Estética como ciência da expressão

Fragmentos da Estetica come scienza dell’espressione e linguistica generale: teoria e storia de Benedetto Croce. Palermo, 1902 d.C.

 

Tradução de Omayr José de Moraes Jr. É Realizações.

I. Intuição e expressão

(Do Capítulo 1, homônimo)

Duas formas tem o conhecimento: conhecimento intuitivo ou conhecimento lógico; conhecimento pela imaginação ou conhecimento pelo intelecto; conhecimento do individual ou do universal; conhecimento das coisas singulares ou das relações entre elas: em suma, conhecimento que produz imagens ou que produz conceitos.

No dia a dia, continuamente, faz-se apelo ao conhecimento intuitivo. Diz-se que não é possível dar a definição de certas verdades; que elas não são demonstráveis por silogismos; que convém aprendê-las intuitivamente. O político critica o pensador abstrato, que não possui a intuição viva das condições reais; o pedagogo insiste na necessidade de desenvolver, antes de tudo, a faculdade intuitiva; ante uma obra de arte, o crítico considera um ponto de honra deixar de lado as teorias e as abstrações a fim de julgá-las por intuição direta; enfim, o homem prático professa viver mais de intuições que de raciocínios.

Mas a esse amplo reconhecimento concedido ao conhecimento intuitivo na vida comum, não corresponde um igual e adequado reconhecimento no campo da teoria e da filosofia. Do conhecimento intelectual há uma ciência muito antiga, admitida sem discussão por todos, a saber, a lógica; mas poucos admitem, e timidamente, que haja alguma ciência do conhecimento intuitivo. O conhecimento lógico apropriou-se da melhor parte; e, quando não devora de imediato o seu companheiro, cede-lhe apenas o lugar humilde de empregado ou de porteiro. – O que seria do conhecimento intuitivo sem o lume do conhecimento intelectual? É um empregado sem patrão; e, embora o empregado seja útil ao patrão, para o empregado o patrão é uma necessidade, já que ele é quem lhe garante o ganha-pão. A intuição é cega; o intelecto lhe empresta seus olhos.

Ora, o primeiro ponto que deve estar bem estabelecido na mente é que o conhecimento intuitivo não precisa de um patrão; nem tem necessidade de se apoiar em nada; não precisa pedir emprestados os olhos dos outros, pois tem olhos próprios, excelentes. E se é indiscutível que em muitas intuições podem-se encontrar conceitos misturados, em outras não há qualquer vestígio de tal mistura, o que vem a provar que ela não é necessária. A impressão de um luar, retratado por um pintor; o contorno de um país, delineado por um cartógrafo; um tema musical, suave ou enérgico; as palavras de uma lírica suspirante, ou aquelas com as quais pedimos, mandamos, e nos lamentamos na vida diária, podem muito bem ser todos fatos intuitivos sem sombra de referências intelectuais. Seja o que for que se pense desses exemplos, e admitindo também que se queira e deva sustentar que a maior parte das intuições do homem civilizado estão impregnadas de conceitos, resta algo ainda mais importante e conclusivo a ser observado. Os conceitos que se acham mesclados e fundidos nas intuições, na medida em que estão realmente mesclados e fundidos, deixam de ser conceitos, pois perderam toda a sua independência e autonomia. Eles foram conceitos, mas por ora tornaram-se simples elementos de intuição. As máximas filosóficas, postas na boca de um personagem de tragédia ou de comédia, realizam aí a função, não de conceitos, mas de características daqueles personagens; da mesma maneira como, em uma figura pintada, o vermelho não está como conceito da cor vermelha dos físicos, mas como elemento caracterizante daquela figura. O todo determina a qualidade das partes. Uma obra de arte pode estar cheia de conceitos filosóficos, pode tê-los em maior abundância, e mesmo de modo mais profundo do que em uma dissertação filosófica, a qual, por sua vez, poderá ser rica e transbordante de descrições e intuições. Mas, apesar de todos esses conceitos, o efeito total da obra de arte é uma intuição; e, apesar de todas essas intuições, o efeito total da dissertação filosófica é um conceito. Os Esposos Prometidos [de Alessandro Manzoni] contém copiosas observações e distinções éticas, mas nem por isso perde, em seu conjunto, sua característica de simples romance ou de intuição. De maneira semelhante, as anedotas e efusões satíricas que podem ser encontradas nos livros de um filósofo como Schopenhauer, não privam essas obras de seu caráter de tratados intelectuais. A diferença entre um trabalho científico e uma obra de arte, isto é, entre um ato intelectivo e um ato intuitivo, está no resultado, no distinto efeito total pretendido em cada uma delas, e tal resultado determina as partes desse conjunto, e não apenas as partes separadas e consideradas abstratamente em si mesmas.

