Estórias tradicionais do Japão

Três contos do folclore japonês

 

O pardal da língua cortada

Era uma vez uma velha muito má.

Um dia, havia ela deitado goma num balde e dispunha-se a engomar a sua roupa: mas certo pardal, que era o favorito duma vizinha sua, comeu-lhe toda a goma. Vendo isto, a má mulher deita a mão ao pardal; e, cobrindo-o de injúrias, chamando-lhe “coisa detestável”, corta-lhe a língua.

Quando a vizinha, a quem pertencia o pardal, soube do sucedido, ficou vivamente penalizada; e ei-la a caminho, em companhia do marido, a fim de descobrirem onde a avezinha se refugiara.

Depois de longa marcha por montes e vales, acabaram por dar-lhe com o pouso. Quando o pardal viu os seus donos e soube quantas passadas lhes custara o chegarem até ali, muito contente ficou. Agradeceu-lhes tamanha bondade; mandou vir uma mesa carregada de peixe e de sakê, de tal modo provida, que nada mais se lhe poderia pôr em cima; todos os filhos e todos os netos do pardal serviram a mesa; e no fim do banquete o dono da casa, atirando para longe a sua taça de sakê, pôs-se a dançar a que então se chamava a dança dos pardais, e assim se passou todo o dia em grande regabofe.

Vindo a noite, quando o dois velhos se dispunham a partir, o pardal ordenou que fossem buscar dois grandes cestos, e disse aos velhos:

– Peço-lhes que levem consigo um destes cestos; qual mais lhes agrada: o maior ou o mais pequeno?

– Levaremos então o mais leve, responderam; somos muito velhos, e assim será mais fácil o transporte.

Tomaram pois o cesto mais leve e voltaram para casa. Chegados que foram, quiseram ver o que havia dentro do cesto, e abriram-no. Qual não foi o espanto dos dois, quando deram que estava cheio de ouro e de prata, de pedras preciosas e de peças de seda ! Nunca poderiam imaginar tanta riqueza! E quanto mais se tirava, mais aparecia; o cesto era inesgotável; de maneira que assim se tornaram ricos e afortunados.

Quando a má mulher soube do caso, agora a vereis mordida de inveja, imaginando nada menos do que possuir idênticos tesouros; foi pois encontrar-se com a vizinha, e perguntou-lhe onde o pardal vivia e qual era o caminho a seguir para dar-lhe com a casa. E partiu com efeito.

O pardal, mal deu com ela, fez vir imediatamente dois cestos iguaizinhos aos primeiros, e apresentou-lhe a mesma pergunta que fizera aos dois velhos:

– Quer vossemecê o mais pesado ou o mais leve?

Resposta dela:

– Dê-me o mais pesado, senhor pardal. Agarrou no cesto, e pôs-se de volta para casa, a cair de cansaço, porque o tal cesto era pesado como pedras e muito difícil de sobraçar.

Mas quando o abriu, saíram de dentro uma infinidade de diabinhos, que se atiraram a ela e a fizeram em postas.

 

A batalha entre o macaco e o caranguejo

Um macaco e um caranguejo encontraram-se certo dia junto duma montanha. O macaco estava possuidor dum caroço de figo kaki, o caranguejo tinha entre as pinças um bocado de bolo de arroz. Aquele, ladino, dando fé do belo achado, quis logo aproveitá-lo em beneficio próprio; e disse ao caranguejo:

– Troca o teu bolo pelo meu caroço, amigo. Sem responder, o crustáceo contentou-se em ceder o bolo, e tomou o caroço que meteu na terra.

Apenas assim procedeu, uma árvore surgiu, e tanto cresceu, que era preciso levantar os olhos para a ver.

Enchera-se de frutos, mas o caranguejo não tinha meio algum de chegar acima. Pediu então ao macaco para subir e dar-lhe alguns figos kakis. Ei-lo lépido, trepando pelos troncos, metendo mãos à obra, mas ia guardando na pança os frutos bons, e lançava os ruins ao companheiro, que debaixo da árvore, foi vítima destes projéteis, retirando-se para o seu esconderijo cheio de dores.

Quando os amigos e os parentes deram com ele, resolveram vingar-se, desafiaram o macaco, mas este reuniu tal malta de macacaria, que os desgraçados, travada a batalha, tiveram de bater em retirada, mais furiosos do que nunca. Reuniram-se em conselho e discutiram um plano de ataque. A eles se juntaram um almofariz, um pilão, uma abelha e um ovo. Combinado tudo, resolveram por disfarce solicitar a paz, e assim conseguiram atrair ao seu cenáculo o rei dos macacos. Veio ele, descuidado, e sentou-se tranquilamente. Conversando tomára os hibashi, e revolvia os carvões quase extintos, quando repentinamente o ovo, que se escondera entre as cinzas, rebentou como um grande bang, queimando-lhe o braço. Surpreso e ferido, o macaco, para acalmar a dor, apressou-se em ir mergulhar as feridas no barril de vinagre da cozinha; mas a abelha, que aí se emboscara, saltou-lhe ao rosto, picando-o, fazendo saltar-lhe as lágrimas. Sem se dar ao trabalho de castigar a abelha, ei-lo fugindo, soltando grandes berros, correndo em direção à porta. Mas justamente aí umas ervas marinhas enlearam-se-lhe nos pés; escorregou, caiu, caindo-lhe em cima o almofariz; e o pilão, aos rebolões também se lhe veio chapar sobre as costas; ficando o macaco tão mal tratado, que não foi possível erguer-se. Assim à disposição dos caranguejos, nada tardou que viessem, pinças erguidas, e começaram a mordicá-lo.

