Jerusalém aprisionada – Um convite à Guerra Santa

O Papa convoca a cavalaria à Primeira Cruzada.

Do relato de Roberto o Monge, provável testemunha ocular, redigido cerca de 25 anos após o discurso de Urbano II no Concílio de Clermont. França, 1095 d.C.

Após receber o apelo de um dos vários enviados do imperador bizantino Alexius I Comnenus ao Ocidente solicitando auxílio contra os turcos, o Papa Urbano II convoca um Concílio, instando cerca de 300 clérigos, entre bispos e abades, a trazerem com eles os mais eminentes senhores de suas províncias. No dia 27 de novembro, após quase dez dias discutindo querelas domésticas europeias, Urbano se dirige à assembleia para tratar da situação no Oriente.  

[Assim falou o Papa:]

“Ó, raça dos Francos, raça transalpina, raça escolhida e amada por Deus como resplandece em muitíssimas de suas obras, eleita de todas as nações pela situação de seu país, bem como pela sua fé católica e pela honra da santa Igreja! A vós nosso discurso é dirigido e para vossa exortação foi pensado. Desejamos que vós saibais qual causa atroz nos trouxe ao vosso país, que perigo ameaçador para vós e para todos os fiéis nos trouxe.

“Dos confins de Jerusalém e da cidade de Constantinopla um horrível relato avançou e com muita frequência chegou aos nossos ouvidos, ou seja, que a raça do reino dos persas, uma raça maldita, uma raça totalmente alienada de Deus, uma geração que em verdade não dirigiu seu coração e não confiou seu espírito a Deus, invadiu as terras dos cristãos e os dizimou pela espada, pilhagem e fogo; levou parte dos cativos a seu próprio país, e parte foi destruída por cruéis torturas; eles ou arrasaram totalmente as igrejas de Deus ou se apropriaram delas para os ritos de sua própria religião. Eles destroem os altares, após os terem conspurcado com podridão. Eles circuncisam os cristãos, e o sangue da circuncisão ou aspergem nos altares ou derramam nos vasos da fonte batismal. Quando desejam torturar as pessoas com uma morte vil, fazem um buraco nos seus umbigos, e arrancando a extremidade dos intestinos, o amarram numa estaca; então com flagelos eles fazem a vítima girar em torno dela até que as vísceras vazem para fora e a vítima acabe prostrada no chão. Outros eles atam a um poste e perfuram com flechas. Outros eles obrigam a esticar seus pescoços e então, atacando-os com espadas nuas, tentam degola-los num só golpe. Que devo dizer do abominável estupro das mulheres? Falar disso é pior do que ficar em silêncio. O reino dos gregos se encontra agora desmembrado por eles e privado de um território tão vasto em extensão que não pode ser atravessado em uma marcha de dois meses. A quem portanto cabe a retaliação a tais delitos e a recuperação deste território, senão a vós? Vós, sobre quem acima das outras nações Deus conferiu notável glória nas armas, grande coragem, atividade corporal, e força para humilhar a dura cerviz daqueles que resistem a vós.

“Que os feitos de vossos ancestrais vos movam e que incitem vossas mentes a conquistas viris; a glória e a grandeza do rei Carlos o Grande, e de seu próprio filho Luís, e de vossos outros reis, que destruíram reinos dos pagãos, e estenderam até as terras deles o território da santa Igreja. Que, acima de tudo, o santo sepulcro do Senhor nosso Salvador, que foi dominado por nações impuras, vos incite, assim como os santos lugares que agora estão ameaçados com ignomínia e impiamente poluídos com a imundice delas. Ó, valorosíssimos soldados e descendentes de invencíveis ancestrais, não sejais degenerados, mas reerguei a glória de vossos progenitores.