No entanto, para se ter uma ideia verdadeira e exata da intuição, não basta reconhecê-la como independente do conceito. Dentre os que assim pensam ou que ao menos não fazem com que a intuição dependa explicitamente da intelecção, surge outro erro que ofusca e confunde a sua própria índole. Por intuição, frequentemente se entende a percepção, ou o conhecimento da realidade, a apreensão de algo enquanto real.

Certamente, a percepção é intuição: as percepções da sala em que estou escrevendo, do tinteiro e do papel que estão diante de mim, da pena de que me sirvo, dos objetos que toco e faço uso como instrumentos de minha pessoa, a qual, se escreve, portanto, existe, são todas intuições. Da mesma maneira, porém, a imagem, que agora me passa pela cabeça, de um eu que escreve em outra sala, em outra cidade, com outro papel, pena e tinta, também é intuição. Isso quer dizer que a distinção entre realidade e não realidade é estranha e secundária à verdadeira índole da intuição. Supondo uma mente humana que intui pela primeira vez, parece que ela não pode intuir senão a realidade efetiva, tendo, portanto, apenas intuições do real. Mas já que o conhecimento da realidade baseia-se na distinção entre imagens reais e imagens irreais, e uma vez que tal distinção não existe no primeiro momento, essas intuições não seriam, em verdade, intuições do real nem do irreal, não seriam percepções, mas puras intuições. Onde tudo é real, nada é real. Certa ideia, bastante vaga e bem de longe aproximativa desse estado ingênuo, pode ser encontrada na criança, com a sua dificuldade de distinguir o real do imaginário, a estória da fábula, que para ela são uma coisa só. A intuição é a unidade indiferenciada da percepção do real e da imagem simples do possível. Nas intuições, não nos contrapomos, enquanto seres empíricos, à realidade externa, mas simplesmente objetivamos nossas impressões, sejam quais forem.

 

II. Intuição é expressão

(Do Capítulo 1)

A atividade intuitiva intui o tanto que exprime. Se essa proposição soa paradoxal, uma das causas disso está, decerto, no hábito de dar ao termo “expressão” um significado muito restrito, reduzindo-o somente ao âmbito das expressões verbais; mas existem também expressões não verbais, como, por exemplo, as linhas, cores e tons: todas essas devem ser incluídas no conceito de expressão, que abrange, portanto, todo tipo de manifestação humana, como orador, músico, pintor, ou qualquer outra. Seja pictórica ou verbal, musical ou descrita e denominada sob qualquer outra manifestação, a expressão não pode faltar à intuição, da qual é, propriamente, inseparável. Como podemos intuir de fato uma figura geométrica, se não tivermos clara a imagem ao ponto de traçá-la imediatamente no papel ou no quadro negro? Como podemos intuir de fato o contorno de uma região, por exemplo, da ilha da Sicília, se não formos capazes de desenhá-la como ela é em todos os seus meandros? A cada um é dado experimentar a luz interior que se apresenta quando consegue formular para si mesmo, no mesmo momento em que o consegue, suas impressões e seus sentimentos. Sentimentos e impressões passam, então, por força das palavras, da região obscura da psique à clareza do espírito que contempla. É impossível distinguir, nesse processo cognitivo, a intuição da expressão. Ambas surgem no mesmo instante, porque não são dois, mas um só ato.

