Fragmentos de encontros e desencontros

Excertos da obra de Sándor Márai. Budapest, 1930-42.

 

Nome, individualidade, tudo se desfizera no porão, como se todos fossem invisíveis  no redemoinho do baile de máscaras subterrâneo!

. . . Nos dez meses Erzsébet havia aprendido que também sem palavras era possível se comunicar com as pessoas. Nos dez meses e na balbúrdia dos vinte e quatro dias e noites Erzsébet aprendera que existe uma possibilidade de comunicação e entre as pessoas mais sensíveis e confiável que a palavra: olhar, escuta, gesto e mensagens mudas; simplesmente a resposta com que ao chamado de alguém o ser de outro responde, a cumplicidade sem palavras que no momento do perigo responde à pergunta muda de modo mais inequívoco que toda confissão ou prova, e cujo sentido diz: estou com você, e também penso assim, a mesma ideia me tortura, estamos de acordo. . . .

A compreensão sem palavras é mais verdadeira que tudo. Somos “deste” ou “daquele jeito”, ou seja, estamos do mesmo lado em que os atacantes se enfileiram, numa horda selvagem, como canibais que pulam e soam os apitos; ou do outro lado, o das vítimas ou dos perseguidos, ou, simplesmente, o da multidão dos que sentem e pensam de maneira diferente. . . . Pois, quanto mais estridente e selvagem é a gritaria do bando perseguidor, tanto mais densa e sombria é a multidão do outro lado: a união dos que “não pensam assim.”

Libertação (Cia. das Letras, págs 78, 79)

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Ao longo de dois anos, até a sétima série, os integrantes do bando não se preocupavam muito uns com os outros. Viviam separados, lado a lado mas separados. Timor se entregava às agruras do esporte, Abel à literatura, Ernö se ocupava dos estudos. É muito difícil dizer o que aglutina as pessoas, especialmente na juventude, quando os interesses não tecem amizade. Ninguém poderia afirmar um dia que os membros do bando se gostassem. Nem mesmo que simpatizassem entre si. . . .

De modo geral, não é a simpatia que reúne as pessoas. É mais um sentimento torturante e doloroso, em que dois homens sentem que tem de se aproximar. Dois homens terem de se aproximar não é uma grande felicidade. . . .

Abel correu os olhos pelas fileiras de bancos e fixou Tibor, que, com a cabeça apoiada nas mãos, indiferente e sonhador, lia alguma coisa debaixo da carteira. Não se poderia dizer que tivesse sofrido um impacto. Nem que uma clareza especial o tivesse iluminado. Sua primeira sensação foi mais de indiferença; retirou o olhar, dirigiu-o para o outro lado. A surpresa começou quando percebeu que não conseguia mais olhar para outro lugar. . . .

Nessa hora sentiu-se perturbado. De súbito, sem pensar, disse a si mesmo: ele é bonito. Assim o definiu, com essas três palavras. Timor curvou-se, e Abel só via o alto da sua cabeça; o rapaz sentado entre eles o encobria. O sofrimento que isso lhe causou era como se lhe negassem uma visão única, irrecuperável. Sentiu dor física, o desespero dos cães quando alguém lhes tira o prato pela metade enquanto comem. Ou como quando da janela do trem o túnel suprime de repente e para sempre a beleza da paisagem. Alguma coisa assim. Na dor e na ira teria desejado grunhir. Seus olhos quase se encheram de lágrimas; escorregou para o lado, levantou-se um pouco do banco e se inclinou para a frente, para ver Tibor naquela hora, imediatamente, enquanto durasse o encantamento, porque era possível que um minuto depois fosse tarde. Ainda assim, quando se encontraram no intervalo, pôde olhá-lo mais sereno nos olhos, atentamente, e constatar decepcionado que não sentia nada.

Mais tarde, estando só em seu quarto, esboçou um desenho, afastou a prancheta ficou brincando com a pena: entre dois gestos a surpresa voltou, com muito mais força que de manhã. Voltou tão intensa que num movimento doloroso ele se pôs de pé se debruçou sobre a mesa. “Ele é bonito”, exclamou a meia-voz. Era inexplicável. Uma felicidade com que não se podia nem sonhar. Tinha um gosto doce que fez brotar lágrimas em seus olhos. Estremeceu inteiro. “Ele é bonito, Tibor é bonito”, repetiu com a boca exangue, com calafrios. Suas mãos também estavam frias, pálidas trêmulas. Ergueu-se, correu alguns passos no quarto entre os móveis. Nos olhos brilhavam lágrimas, tropeçou, desejaria agarrar-se a alguma coisa. Foi tomado por um desejo de aniquilação. A beleza é tudo. Não existe nada maior. A vida não pode dar mais. O mundo pacato em que vivia se desfez, o conteúdo escorreu, ele se deixou estar ali imóvel, trêmulo.