 

Momotaro

Em certo lugar viviam noutros tempos um velho e uma velha. O velho era rachador de lenha e passava os dias nas florestas a cortar madeira e a fazer feixes dela. Enquanto isso a velha lavava roupa.

Um dia, estando ela à borda do rio ocupada no seu mister, foi-lhe despertada a atenção por alguma coisa que lhe ia passando diante dos olhos, levada pela corrente. Era um pêssego magnífico, que a boa mulher não quis deixar escapar.

Pondo-se, pois, a perseguí-lo, conseguiu atingí-lo e tirá-lo da água, graças a uma vara de bambu encontrada por acaso. E ei-la contente como uma criança por se apossar do pêssego.

Vindo-lhe à ideia o fazer presente dele ao velho rachador, apressou-se em terminar a lavagem, para entrar mais cedo em casa; tinha pressa de dividir com o companheiro a alegria que lhe ia na alma. Na verdade o pobre velho ficou encantado à vista de tão maravilhoso fruto.

Depois de o terem contemplado bem a seu prazer, resolveram enfim dividi-lo entre si, e que cada um comesse metade.

Mas, ó prodígio! apenas partido o pêssego, eis que surge dele um lindo rapazinho. Julgue-se do espanto dos dois velhos com tão súbita e inesperada aparição!

Miraram-no por alguns instantes em silêncio; e acalmados um tanto, exclamaram:

– E um dom do céu; não temos filhos, adotemos este. E tomaram-no nos braços e encheram-no de carícias. Para recordar a sua origem, deram-lhe o nome de Momotaro, que significa o primogênito do pêssego, porque neste país se chama ao pêssego momo. Graças aos cuidados que mereceu, inteligentes e afetuosos, dos pais adotivos, os seus dotes de espírito e as forças físicas tomaram um rápido desenvolvimento.

Avançando em idade, tornava-se mais robusto e ativo, e era a alegria dos velhos.

A alguma distância do local, havia uma ilha, chamada Onigashima, habitada pelos Gênios, possuidores de riquezas imensas.

Momotaro, feito homem contando com a sua força hercúlea, resolveu-se a ir a esta ilha, para apoderar-se de tão afamados tesouros.

Dando parte do projeto a seus pais, não só o aprovaram, mas logo deram começo aos preparativos da viagem, bastando alguns dias para tudo disporem. E assim se foi, depois das despedidas.

No momento da partida, a velha dera-lhe uma sacola cheia de pãezinhos, chamados dangos, que ela mesmo havia preparado.

Pelo caminho, Momotaro, encontrou primeiramente um cão, que lhe disse:

– Momotaro, que leva você na sua sacola?

– São dangos, feitos com a melhor farinha do Japão.

– Se me dá um, quero acompanhá-lo, retorquiu o cão

– Com muito gosto. E Momotaro tirou um dango da sacola e deu-o ao cão.

Mais longe, um macaco e um faisão apresentaram-se sucessivamente no caminho. Feita igual pergunta e igual proposta, cada um teve o seu dango, como o cão. Depois, de repente e como por encanto, estes bichos apresentaram-se-lhe em vestes de guerreiros.

Momotaro embarcou em seguida com o seu pequeno exército, e após alguns dias de feliz navegação abordou à ilha dos Gênios.

Estava então fechada a porta do castelo. Meterem-na abaixo e precipitarem-se no interior foi obra de um momento.

No entanto, os servidores dos Gênios lançam-se ao encontro dos assaltantes, esforçando-se por detê-los; mas apesar do seu grande número, são obrigados a retirar-se para o palácio central. Akandoji, o chefe, achava-se armado com um pesado cacete de ferro, capaz de esborrachar um homem. Momotaro evita-lhe agilmente os golpes, consegue abraçar o adversário. Desde então a luta não podia prolongar-se. Akandoji não tardou em cair por terra, sendo em seguida amarrado, a ponto de nem poder mover-se.

A coragem e a bravura de que o moço acabava de dar prova, mereceram-lhe o respeito e a simpatia do chefe dos Gênios, que resolveu franquear-lhe os seus tesouros. A seu mando os servos vão buscar nas montanhas mil objetos preciosos, que expõem aos pés do vencedor. Faz este a sua escolha, e com os companheiros abandona a ilha, tendo carregado o seu barco com tudo que podia levar.

Momotaro testemunhava, pelas suas maneiras nobres e firmes, a íntima satisfação de ter levado a cabo um tal projeto. Mas não olvidava o que devia a seus pais, antes se aprazia em repetir que era ao seu concurso que atribuía o pronto e fácil êxito.

Grande foi a alegria dos velhos, vendo seu filho são e salvo e cheio de riquezas. Durante muitos dias deram-se festas magníficas, para as quais o moço herói convidou parentes e amigos, mostrando-lhes os seus tesouros, narrando-lhes os diversos incidentes da gloriosa expedição.

Pelo bom uso que fez da sua fortuna, Momotaro teve a satisfação de vê-la aumentar ainda, e soube por outro lado conciliar a tal ponto a estima e a confiança dos seus concidadãos, que, pela morte do chefe daquela terra, chamaram-no à honrosa tarefa de suceder-lhe.

Feliz Momotaro!

 

Traduzido por Wenceslau de Moraes para a série Biblioteca Internacional, Volume VI.