Meu Paraíso Perdido

Trechos do capítulo sobre John Milton das Vidas dos Mais Eminentes Poetas Ingleses de Samuel Johnson. Londres, 1781 d.C.
I. Uma criação épica

Paraíso Perdido é um poema que, considerado em relação ao projeto, pode pretender o primeiro lugar, e em relação à execução, o segundo, entre as produções da mente humana.

Pelo consenso geral dos críticos, o primeiro louvor do gênio é devido ao escritor de um poema épico, na medida em que este requer uma conjunção de todos os poderes que são, isolados, suficientes para outras composições. A poesia é a arte de unir o prazer à verdade, convocando a imaginação ao auxílio da razão. A poesia épica se propõe a ensinar as mais importantes verdades pelos mais prazerosos preceitos, e portanto relata algum grande evento da maneira mais emocionante. A história deve suprir o escritor com rudimentos de narração, que ele deve aperfeiçoar e exaltar por uma arte mais nobre, deve animar por uma energia dramática, e diversificar pela retrospecção e antecipação; a moralidade deve lhe ensinar os limites precisos, e os diferentes tons do vício e da virtude; da política, e das práticas da vida, ele deve aprender a discriminar as personalidades, e a tendência das paixões, tanto isoladas quanto combinadas; e a fisiologia deve supri-lo com ilustrações e imagens. Pôr esses materiais à serviço de um fim poético, requer uma imaginação capaz de pintar a natureza, e realizar a ficção. E ainda não se é poeta até ter atingido toda a extensão de sua linguagem, distinguido todas as delicadezas da expressão, e todas as cores das palavras, e aprendido a ajustar seus diferentes sons a todas as variedades de modulação métrica.

 

II. A moral da História

Bossu é da opinião, que a primeira tarefa do poeta é encontrar uma moral, a qual a sua fábula irá posteriormente ilustrar e estabelecer. Este parece ter sido o processo de Milton; a moral de outros poemas é incidental e consequente; somente em Milton ela é essencial e intrínseca. Seu propósito foi o mais útil e o mais árduo; “justificar os caminhos de Deus ao homem”: expor a razoabilidade da religião, e a necessidade da obediência à Lei Divina.

Para desenvolver esta moral deve haver uma fábula, uma narração artisticamente construída, de modo a excitar curiosidade, e surpreender as expectativas. Nesta parte de sua obra, é preciso dizer que Milton igualou qualquer outro poeta. Ele envolveu em seu relato da queda do homem os eventos que a precederam, e aqueles que viriam a se seguir: ele entreteceu todo sistema da teologia com tal propriedade, que todas as partes parecem ser necessárias; e dificilmente desejamos que uma récita qualquer seja mais curta para que se possa acelerar o progresso da ação principal.

O tema de um poema épico é naturalmente um evento de grande importância. O de Milton não é a destruição de uma cidade, a condução de uma colônia, ou a fundação de um império. Seu tema é o destino dos mundos, as revoluções do céu e da terra; a rebelião contra o supremo Rei, precipitada pela mais alta ordem dos seres criados; a derrocada de sua tropa, e a punição por seu crime; a criação de uma nova raça de criaturas razoáveis, sua felicidade e inocência originais, a perda de sua imortalidade, e a sua restauração para a esperança e a paz.

Grandes eventos podem ser acelerados ou retardados somente por pessoas de elevada dignidade. Ante a grandeza exibida no poema de Milton, todas as outras grandezas se encolhem. O mais fraco dos seus protagonistas é o maior e mais nobre dos seres humanos, os pais originários da humanidade; a cujas ações os elementos consentiram: em cuja retidão, ou desvio da vontade, depende o estado da natureza terrestre, e a condição de todo o futuro dos habitantes do globo.

Dos outros protagonistas no poema, os principais são tais que a irreverência pode ser apontada somente em breves ocasiões. O resto são poderes perdidos;

… dos quais o último poderia governar
Aqueles elementos, e armá-lo com a força
De todas as outras regiões;

poderes, que somente o controle da Omnipotência impede de arruinar a criação, e preencher o vasto espaço com a miséria e a confusão. Apresentar as motivações e ações de seres tão superiores, até onde a razão humana os pode examinar, ou a imaginação humana representar, é a missão que este poderoso Poeta assumiu e executou.

 

III. Dos sentimentos morais

De seus sentimentos morais não é exagero afirmar que ele superou todos os outros poetas; tal superioridade ele devia à sua familiaridade com os textos sagrados. Os poetas épicos antigos, sem a luz da Revelação, eram muito inábeis professores de virtude; seus personagens principais podem ser grandes, mas não são dignos do nosso amor. O leitor pode se erguer de suas obras com um grau maior de fortaleza ativa ou passiva, e por vezes de prudência; mas ele será capaz de levar consigo muito poucos preceitos de justiça, e nenhum de misericórdia.

Dos escritores italianos vemos que as vantagens até mesmo do conhecimento cristão podem ser possuídas em vão. A depravação de Ariosto é de conhecimento geral; e, ainda que “Jerusalém Liberada” possa ser considerado um tema sagrado, o poeta foi bastante escasso na instrução moral.

Em Milton cada linha respira santidade de pensamento e pureza de costumes, exceto quando a corrente narrativa exige a introdução dos espíritos rebeldes; e mesmo eles são compelidos a reconhecer sua submissão a Deus, de tal maneira a excitar reverência e conformidade.