O principal motivo que faz parecer paradoxal a tese por nós afirmada é a ilusão ou preconceito de que intuímos da realidade mais do que aquilo que efetivamente intuímos. Alguns dizem que têm muitos e importantes pensamentos em suas mentes, mas não são capazes de expressá-los. Na verdade, se os tivessem realmente, seriam capazes de cunhá-los em muitas palavras belas e sonoras, expressando-os assim. Se, no ato de expressar esses pensamentos, eles parecem desaparecer ou se tornam escassos e pobres, é porque ou eles não existiam ou eram realmente escassos e pobres. De modo semelhante, pensa-se que todos nós, homens comuns, somos capazes de intuir e imaginar países, figuras e cenas, como os pintores, e corpos, como os escultores; e que os pintores e escultores sabem pintar e esculpir essas imagens, mas nós as trazemos inexpressas em nossas almas. Acredita-se que uma Madonna de Rafael poderia ter sido imaginada por qualquer um; mas Rafael foi Rafael apenas por conta da sua capacidade técnica de fixar tal imagem sobre a tela. Nada pode ser mais falso. O mundo que intuímos ordinariamente é pouco, e se traduz em pequenas expressões, que gradualmente se tornam maiores e mais amplas com a crescente concentração espiritual em momentos particulares. São as palavras interiores que dizemos a nós mesmos, nossos julgamentos expressos tacitamente: “Eis um homem, eis um cavalo, isso é pesado, isso é áspero, isso me agrada, etc.” Na verdade, tudo isso não passa de uma mistura de luz e de cores, sem valor pictórico superior ao que teria um borrão de cores misturadas ao acaso, no qual seria difícil se perceber traços distintivos particulares. Isso, e nada mais, é o que possuímos em nossa vida cotidiana, essa é a base de nossa ação no dia a dia. É o índice de um livro; são, como se disse, os rótulos que impusemos às coisas e que tomam o lugar das coisas em si. Esse índice e esses rótulos (estes também expressões) são suficientes às pequenas necessidades e pequenas ações. Mas, de vez em quando, passamos do índice ao livro, do rótulo à coisa, das pequenas intuições às grandes, e destas às muito maiores e excelsas. E, por vezes, essa passagem não é nada fácil. Aqueles que melhor investigaram a psicologia de artistas observaram que estes, ao darem uma rápida olhada em alguém, dispostos a obter uma real intuição dela a fim de, por exemplo, pintar um retrato, então essa visão comum, que parecia tão vivaz e clara, revela-se como sendo pouco menos que o nada: o que resta daquela olhadela é quando muito um traço superficial, que não seria suficiente nem para uma caricatura. A pessoa a ser pintada está diante do artista como um mundo a descobrir. Michelangelo sentenciou: “Não se pinta com as mãos, mas com o cérebro”; e Leonardo escandalizou o prior do convento delle Grazie por ficar dias olhando para a “Última Ceia” sem tocá-la com o pincel; o motivo, segundo ele, era que “os homens de talento elevado são mais ativos na invenção quando estão finalizando a obra”. O pintor é pintor, porque vê o que os outros apenas sentem, ou vislumbram, mas não veem. Imaginamos ver um sorriso, mas na realidade temos dele apenas uma vaga impressão, isto é, não percebemos todos os traços característicos de que ele resulta, como, depois de os ter trabalhado, o pintor descobre que assim é capaz de fixá-los completamente na tela. Mesmo do nosso mais íntimo amigo, daquele que está conosco todos os dias e todas as horas, possuímos intuitivamente apenas certos traços de fisionomia que nos permitem distingui-lo dos outros. Menos fácil ainda é a ilusão para as expressões musicais; porque pareceria estranho dizer que o compositor apenas acrescente ou amontoe notas para um tema que já estava na mente de quem não é o compositor, como se a intuição de Beethoven não fosse, por exemplo, a sua Nona Sinfonia e a sua Nona Sinfonia a sua intuição. Ora, assim como alguém que se ilude quanto ao montante de suas riquezas materiais é desmentido pela aritmética, que lhe diz exatamente quanto possui, assim, quem se ilude quanto à riqueza de seus próprios pensamentos e imagens é reconduzido à realidade, quando se vê obrigado a atravessar o Asinorum Pons da expressão. Ao rico, diríamos: “Vá contar o seu dinheiro”; ao outro: “Eis aqui um lápis, desenhe e se expresse”.

