Guerra justa & injusta Paz, ou: O Príncipe que a gente pediu a Deus

Extratos das considerações sobre a “Lei da Guerra movida pelos espanhóis contra os bárbaros”, no Livro XIIo, Parte 3 das Reflexões Teológicas do reverendo padre, irmão Francisco de Vitoria, da Ordem dos Pregadores. Salamanca, 1532 d.C.

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O que é um Estado?

(Do Artigo 7)

Respondo brevemente dizendo que o Estado é propriamente chamado comunidade perfeita ou integral. Mas a essência da dificuldade está em dizer o que é uma comunidade integral. A título de solução seja notado que uma coisa é chamada integral quando é um todo completo, pois é imperfeito ou não integral aquilo no qual falta alguma coisa, e, por outro lado, perfeito e integral é aquilo no qual não falta nada. Um Estado ou comunidade integral, portanto, é uma comunidade completa em si mesma, ou seja, que não é parte de outra comunidade, mas soberana, com suas próprias leis e seu próprio conselho ou parlamento e seus próprios magistrados… Portanto tal Estado, ou seu príncipe, tem autoridade para declarar guerra, e ninguém mais.

 

Qual pode ser a razão e a causa de uma guerra justa?

(Dos Artigos 10 a 19)

Minha primeira proposição é: A diferença de religião não é uma causa de guerra justa…

Segunda proposição: A extensão de domínio e império não é uma justa causa para a guerra. Isto é patente demais para precisar de uma prova, pois de outro modo cada um dos dois beligerantes teria uma causa igualmente justa e assim ambos seriam inocentes…

Terceira proposição: Nem a glória pessoal do príncipe nem qualquer outra vantagem para ele é uma justa causa de guerra. Isto, também, é notório. Pois um príncipe deveria subordinar tanto a paz quanto a guerra à tessitura comum de seu Estado e não despender recursos públicos na busca de sua própria glória ou ganho, muito menos expor seus súditos a perigos por causa disso. Aqui, de fato, repousa a diferença entre um rei legítimo e um tirano, isto é, que o último dirige seu governo em favor de seu lucro e vantagem individual, mas um rei o faz em favor do bem público… Portanto as regras relativas à guerra deveriam se voltar ao bem comum de todos e não ao bem privado do príncipe. Esta é, de fato, a diferença entre homens livres e escravos, ou seja, que, como diz Aristóteles na Política (Livro I, Capítulos 3 e 4), os senhores exploram escravos para seu próprio bem e não para o bem dos escravos, enquanto a existência dos homens livres não serve ao interesse de outros, mas ao interesse particular de cada um. E assim, se um príncipe viesse a abusar de seus súditos coagindo-os a se alistar no exército e a contribuir com dinheiro para suas campanhas, não para o bem público, mas para seu próprio ganho privado, isto faria de todos eles escravos.

Quarta proposição: há uma única e exclusiva justa causa para se iniciar uma guerra, ou seja, a injustiça sofrida… Uma guerra ofensiva se faz para retaliar a injustiça e para tomar medidas a fim de corrigi-la. Mas não pode haver retaliação onde não houve uma precedente falta ou injustiça. Assim, o príncipe não tem mais autoridade sobre os estrangeiros do que sobre os seus próprios súditos. Mas ele não pode erguer sua espada contra seus próprios súditos, a menos que tenham feito algo errado… Destarte é claro que não podemos voltar nossa espada contra aqueles que não nos ameaçam, sendo a morte de inocentes proibida pela lei natural.

Quinta proposição: Nem todo tipo e grau de injustiça é suficiente para começar uma guerra. A prova é que nem mesmo contra seus próprios compatriotas é legítimo aplicar punições atrozes, tais como a morte ou o confisco de propriedade. Como estes, os males infligidos na guerra têm todos um caráter severo e atroz, como os massacres e o fogo e a devastação, e não é legítimo buscar a reparação de uma injustiça perseguindo os responsáveis por ela com uma guerra, vendo que o grau da punição deve ser correspondente à gravidade da ofensa.

