Espanha invertebrada

Extratos do ensaio homônimo de José Ortega y Gasset, 19 anos após o fim do Império Espanhol e 17 antes da Guerra Civil. Madri, 1917 d.C.

 

Tradução de Marcelo Consentino

Entre as novas emoções suscitadas pelo cinematógrafo há uma que teria entusiasmado Goethe. Refiro-me a esses filmes que condensam em breves momentos todo o processo generativo de uma planta. Entre a semente que germina e a flor que se abre sobre o caule como uma coroa da perfeição vegetal, transcorre na natureza muito tempo. Não vemos emanar uma da outra: os estados do crescimento se mostram a nos como uma série de formas imóveis, encerrada e cristalizada cada qual em si mesma e sem fazer a menor referência à anterior nem à subsequente. Não obstante, suspeitamos que a verdadeira realidade da vida vegetal não é essa série de perfis estáticos e rígidos, mas sim o movimento latente no qual vão saindo uns dos outros, transformando-se uns nos outros. Ordinariamente, o tempo que a batuta da natureza impõe ao crescimento das plantas é mais lento que o exigido por nossa retina para fundir duas imagens paradas na unidade de um movimento. Em alguns casos, tão raros como favoráveis, o tempo da planta e o da nossa retina coincidem, e então o mistério de sua vida se faz patente a nossos olhos. Isso aconteceu a Goethe quando descia do Norte da Itália: suas pupilas intensas e visionárias, habituadas ao ritmo germinal da flora germânica, ficam surpresas pelo allegro da flora meridional, e ao choque da nova intuição descobre a lei botânica da metamorfose, genial contribuição de um poeta à ciência natural.

Para entender bem uma coisa é preciso pôr-se em seu compasso. De outro modo, a melodia da sua existência não consegue se articular em nossa percepção e se debulha em uma sequência de sons desconexos que carecem de sentido. Se nos falam depressa demais ou devagar demais, as sílabas não se encadeiam em palavras nem as palavras em frases. Como poderiam entender-se duas almas de tempo melódico distinto? Se queremos ganhar intimidade com algo ou com alguém, tomemos primeiro o pulso de sua melodia vital e, segundo ele exija, galopemos um tanto às suas margens, e ponhamos em seu compasso nosso coração.

Assim o cinematógrafo emparelha nossa visão com o lento crescer da planta e consegue que o desenvolvimento desta adquira a nossos olhos a continuidade de um gesto. Então a entenderemos com mesma evidência que uma pessoa familiar, e veremos na eclosão da flor o término claro de um gesto.

Pois bem: eu imagino que o cinematógrafo poderia ser aplicado à história e que, condensados em breves minutos, corressem ante nossos olhos os quatro últimos séculos da vida espanhola. Apertados uns contra os outros os fatos inumeráveis, fundidos em uma curva sem poros nem descontinuidades, a história da Espanha adquiriria a claridade expressiva de um gesto e os acontecimentos contemporâneos nos quais termina o vasto gesto se explicariam por si mesmos, como uma bochecha que a angústia contrai ou uma mão que desce rendida.

Então veríamos que de 1580 até hoje o que acontece na Espanha é decadência e desintegração. O processo de incorporações do Reino cresce até Felipe II. O ano vigésimo de seu reinado pode ser considerado como a divisória dos destinos peninsulares. Até o seu pico, a história da Espanha é ascendente e acumulativa; desde então até nós, a história da Espanha é decadente e dispersiva. O processo de desintegração avança numa ordem rigorosa da periferia ao centro. Primeiro se desprendem os Países Baixos e o ducado de Milão; depois, Nápoles. No início do século XIX se separam as grandes províncias ultramarinas, e, no seu fim, as colônias menores da América e Extremo Oriente. Em 1900, o corpo espanhol voltou à sua nativa nudez peninsular. Termina com isto a desintegração? Talvez seja por acaso, porém o desprendimento das últimas posses ultramarinas parece ser o sinal para o começo da dispersão interpeninsular. Em 1900 começa-se a ouvir rumores de regionalismos, nacionalismos, separatismos… É o triste espetáculo de um longuíssimo multissecular outono, trabalhado periodicamente por convulsões adversas que arrancam da ramagem inválida as folhas caducas.