Uma semana depois o bando estava formado.

Rebeldes (Cia. das Letras, págs. 38, 39, 41)

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“Fico pensando”, prossegue o general como se estivesse falando consigo mesmo, “se a amizade existe realmente. Não me refiro ao prazer ocasional de duas pessoas que se alegram por ter se encontrado num dado momento de suas vidas em que pensam da mesma maneira sobre determinados assuntos, descobrem os mesmos gostos e preferem as mesmas lutas. Nada disso tem a ver com a amizade. Às vezes acho que ela representa a relação mais íntima que existe na vida. . . . Talvez por isso seja tão rara. E então, em que se funda? Na simpatia? É um termo impróprio, brando demais: não se pode dizer que a simpatia seja suficiente para levar duas pessoas a se responsabilizarem uma pela outra nas situações mais críticas de suas vidas. Então, em que mais? Não haverá talvez uma pitada de Eros no fundo de todas as relações humanas? Aqui, na minha solidão, no meio da floresta enquanto me esforçava, não tendo outra coisa a fazer, em compreender os fatos da vida, de vez em quando meditava sobre essas questões. Naturalmente, a amizade não tem nada em comum com as inclinações de quem procura satisfazer seu desejo doentio com pessoas do mesmo sexo. O Eros da amizade não precisa dos corpos… estes, ao contrário, o perturbam mais do que o atraem. Mas sempre se trata do Eros. Há um Eros no fundo de todos os afetos e de todas as relações humanas. Sabe, li muito”, diz quase se desculpando. “Hoje se escreve muito mais livremente sobre essas coisas. Mas também li e reli Platão, pois na escola ainda não o compreendia. Pensei comigo mesmo – e certamente você, que andou pelo mundo mais que eu, sabe muito mais do que sei em minha solidão campestre – que a amizade é a relação mais nobre que existe entre os seres humanos. É estranho, mas os animais também a conhecem. A amizade, a abnegação, a solidariedade também existem entre os animais. . . . Entre os homens, os exemplos que encontrei foram mais raros. Para ser exato, nenhum. As simpatias que vi nascer entre os homens sempre naufragaram, no final, em pântanos de egoísmo e vaidade. O companheirismo ou mesmo uma associação entre os homens assume por vezes um semblante de amizade. Aqui e ali interesses comuns produzem situações parecidas com a amizade. E para fugir da solidão os homens se entregam de bom grado a relações confidenciais das quais em seguida se arrependem, mas que por certo tempo permitem-lhes ter a ilusão de que uma simples confidência já seria uma forma de amizade. É claro que nesses casos nunca se trata de verdadeira amizade.

. . . Mas o amigo, assim como o apaixonado, não deve esperar uma recompensa para seus sentimentos. Não tem que exigir contrapartidas por seus serviços, não deve considerar que a pessoa eleita é uma criatura fantástica, deve conhecer seus defeitos e aceitá-la como é, com todas as consequências. Isso seria o ideal. E, de fato, será que vale a pena viver, ser homem, sem um ideal desses? E se um amigo nos decepciona porque não é um amigo de verdade, será que podemos acusá-lo, jogar-lhe na cara o seu caráter, a sua fraqueza? Quanto vale uma amizade que ambiciona ser premiada? Será que não temos o dever de aceitar o amigo infiel exatamente como o amigo fiel e cheio de abnegação? Será que não é esse talvez o conteúdo mais autêntico de toda relação humana, esse altruísmo que do outro nada exige e nada espera, absolutamente nada? E que quanto mais o outro nos dá tanto menos esperamos ser recompensados? Quem dedica ao outro toda a confiança da juventude e toda a abnegação da idade madura, além do dom mais precioso que uma criatura pode oferecer a seu semelhante – a fé mais apaixonada, cega e absoluta –, e se vê recompensado com a infidelidade e o abandono, tem talvez o direito de se ofender, de querer se vingar?

. . . A solidão, é claro, não me forneceu nenhuma resposta. Tampouco os livros me responderam de forma exaustiva. . . . Por isso é que não temos o direito de exigir franqueza e fidelidade absoluta de quem escolhemos como amigo, tanto mais se os acontecimentos demonstraram que esse amigo nos foi infiel.