Cada um de nós, em suma, tem um pouco de pintor, de escultor, de músico, de poeta, de prosador; mas quão pouco temos em relação àqueles que são chamados assim justamente pelo elevado grau com que têm tais disposições mais universais e energias humanas; e quão pouco um pintor possui das intuições ou representações de um poeta, ou mesmo as de um outro pintor! No entanto, esse pouco é todo o nosso patrimônio atual de intuições ou representações. Além destas, existem apenas impressões, sensações, sentimentos, impulsos, emoções ou qualquer outra coisa que ainda esteja aquém do espírito e não é assimilado pelo homem, algo postulado para a conveniência de exposição, mas na verdade inexistente, uma vez que existir é também um ato do espírito.

Às variantes verbais indicadas no princípio, com as quais se designa o conhecimento intuitivo, podemos ainda acrescentar que o conhecimento intuitivo é o conhecimento expressivo. Ele é independente e autônomo em relação à intelecção; indiferente às discriminações posteriores de realidade e irrealidade e às formações e percepções, também posteriores, de espaço e de tempo; a intuição ou representação distingue-se do que se sente e recebe, da onda ou fluxo sensitivo, da matéria psíquica, como forma; e essa forma, essa tomada de posse, é a expressão. Intuir é exprimir, e nada mais que exprimir (nada a mais e nada a menos).

 

III. A atividade teorética e prática

(Do Capítulo 6, homônimo)

Como dissemos, as formas intuitiva e intelectual exaurem todo o domínio teorético do espírito. Mas não é possível conhecê-las completamente, nem criticar outra série de teorias estéticas errôneas, sem antes estabelecer claramente as relações do espírito teorético com o espírito prático.

A forma ou atividade prática é a vontade. Essa palavra não é empregada no sentido de algum sistema filosófico, em que a vontade é o fundamento do universo, o princípio das coisas, a verdadeira realidade; também não a empregaremos no sentido amplo de outros sistemas, que entendem a vontade como energia do espírito, espírito ou atividade in genere, fazendo de cada ato do espírito humano um ato de vontade; tampouco a usaremos em sentido metafísico ou metafórico. Para nós, segundo a acepção comum da palavra, a vontade é a atividade do espírito que difere da mera teoria ou contemplação das coisas, e é capaz de produzir ações e não conhecimento. A ação é realmente a ação, na medida em que é voluntária. Não é necessário ressaltar que na vontade de fazer está incluso, em sentido científico, também o que comumente é chamado de não fazer: a vontade de resistir, de rejeitar, a vontade prometeica, que também é ação.

Com a forma teorética, o homem entende as coisas; com a forma prática, ele as transforma; com uma, se apropria do universo; com a outra, o cria. Mas a primeira forma é a base da segunda; entre ambas repete-se, em escala maior, a relação de duplo grau existente entre a atividade estética e a lógica. É possível, ao menos em certo sentido, admitir um conhecimento independente da vontade; mas uma vontade independente do conhecimento é impensável. A vontade cega não é vontade; a vontade verdadeira tem olhos.

Como se pode querer sem se ter diante de nós intuições históricas de objetos (percepções) e conhecimentos de relações (lógicas), que nos iluminam acerca da qualidade desses objetos? Como podemos querer realmente, se não conhecemos o mundo que nos rodeia, e o modo de transformar as coisas, agindo sobre elas?