Os súditos podem se recusar a servir uma guerra injusta?

(Dos Artigos 22 e 23)

Sobre isso, minha primeira proposição é: se um súdito está convencido da injustiça de uma guerra, ele não deve servir nela, mesmo contra as ordens de seu príncipe. Isto é claro, pois ninguém pode condescender à morte de uma pessoa inocente. Por isso elas não devem ser mortas. O príncipe peca quando começa uma guerra neste caso. Mas “não somente aqueles que cometem tais coisas merecem a morte, mas aqueles, também, que consentem a elas” diz São Paulo no Capítulo 12 da carta aos Romanos. Assim sendo os soldados não podem ser escusados se lutam em má fé. Mais uma vez, não é licito matar cidadãos inocentes por ordem do príncipe. Analogamente, também não se pode matar a estrangeiros.

Segue-se como corolário para os súditos cuja consciência se opõe à justiça de uma guerra que eles não devem se empenhar nela, estejam eles certos ou errados.

 

Uma guerra pode ser justa dos dois lados?

(Do Artigo 32)

Respondo [em duas proposições]:

Primeira: Salvo por ignorância o caso claramente não pode ocorrer, pois se o direito e a justiça de cada lado forem certos, é ilegítimo lutar contra eles, seja atacando seja defendendo.

Segunda proposição: Assumindo uma ignorância demonstrável tanto de algum fato quanto da lei, se dará o caso que do lado onde está a verdadeira justiça a guerra será justa em si mesma, ao passo que do outro lado a guerra será justa somente enquanto pode ser desculpada do pecado em razão da boa fé, porque a ignorância invencível é uma desculpa completa. De resto, a bem da verdade, da parte dos súditos isto costuma ocorrer com frequência; pois mesmo se assumimos que um príncipe que está promovendo uma guerra injusta tem consciência de sua injustiça, ainda assim os súditos podem segui-lo em boa fé, e deste modo os súditos de ambos os lados podem estar fazendo o que é legítimo quando combatem.

 

Que tipo e que grau de violência são legítimos numa guerra justa?

(Do Artigo 34)

Minha primeira proposição é: Na guerra tudo é legítimo se for requerido pela defesa do bem comum. Isto é notório, pois o fim e o propósito da guerra é a defesa e a preservação do Estado. Do mesmo modo, uma pessoa privada pode usar a violência em sua autodefesa. Tanto mais o poderá o Estado e o príncipe.

Segunda proposição: É permitido recuperar tudo o que foi perdido e qualquer parte disso…

Terceira proposição: É legítimo se servir da propriedade do inimigo para se ressarcir pelas despesas de guerra e por todos os danos injustamente causados pelo inimigo. Isto é claro, pois o inimigo que cometeu a injustiça está obrigado a dar todo necessário para repará-la. Portanto o príncipe pode exigir esta reparação e obtê-la pela guerra…

Quarta proposição: Não só as coisas sobreditas são lícitas, mas um príncipe pode ir mesmo além em uma guerra justa e fazer o que for necessário a fim de obter paz e segurança ante o inimigo; por exemplo, destruir a fortaleza de um inimigo e mesmo construir uma no solo inimigo, se isso for necessário para prevenir um ataque perigoso do inimigo.

Quinta proposição: Não só tudo isso é permitido, mas mesmo após a vitória ter sido conquistada e o ressarcimento obtido e a paz e a segurança garantidas, é legítimo vingar a injustiça infligida pelo inimigo e tomar medidas contra ele e aplicar-lhe punições pelas injustiças que cometeu. Como prova disso, observe-se que os príncipes têm autoridade não somente sobre seus próprios súditos, mas também sobre estrangeiros, até onde for necessário para impedi-los de cometer injustiças, e isso de acordo com a lei das nações e a autoridade de todo mundo. Antes, parece mesmo que é também de acordo com a lei natural, uma vez que uma sociedade não pode se manter íntegra a menos que em algum lugar um poder e uma autoridade sejam capazes de deter os delinquentes e os impedir de cometer injustiças contra os homens bons e inocentes.