De seres humanos não há mais que dois; mas estes dois são os pais da humanidade, veneráveis antes de sua queda pela dignidade e inocência, e dignos de amor depois dela pelo seu arrependimento e submissão. No primeiro estado seu afeto é terno sem ser débil, e sua piedade sublime sem ser presunçosa. Ao pecarem, mostram como a discórdia começa na fragilidade mútua, e como deveria cessar na paciência mútua; como a confiança do favor Divino é perdida pelo pecado, e como a esperança do perdão pode ser obtida pela penitência e a oração. Um estado de inocência que podemos no máximo intuir, se de fato, em nossa atual miséria, for possível intuí-lo; mas os sentimentos e a adoração próprios a um ser caído e contraventor, todos temos de aprender, assim como todos temos de praticar.

O Poeta, seja lá o que aconteça, é sempre grande. Nossos progenitores, em seu primeiro estado, conversavam com os anjos; mesmo quando a loucura e o pecado os degradaram, eles não tinham em sua humilhação o porte de querelantes torpes; e eles se erguem mais uma vez para o olhar reverencial, quando descobrimos que suas orações foram ouvidas.

Como as paixões humanas não entraram no mundo antes da queda, há no Paraíso Perdido pouca oportunidade para o patético; mas o pouco que há não foi perdido. Aquela paixão que é peculiar à natureza racional, a angústia desencadeada pela consciência da transgressão, e os horrores relativos ao senso do Divino desgosto, são com muita justiça descritos e impressos com força. Mas as paixões são provocadas somente em uma única ocasião; sublimidade é a qualidade geral e prevalente deste poema; sublimidade modificada de vários modos, algumas vezes descritiva, algumas vezes argumentativa.

 

IV. A Epopeia Perdida

O Plano de Paraíso Perdido tem o seguinte inconveniente, que ele não compreende nem as ações humanas, nem os costumes humanos. O homem e a mulher que agem e sofrem estão em um estado que nenhum outro homem ou mulher jamais poderá conhecer. O leitor não encontra qualquer mediação na qual ele possa se empenhar; não vê qualquer condição na qual ele possa por qualquer esforço da imaginação se inserir a si mesmo; ele tem, portanto, pouca curiosidade natural ou simpatia.

Todos, com efeito, sentimos os efeitos da desobediência de Adão; todos pecamos como Adão, e como ele devemos todos lamentar nossas ofensas; temos incansáveis e insidiosos inimigos nos anjos caídos; e nos espíritos abençoados temos guardiões e amigos; na redenção da humanidade esperamos ser incluídos; e na descrição do céu e do inferno certamente nos interessamos, já que todos haveremos de residir um dia ou nas regiões do horror ou do júbilo.

Mas tais verdades são importantes demais para serem novas; elas foram ensinadas em nossa infância; elas se mesclaram aos nossos pensamentos solitários e conversações familiares, e estão habitualmente entretecidas com toda a trama da vida. Não sendo portanto novas, elas não despertam uma emoção desacostumada na mente; o que sabíamos antes, não podemos aprender; o que não é inesperado, não pode surpreender.

Das ideias sugeridas por estas cenas assombrosas, ante algumas nós recuamos com reverência, exceto quando os momentos estabelecidos exigem a sua associação; e ante outras nos afastamos com horror, ou as admitimos somente como suplícios salutares, como contrapesos aos nossos interesses e paixões. Tais imagens antes obstruem a carreira da fantasia do que a incitam.

Prazer e terror são, de fato, as fontes genuínas da poesia; mas o prazer poético deve ser tal que a imaginação o possa ao menos conceber; e o terror poético tal que a força humana e a fortaleza possam combater. O bem e o mal da eternidade são pesados demais para as asas do nosso engenho; a mente se afunda sob eles com um desamparo passivo, contente com fé calma e humilde adoração.

Verdades conhecidas, no entanto, podem assumir uma aparência diferente, e serem apresentadas à mente por um novo veio de imagens intermediárias. Isto Milton empreendeu, e executou com a fecundidade e o vigor mental que lhes são peculiares. Quem quer que considere as poucas posições fundamentais que as Escrituras lhe ofereceram, se admirará ante a operação energética com que ele as expandiu a tal distância, e as ramificou em tanta variedade, restringido, como ele era, pela reverência religiosa ante a licenciosidade da ficção.

Aqui há um pleno exercício da força unida do estudo e do gênio; de uma grande acumulação de materiais, com juízo para os digerir, e fantasiar e combinar: Milton era capaz de selecionar da natureza, ou da estória, das lendas antigas, ou da ciência moderna, o que quer que servisse para ilustrar ou adornar seus pensamentos. Uma acumulação de conhecimento impregnava a sua mente, fermentada pelo estudo, e exaltada pela imaginação.

Foi portanto dito, sem uma hipérbole indecente, por um de seus encomiastas, que ao ler Paraíso Perdido, lemos um livro de conhecimento universal.

Mas a deficiência original não pode ser suprida. A falta de interesse humano é sempre sentida. Paraíso Perdido é um daqueles livros que o leitor admira e põe de lado, e esquece de retomar. Ninguém jamais desejou que fosse mais longo do que é. Perscrutá-lo é um dever, mais do que um prazer. Lemos Milton para instrução, nos retiramos molestados e sobrecarregados, e buscamos em outra parte por recreação; desertamos nosso mestre, e buscamos companheiros.