Tem-se objetado que os homens de ação, os homens práticos por excelência, são os menos dispostos a contemplar e teorizar: a sua energia não se detém na contemplação, mas precipita-se logo sobre a vontade; inversamente, os homens contemplativos e os filósofos são frequentemente muito medíocres em questões práticas, de fraca vontade, sendo por isso esquecidos e postos de lado nas lutas da vida. É fácil perceber que essas distinções são meramente empíricas e quantitativas. Certamente, o homem prático não tem necessidade de um elaborado sistema filosófico para agir, mas, na esfera onde atua, move-se a partir de intuições e conceitos que lhe são evidentíssimos. Caso contrário, as ações mais comuns não poderiam ser desejadas. Não seria possível nem mesmo alimentar-se voluntariamente, se não tivesse conhecimento dos alimentos e do liame de causa e efeito entre certos movimentos e satisfações. Se pensarmos em formas mais complexas de ação, por exemplo, a ação política, como poderíamos desejar algo politicamente conveniente sem conhecer as reais condições da sociedade e, consequentemente, os meios e expedientes a serem adotados? Quando o homem prático se dá conta de que lhe falta luz sobre esses assuntos, ou quando é assaltado pela dúvida, então a ação ou não se inicia ou se detém. O momento teorético, que dificilmente é notado e rapidamente esquecido na rápida sucessão das ações humanas, torna-se importante e ocupa a consciência por um tempo mais longo. E se esse momento prolonga-se ainda mais, o homem prático pode tornar-se um Hamlet, dividido entre o desejo de ação e a pouca clareza teorética no que se refere à situação e os meios a serem empregados. E se ele, tomando o gosto pela contemplação e a meditação, abandona os demais, em maior ou menor medida, o querer e o agir, forma-se nele a calma disposição do artista, do homem da ciência, ou do filósofo, que na prática são, por vezes, ineptos ou simplesmente desastrados. Todas essas observações são óbvias, e sua pertinência não pode ser negada. Vamos repetir, porém, que elas se fundamentam em distinções quantitativas e não destroem, mas antes confirmam o fato de que uma ação, por menor que seja, não pode realmente ser ação, isto é, ação intencional, a menos que precedida por atividade cognitiva.

 

IV. Singularidade da Estética e independência da Arte

(Do Capítulo 6)

Estabelecidas essas distinções, devemos condenar como errônea toda a teoria que vincula a atividade estética à prática, ou introduza as leis da segunda no âmbito da primeira. De fato, muitas vezes se tem afirmado que a ciência é teoria, e a arte, prática. Os que sustentam essa doutrina não o fazem por capricho ou porque tateiam no vazio, mas porque estão de olho em algo que é realmente prático. No entanto, o prático que visam não é o estético, nem está dentro do âmbito do estético, mas está fora e ao lado deste; e embora frequentemente se achem unidos, não estão unidos necessariamente, ou seja, pela identidade da natureza.

O fato estético se exaure completamente na elaboração expressiva das impressões. Quando conquistamos a palavra interior, quando concebemos clara e vivamente uma figura ou uma estátua, ou quando se encontra um motivo musical, a expressão nasceu e está completa, não há necessidade de mais nada. Se após isso abrimos e queremos abrir a boca para falar, ou encher os pulmões para cantar, isto é, dizemos em voz alta e melodia audível aquilo que já dissemos e cantamos em voz baixa a nós mesmos; ou estendemos e queremos estender as mãos para tocar piano, ou nos servimos do pincel e do cinzel. Fazendo, por assim dizer, em larga escala os movimentos que já fizemos em pequeno ponto e rapidamente, traduzindo-os em um material em que deixamos traços mais ou menos duráveis, isso será um fato que se adiciona e obedece a leis muito diferentes que não correspondem às leis do primeiro, com o qual não estamos preocupados no momento, apesar de reconhecermos que, doravante, este segundo movimento é uma produção de coisas, um fato prático ou de vontade.