“Mas se estais emaranhados por amor aos filhos, parentes e esposas, relembrai-vos do que o Senhor disse no Evangelho, ‘Aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim, não é digno de mim.’ ‘Todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher ou crianças, ou terras por causa de meu nome receberá o cêntuplo e herdará a vida eterna.’ Que nenhuma de vossas posses vos detenha, nenhuma solicitude para com vossos negócios de família, uma vez que esta terra na qual habitais, reclusa por todos os lados por mares e cercada por picos montanhosos, é estreita demais para a vossa grande população; nem abunda em riqueza; e mal fornece comida suficiente para vossos lavradores. Por isso vos matais uns aos outros, e promoveis a guerra, e frequentemente pereceis por feridas mútuas. Que portanto o ódio parta de vós, que as querelas acabem, que as guerras cessem, e que todas as discórdias e controvérsias adormeçam. Entrai na via do Santo Sepulcro; disputai aquela terra com a raça perversa, e submetei-a a vós mesmos. Aquela terra onde a Escritura diz que ‘transborda leite e mel,’ foi dada por Deus à posse dos filhos de Israel. Jerusalém é o umbigo do mundo; a terra é mais frutuosa que outras, como outro paraíso das delícias. A ela o Redentor da raça humana fez ilustre pelo Seu advento, embelezou como sua residência, consagrou pelo sofrimento, redimiu com sua morte, glorificou com seu enterro. Esta cidade régia, portanto, situada no centro do mundo, é agora mantida cativa por Seus inimigos, e está sob o jugo daqueles que não conhecem Deus, para o culto dos pagãos. Assim ela busca e deseja ser libertada, e não cessa de implorar a vós que ides em seu auxílio. A vós em especial ela clama por socorro, porque, como já dissemos, Deus conferiu a vós sobre todas as nações grande glória nas armas. Assim sendo empreendei esta jornada para a remissão de vossos pecados, com a segurança da imperecível glória do reino do céu.”

Quando o Papa Urbano disse estas e muitas outras coisas similares em seu discurso, ele influenciou de tal maneira rumo a um único propósito os desejos de todos que estavam presentes, que eles gritaram, ‘Dieu le veult! Deus o quer! Deus o quer!’ Quando o venerável pontífice romano ouviu isso, com os olhos erguidos ao céu ele deu graças a Deus e, com sua mão ordenando silêncio, disse:

“Caríssimos irmãos, hoje manifestou-se em vós o que o Senhor diz no Evangelho, ‘Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome lá eu estou no meio deles.’ Se o Senhor Deus não estivesse presente em vossos espíritos, vós todos não teríeis proclamado o mesmo grito. Pois, embora este grito tenha saído de diversas bocas, ainda assim a origem do grito foi uma só. Portanto eu vos digo que Deus, que o implantou em vossos peitos, o extraiu de vós. Que este seja vosso grito de guerra nos combates, porque esta palavra vos foi dada por Deus. Quando um ataque armado for empreendido contra um inimigo, que este grito de guerra seja elevado por todos os soldados a Deus: Deus o quer! Deus o quer!

“E não ordenamos ou aconselhamos que o velho ou o fraco, ou aqueles pouco aptos a portar armas, empreendam esta jornada; nem devem as mulheres vos seguir em absoluto, sem seus maridos ou irmãos ou guardiães legais. Pois tal gente é mais um estorvo do que uma ajuda, mais um peso do que uma vantagem. Que o rico auxilie o necessitado; e de acordo com sua riqueza, que ele leve consigo soldados experimentados. Os sacerdotes e clérigos de qualquer ordem não devem ir sem o consentimento de seu bispo; pois esta jornada não lhes aproveitaria em nada se fossem sem tal permissão. Também não convém que os leigos entrem nessa peregrinação sem a benção de seus sacerdotes.

“Aquele, portanto, que empreender esta santa peregrinação e fizer seu voto a Deus a esse respeito e se oferecer a Ele como um sacrifício vivo, santo, agradável a Deus, deverá vestir o sinal da cruz do Senhor sobre sua cabeça ou seu peito. Quando, ‘verdadeiramente’ tendo cumprido seu voto, houver desejo de retornar, que ele desloque a cruz para as suas costas entre seus ombros. Isto, com efeito, por um ato duplo irá satisfazer o preceito do Senhor, como Ele ordena no Evangelho, “Aquele que não toma a sua cruz e me segue, não é digno de mim.”