 

É justo na guerra matar o inocente?

(Dos Artigos 35 e 37)

O massacre deliberado de inocentes nunca é justo em si… [Contudo,] por vezes é direito, em virtude de circunstâncias colaterais, matar inocentes mesmo consciente e voluntariamente, por exemplo quando a fortaleza de uma cidade é arrasada numa guerra justa, embora se saiba que há muitas pessoas inocentes dentro dela e que o canhão e outras máquinas de guerra não podem ser empregados nem tampouco as edificações podem ser incendiadas sem aniquilação de inocentes junto aos culpados. A prova é que se não fosse assim a guerra não poderia ser movida mesmo contra o culpado e a justiça dos beligerantes seria frustrada. Do mesmo modo, inversamente, se uma cidade for injustamente assediada e defendida dentro do direito, é legítimo disparar tiros de canhão e outros projéteis contra os agressores no campo hostil, mesmo assumindo que há crianças e pessoas inocentes lá.

Grande atenção, no entanto, deve ser dada à obrigação de zelar para que numa guerra não se desencadeiem males maiores do que ela exigiria. Pois se há poucas vantagens a se esperar da destruição de uma fortaleza ou cidade fortificada onde há muita gente inocente, não seria direito, para o propósito de combater uns poucos culpados, massacrar muitas pessoas inocentes com incêndios e máquinas de guerra.

Em suma, nunca é direito matar os inocentes, mesmo como um resultado indireto e indesejável, exceto quando não há nenhum outro meio de empreender as operações de uma guerra justa, de acordo com uma passagem do Capítulo 13 do Evangelho de São Mateus: “deixem o joio crescer, para que ao arrancar o joio não arranquem junto o trigo.”

 

Conclusão: os cânones do direito de guerra

(Do Artigo 60, o último)

Tudo isso pode ser sumarizado em três cânones ou regras de guerra.

Primeiro cânone: assumindo que um príncipe tenha a devida autoridade para fazer guerra, ele deveria primeiramente não buscar ocasião e causas de guerra, mas deveria, se possível, viver em paz com todos os homens, como nos disse São Paulo no Capítulo 12 de sua carta aos Romanos. Além do mais, ele deveria pensar que os outros são seus próximos, a quem somos obrigados a amar como a nós mesmos, e que todos têm um único Senhor, ante o trono do qual haveremos de prestar contas. Pois é o extremo da selvageria buscar e se regozijar com a morte e a destruição de homens que Deus criou e pelos quais Cristo morreu. Mas somente sob compulsão e relutantemente ele deveria chegar à necessidade da guerra.

Segundo cânone: Quando uma guerra por uma justa causa tiver eclodido, não deve ser conduzida de modo a arruinar o povo contra quem ela é dirigida, mas somente a fim de obter seus direitos e de defender seu país e de tal forma que desta guerra a paz e a segurança de algum modo se sigam.

Terceiro cânone: quando a vitória tiver sido conquistada e a guerra concluída, a vitória deveria ser utilizada com moderação e humildade cristã, e o vitorioso deveria considerar que ele é como um juiz sentado entre dois Estados, um que sofreu uma injustiça e outro que cometeu a injustiça, de modo que será como juiz e não como acusador que ele dará sua sentença através da qual o estado agredido há de obter satisfação, e isto, até onde possível, deveria envolver o estado agressor no grau mínimo de calamidade e infortúnio, sendo os indivíduos agressores punidos dentro dos limites legais; e uma razão especial para isso é que em geral entre os cristãos toda falta deve ser levada à porta de seus príncipes, pois quando os súditos lutam pelos príncipes agem em boa fé e é totalmente injusto, nas palavras do poeta, que:

Quidquid delirant reges, plectantur Achivi.

[A cada delírio dos seus reis, sofram todos os gregos.]