É usual distinguir a obra de arte interna da externa: a terminologia nos parece infeliz, porque a obra de arte (a obra estética) é sempre interna, e a que se diz externa não é mais uma obra de arte. Outros distinguem entre fato estético e fato artístico, ou seja, entendendo por segundo o estágio externo ou prático, que pode seguir, como de fato geralmente segue, ao primeiro. Mas, nesse caso, trata-se de mera questão de uso linguístico, lícito sem dúvida, embora talvez não aconselhável. Pelas mesmas razões é absurdo se pensar numa indagação sobre o fim da arte, quando se fala da arte enquanto arte. E por que estabelecer um fim é escolher, uma variante do mesmo erro é a teoria de que o conteúdo da arte deve ser selecionado. A seleção entre impressões e sensações supõe que estas já são expressões, caso contrário, como seria possível se fazer uma escolha no que é contínuo e indistinto? Escolher é querer: querer uma coisa e não outra: ambas as opções devem estar expressas diante de nós. O prático segue, não precede o teorético; a expressão é livre inspiração.

O verdadeiro artista, de fato, está grávido de seu tema e não sabe como ficou assim; ele sente o parto se aproximar, mas não o pode querer ou não o quer. Se quisesse agir em sentido contrário à sua inspiração, se quisesse escolhê-la arbitrariamente, se, nascido Anacreonte, quisesse bancar Atreu ou Alcides, sua lira o avisaria de seu engano, ao soar, apesar de seus esforços contrários, apenas para Vênus e Amor.

O tema ou conteúdo não pode, portanto, ser praticamente e moralmente sobrecarregado de adjetivos de louvor ou culpa. Quando os críticos de arte notam que um tema é mal selecionado, nos casos em que a observação é pertinente e tem fundamento justo, essa reprovação não diz respeito propriamente à escolha do tema, mas à maneira com que o artista o tratou, ao fracasso da expressão devido às contradições que ele contém. E quando os mesmos críticos protestam contra o tema ou conteúdo das obras, considerando-os como algo censurável e indigno da arte, pois julgam essas obras apenas sob o aspecto da perfeição artística; se tais obras, pois, são realmente perfeitas, não resta nada a ser feito senão exortar esses críticos a deixarem em paz os artistas, uma vez que estes derivam sua inspiração necessariamente do que lhes moveu a mente; eles deviam, sim, direcionar sua atenção no sentido de efetuar mudanças na natureza que os circunda ou na sociedade, a fim de que tais impressões e estados de alma não se repetissem. Se a feiura desaparecesse, se a virtude e felicidade universais se estabelecessem no mundo, que seria dos artistas? Talvez deixassem de representar sentimentos perversos ou cheios de pessimismo, mas apenas sentimentos calmos, inocentes e alegres, verdadeiros árcades de uma Arcádia de verdade. Enquanto, porém, a feiura e a torpeza existirem na natureza e se impuserem ao artista, será impossível evitar que surjam também suas correspondentes expressões; e, quando estas realmente surgem, factum infectum fieri nequit [o que está feito não se desfaz]. Quando muito se conseguirá impedir a divulgação dessa ou daquela obra de arte dentro de condições bastante específicas, mas tudo isso não diz respeito à arte e pertence a outro discurso, como se verá mais adiante.

Não nos cabe aqui avaliar os danos que a crítica dita de “escolha” faz à produção artística, os preconceitos que produz ou incentiva entre os próprios artistas, os conflitos que surgem entre o impulso artístico e demandas da crítica. É verdade que, às vezes, tal crítica parece fazer algum bem, ajudando os artistas a descobrirem a si mesmos, isto é, suas próprias impressões e inspiração, adquirindo consciência do ofício que lhes é, por assim dizer, confiado pelo momento histórico em que vivem, e também pelo seu temperamento individual. Nesses casos, embora acredite que esteja gestando algo, a crítica dita da “escolha” apenas reconhece e ajuda as expressões que já estão em via de formação. Ela se pensa mãe, mas, na maioria dos casos, é apenas a parteira.

A impossibilidade de escolha de conteúdo completa o teorema da independência da arte, e é também o único significado legítimo da expressão: a arte pela arte. A arte é independente tanto da ciência como do útil e da moral. Não se nutra o temor de que se deve justificar a arte frívola ou fria, porque o que é verdadeiramente frívolo ou frio é assim apenas porque não elevado à expressão; ou em outras palavras, frivolidade e frigidez nascem sempre da forma da elaboração estética, da incapacidade de compreender um conteúdo, e não das qualidades materiais do próprio conteúdo.