As Brasas (Cia. das Letras, págs.  86, 87, 88, 89)

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A vida passa nas trevas, palavras não pronunciadas, gestos que em seu tempo desprezamos, silêncios e medos, assim é a vida, a verdadeira. O equilíbrio da família é frágil, como o equilíbrio de todas as vidas. Creio que não nos gostávamos nem nos odiávamos mais que a maioria das famílias. Os cristãos desconhecem a dependência desesperada, intencional, existente nas famílias judias. Entre os judeus a família vem em primeiro lugar e os integrantes depois, nas famílias cristãs todos vivem, na medida do possível, primeiramente para si próprios, e do que sobra dos sentimentos destinam alguma coisa, um pouco mais ou um pouco menos, também à família. Os judeus vivem para a família, os cristãos, apoiados nela. As exceções não são interessantes; generalizando, é assim. É claro que “nos gostávamos”. Meus pais eram gentis com as crianças, tinham cuidados com a educação, meu pai era bom conosco a ponto de ser fraco e satisfazia todos os nossos desejos. Apesar disso, com o tempo, a família se separou em duas margens, a margem do meu pai e a da minha mãe. Como os guelfos e os gibelinos, lutávamos uns contra os outros.

Confissões de um burguês (Cia. das Letras, págs. 77, 78)

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Em Berlim começou uma aventura inesperada: a aventura da juventude. . . . Hoje sei que a juventude não constitui um período de tempo mensurável, é simplesmente um estado cujo início e cujo fim não podem ser assinalados em anos. A juventude não começa com a puberdade e não termina num certo dia, por exemplo, aos quarenta anos, no Domingo de Ramos, às seis da tarde. A juventude, um sentimento singular, nada “tempestuoso”, pode sobrevir inesperado, na maioria das vezes quando estamos mais desatentos e despreparados. É um estado pesaroso, puro e desprendido. Somos governados por forças que não questionamos. Sofremos, nos envergonhamos um pouco, desejaríamos superá-la o mais rápido possível, nos tornar “adultos”, com barba, bigode, princípios e lembranças cruéis, inequívocas. Um dia despertamos, e a luz à nossa volta é outra, é outro o significado dos objetos, o sentido das palavras. De acordo com o passaporte e pelas reservas de energia do corpo ainda somos jovens; quem sabe nem sejamos homens, no sentido verdadeiro, desapontados e responsáveis. Mas a primeira juventude, a sonolência, a condição magoada-inocente, acaba. Surge algo diferente, um ato de vida se encerrou. Despertamos do encantamento e nos surpreendemos. Trata-se de um sentimento do tipo après, não se parece com nenhuma vivência física, mas de suas profundezas emana uma desilusão penetrante, amarga. Enquanto ela dura, somos quase vulneráveis.

Confissões de um burguês (Cia. das Letras, pág. 286)

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Como disse, nós nos gostávamos. E agora vou lhe dizer uma coisa, caso você não saiba: o amor, se for de verdade, é sempre mortífero. Quero dizer que seu objetivo não é a felicidade, o idílio, a mão na mão, o devaneio, até a minha morte, até a morte dela, sob a tília em flor, atrás da qual, no alpendre, arde o brilho manso da luminária e o lar resplandece com seu perfume fresco. . . . isso é a vida, mas não é isso o amor. Ele é uma chama mais sombria, mais perigosa. Um dia vem na vida o desejo de conhecer a paixão exterminadora. Sabe, quando não queremos mais guardar nada para nós mesmos, não queremos que um amor nos proporcione saúde, paz, satisfação, mas queremos ser, por inteiro, ainda que a preço da extinção. Isso vem tarde; muitos não conhecem esse sentimento, nunca. . . . Eles são prudentes; não os invejo.

. . . E depois acontece de um dia compreendermos o que a vida quer com o amor, por que ela deu esse sentimento aos homens. . . . Queria ela um bem? . . . A natureza não é bondosa. Ela promete a felicidade com esse sentimento? A natureza não precisa dos sonhos humanos. A natureza deseja apenas criar e aniquilar, porque é seu trabalho. É cruel porque tem um projeto e é indiferente porque o projeto se estende além do homem. A natureza presenteou o homem com a paixão, mas exige que esta seja incondicional.

. . . A paixão não festeja. A força sombria que ao mesmo tempo cria e extermina o mundo não espera resposta de quem ela atinge, não pergunta se ele está bem, não se ocupa muito dos sentimentos humanos de reciprocidade. Dá tudo e exige tudo: a paixão incondicional cuja energia mais profunda é a própria vida e a morte. Não se pode conhecer a paixão de outro modo. . . . e como são poucos os que chegam lá!

