual ele não mais terá pecado e, portanto, a maldição, a morte, o túmulo e o inferno à sua frente, mas atrás de si.

“Ao terceiro dia ressurgiu dos mortos” é a mensagem da Páscoa. Ela assegura que não foi em vão que Deus se humilhou em seu Filho; fazendo assim ele seguramente agiu também para sua própria honra e para a confirmação da sua glória. Pela sua misericórdia triunfou em sua própria humilhação, o resultado sendo a exaltação de Jesus Cristo. E quando dissemos anteriormente que na humilhação o Filho de Deus estava envolvido e, portanto, o próprio Deus, devemos agora enfatizar que o que está envolvido na exaltação é o homem. Em Jesus Cristo o homem é exaltado e levado para a vida para a qual Deus o libertou na morte de Jesus Cristo. Deus, por assim dizer, abandonou a esfera da sua glória e o homem pôde agora tomar seu lugar. Esta é a mensagem da Páscoa, o objetivo da reconciliação, a redenção do homem. É o objetivo que já era visível na Sexta-feira da Paixão. Através da intercessão de Deus pelo homem – os escritores do Novo Testamento não estavam temerosos em usar a expressão “pagando” – o homem é uma criatura resgatável. Apolytrosis é um conceito legal que descreve o resgate de um escravo. O alvo é que o homem seja transferido para outro status na lei. Ele não pertence mais àquilo que tinha direito sobre ele, ao domínio da maldição, morte e inferno; ele é traduzido para o reino do querido Filho de Deus. Isto significa que seu posição, sua condição, seu status legal como um pecador é rejeitado em toda forma. O homem não é visto mais seriamente por Deus como um pecador. O que quer que ele possa ser, tudo que existe para ser dito dele, tudo que possa vir a reprová-lo, Deus não o leva mais a sério como um pecador. Ele morreu para o pecado; lá na Cruz do Gólgota. Ele não está mais presente para o pecado. Ele é reconhecido e estabelecido diante de Deus como um homem justo, como aquele que é justo diante de Deus. Assim como se apresenta, ele tem, evidentemente, sua existência em pecado e, assim, em sua culpa; mas ele o tem atrás dele. A mudança foi completada, de uma vez por todas. Mas não podemos dizer, “Eu abandonei de uma vez por todas, eu experimentei” – não; “de uma vez por todas” é o “de uma vez por todas” de Jesus Cristo. Mas se cremos nele, então é nosso. O homem está em Cristo Jesus, que morreu por ele, em virtude da sua Ressurreição, o Filho amado de Deus, que vive por e para o bom grado de Deus.

Se esta é a mensagem da Páscoa, então você percebe que na Ressurreição de Jesus Cristo há a revelação do fruto ainda escondido da morte de Cristo. É este exato ponto decisivo que está ainda escondido na morte de Cristo, oculto sob o aspecto no qual o homem lá aparece consumido pela ira de Deus. A partir de agora o Novo Testamento nos torna testemunhas de que este aspecto do homem não é o significado do evento no Gólgota, mas que por trás deste aspecto o real significado deste evento é aquele que é revelado no terceiro dia. Sobre este terceiro dia começa uma nova história do homem, tanto que podemos até mesmo dividir a vida de Jesus em dois grandes períodos, os trinta e três anos até sua morte, e o bem curto e decisivo período dos quarenta dias entre sua morte e a Ascensão. Ao terceiro dia começa uma nova vida de Jesus; mas, ao mesmo tempo, no terceiro dia começa um novo Aeon, uma nova forma de mundo, depois do velho mundo ter sido completamente acabado e quitado na morte de Jesus Cristo. A Páscoa é a novidade de um novo tempo e mundo na existência do homem Jesus, que agora começa uma nova vida como conquistador, como um condutor vitorioso, como o destruidor do fardo do pecado do homem, que foi posto sobre ele. Nesta sua existência diferenciada a primeira comunidade viu não apenas a continuação sobrenatural da sua vida anterior, mas uma nova vida completa, aquela do exaltado Jesus Cristo e simultaneamente o início de um novo mundo. (Os esforços para relacionar a Páscoa a certas renovações, como as que ocorrem na natureza, como a primavera, ou até mesmo no despertar do homem pela manhã, e assim por diante, não têm qualquer força. Depois da primavera segue-se, inexoravelmente, um inverno, e depois do despertar, o cair no sono novamente. O que temos aqui são movimentos cíclicos renováveis. Mas tornar-se novo na Páscoa é tornar-se novo de uma vez por todas.) Na ressurreição de Jesus Cristo a reivindicação está feita, segundo o Novo Testamento, de que a vitória de Deus em favor do homem na pessoa de seu Filho já foi ganha. A Páscoa é, na verdade, o grande penhor da nossa esperança, mas ao mesmo tempo este futuro já está presente na mensagem da Páscoa. É a proclamação da vitória já vencida. A guerra está no fim – embora aqui e acolá tropas estejam atirando, porque ainda não ouviram nada sobre a capitulação. O jogo está vencido, embora o jogador ainda faça alguns movimentos adicionais. Na verdade, ele já está derrotado. O relógio está parando, embora o pêndulo ainda oscile lentamente para lá e para cá. É neste espaço interino que estamos vivendo: as coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo. A mensagem da Páscoa nos conta que nossos inimigos, o pecado, a maldição e a morte foram vencidos. No final das contas, eles não podem mais causar danos. Eles ainda se comportam como se o jogo ainda não tivesse acabado, a batalha não terminada; devemos ainda contar com eles, mas fundamentalmente devemos parar de temê-los de uma vez por todas. Se você ouviu a mensagem da Páscoa, você não pode mais andar por aí com uma face trágica e uma conduta existencial desanimada de um homem que não tem esperança. Uma coisa ainda está segura, e somente esta coisa deve ser levada a sério: que Jesus é o Vitorioso. A seriedade de quem olha para trás, como a esposa de Ló, não é a seriedade cristã. Pode estar queimando lá atrás – e verdadeiramente está queimando –, porém devemos olhar, não para isso, mas para o outro fato, de que somos convidados e convocados a tomar com seriedade a vitória da glória de Deus neste homem Jesus e se regozijar nele.

Só então podemos viver em gratidão e não em medo.

A Ressurreição de Jesus Cristo revela e completa esta proclamação de vitória. Não devemos transmutar a Ressurreição em um evento espiritual. Devemos ouvi-la e deixá-la contar-nos a história de como houve um túmulo vazio, que uma nova vida além da morte tornou-se visível. “Este [homem arrebatado da morte] é o meu Filho amado, no qual tenho prazer”. O que foi anunciando no batismo no Jordão agora se torna um evento e manifesto. A todos que conhecem este evento, a ruptura entre o velho mundo e o novo é proclamada. Eles ainda têm uma pequena linha para terminar, até que se torne visível que Deus em Jesus Cristo cumpriu tudo para eles.

 

Ilustração: A Ressurreição, afresco de Piero della Francesca (c. 1460). Museo Civico de Sansepolcro, Toscana.