. . . Por trás de todo abraço de verdade se encontra a morte, com suas sombras, que não são menos completas que a irradiação das luzes da felicidade. Por trás de todo beijo de verdade está o desejo secreto de aniquilação, o sentimento definitivo de felicidade que não regateia, que sabe que ser feliz também é se extinguir por completo e se entregar a um sentimento. E o sentimento não tem finalidade. Talvez por isso as antigas religiões e os antigos e heroicos poemas e cantos respeitem os amantes…

De verdade (Cia. das Letras, págs. 241,  242, 243)

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É claro que de acordo com os papéis e a lei não tenho nada a exigir de você. Porém existe outro tipo de lei. Talvez ainda não saiba, mas chegou a hora de descobrir que além das leis da virtude há outras, igualmente poderosas, igualmente válidas. . . . como direi. . . . Já imagina? Habitualmente os homens não suportam essa consciência. Você tem de saber que os homens não se comprometem apenas com palavras, juras, promessas, e nem são sentimentos ou simpatias que determinam o verdadeiro vínculo. Há outra coisa, uma lei mais dura e severa a impor que essa ou aquela pessoa tem a ver com outra. . . . Como entre cúmplices. Essa lei determinou que eu tenho a ver com você. Eu sabia dessa lei. Há vinte anos também. Soube assim que a conheci. Não há mais razão para modéstia: creio, Eszter, que entre nós sou eu o de caráter mais firme. É claro que não o de ‘mais caráter’ no sentido propalado pelos manuais de ética. Ainda assim, eu, o cambaleante, o descrente, o fugitivo, fui eu que no íntimo e com toda a força de vontade consegui permanecer fiel à outra lei, que, embora não tenha registro nos livros e nas tábuas dos mandamentos, é a lei verdadeira. . . . É uma lei dura. . . . Preste atenção. O que um dia se iniciou tem de ser encerrado: essa é a lei do mundo. Isso não é motivo de júbilo. Nada vem no tempo certo, a vida não dá nada a quem se prepara. Essa desordem, esse atraso, causam dor durante muito tempo. Acreditamos que alguém brinca conosco. Porém um dia percebemos que em tudo havia uma ordem e uma sistemática extraordinárias. . . . duas pessoas não podem se cruzar nem mesmo na véspera, mas somente quando amadureceram para o encontro. . . . Amadureceram não só nas inclinações ou caprichos mas no íntimo, de acordo com um imperativo intocável, como num encontro de corpos celestes no espaço e tempo siderais, com a precisão de um fio de cabelo, no segundo exato, como os segundos dos astros entre os milhões de anos e distâncias infinitas. Não acredito em encontros casuais. Sou homem e conheci mulheres. . . . perdoe-me, mas preciso falar nisso. . . . conheci belas e passionais, conheci também aquelas em que parecia arder o hálito do demônio, conheci heroínas capazes de se arrastar por um homem, através da neve, na Sibéria, conheci mulheres extraordinárias capazes de ajudar e dividir por um tempo breve a solidão interminável da vida. Sim, conheci-as todas”, disse em voz baixa, mais para si, como quem relembra.

O legado de Ester (Cia. das Letras, págs. 99, 100)

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Seu trabalho era apenas constatar que essas duas pessoas não aguentavam mais a companhia uma da outra. Na maioria das vezes chegavam em frente ao juiz com a mesma alegação; um assumia a culpa, mas o juiz sabia que ambos eram igualmente culpados, ou que talvez nenhum deles o fosse, a culpa podia ser de qualquer outro ou de qualquer coisa – e enquanto “pronunciava a sentença” sentia que a intenção humana se intrometia no direito divino, Kömives acreditava no caráter sacro do casamento, Essa convicção era uma de suas leis internas. O casamento é sagrado, uma graça especial, intenção divina; o homem devia aceitá-lo como tudo que vinha de Deus sem tocá-lo com suas mãos profanas. O casamento para ele não era “perfeito” ou “imperfeito”, o casamento era uma convenção moral que dava forma divina para a convivência de duas pessoas de sexo diferente, para a família. Que mais podia pretender o homem? Um casamento “mais perfeito”? Tudo que a mão humana toca se deforma, permanece imperfeito, as pessoas não cumpriam nem os Dez Mandamentos, roubavam, mentiam, fornicavam, desejavam o rebanho e as mulheres de seus próximos – e apenas um louco poderia ter a ideia de exigir a revisão e o restauro dos Dez Mandamentos. A lei divina era perfeita, o homem, que não conseguia suportá-la, era imperfeito e frágil, era assim que pensava, e essa fé brotava do fundo de sua alma, de fonte misteriosa, não das argumentações do intelecto. As pessoas não conseguiam suportar o peso da família, do casamento? Sim, segundo todos os indícios – e que indícios terríveis! – o edifício da família estava desabando, as pessoas fugiam do lar decrépito e gelado, de todos os cantos surgiam falsos xamãs, profetas de modas detestáveis, que pregavam uma “união camarada”, um “casamento experimental” e discursavam sobre a “falência do casamento”. Kömives odiava esses falsos profetas e seus seguidores, os cônjuges de nervos em pandarecos, ou apenas acovardados irresponsáveis, libertinos, que um dia paravam diante dele com os olhos voltados para o chão, porque “não aguentaram” as obrigações e o peso do casamento!

Divórcio em Buda (Cia das Letras, págs. 54, 55)