O processo de incorporação da monarquia espanhola consistia em uma tarefa de totalização: grupos sociais que eram todos apartados se viram integrados como partes de um todo. A desintegração é o fenômeno inverso: as partes do todo começam a viver como todos apartados. A este fenômeno da vida histórica chamo particularismo e se alguém me perguntar qual é a característica mais profunda e mais grave da atualidade espanhola, eu responderia com essa palavra.

[…]

A essência do particularismo é que cada grupo deixa de sentir-se a si mesmo como parte e em consequência deixa de compartilhar os sentimentos dos demais. Não lhe importam as esperanças ou as necessidades dos outros e não se solidarizará com eles para auxiliá-los em seus anseios. Como a moléstia que acaso sofre o vizinho não afeta por transmissão empática aos demais núcleos nacionais, este fica abandonado à sua desventura e debilidade. Por outro lado, é característico deste estado social a hipersensibilidade para os próprios males. Irritações e dificuldades que em tempos de coesão são facilmente suportados, parecem intoleráveis quando a alma do grupo se desintegrou da convivência nacional.

Nesse sentido essencial podemos dizer que o particularismo existe hoje em toda a Espanha, ainda que modulado diversamente segundo as condições de cada região. Em Bilbao e Barcelona, que se sentiam como as forças econômicas maiores na Península, o particularismo tomou um aspecto agressivo, expresso e de ampla musculatura retórica. Na Galicia, terra pobre, habitada por almas abatidas, desconfiadas e sem fé em si mesmas, o particularismo será reintroduzido como uma erupção que não pode brotar, e adotará a fisionomia de um surdo e humilhado ressentimento, de uma entrega inerte à vontade alheia, em que se abandona sem protesto o corpo para reservar tanto mais a intima adesão.

Não compreendi nunca porque preocupa o nacionalismo afirmativo da Catalunha e do País Basco e, porém, não causa pavor o niilismo nacional da Galicia ou de Sevilha. Isto indica que não se percebeu ainda toda a profundidade do mal e que os patriotas com cabeça de papelão creem resolvido o problema nacional se numa ou outra eleição são derrotados separatistas como o senhor Sota ou o senhor Cambó.

O propósito deste ensaio é corrigir o desvio na pontaria do pensamento político atual, que busca o mal radical do separatismo catalão e basco na Catalunha ou no País Basco, quando não é ali que ele está. Onde, então?

Para mim isso não oferece dúvida: quando uma sociedade se consome vítima do particularismo, pode-se sempre afirmar que o primeiro se a mostrar particularista foi precisamente o Poder central. E foi isso que aconteceu na Espanha.

Castela fez a Espanha e Castela a desfez.

Núcleo inicial do processo de incorporação ibérica, Castela conseguiu superar seu próprio particularismo e convidou os demais povos peninsulares para que colaborassem em um gigantesco projeto de vida comum. Castela inventa grandes empresas instigantes, põe-se a serviço das altas ideias jurídicas, morais, religiosas; desenha um sugestivo plano de ordem social: impõe a norma de que todo homem melhor deve ser preferido ao seu inferior, o ativo ao inerte, o agudo ao torpe, o nobre ao vil, Todas estas aspirações, normas, hábitos, ideias se mantêm durante algum tempo vívidas. As pessoas se entusiasmam influenciadas eficazmente por elas, crescem nelas, as respeitam ou as temem. Porém se espiamos a Espanha de Felipe III [soberano entre 1598 a 1621] notamos uma terrível mudança. À primeira vista nada mudou, porém tudo se tornou de papelão e soa falso. As palavras vivazes de antanho seguem sendo repetidas, porém já não influenciam nossos corações: as ideias incitantes se transformaram em tópicos. Não se empreende nada novo, nem em política, nem em ciência, nem em moral. Toda a atividade que resta se emprega precisamente “em não fazer nada novo”, em conservar o passado – instituições e dogmas – em sufocar toda iniciativa, todo fermento inovador. Castela se transforma naquilo que há de mais oposto a si mesma: torna-se desconfiada, estreita, sórdida, agreste. Já não se preocupa em potenciar a vida das outras regiões; ciumenta delas, as abandona a si mesmas e começa a não inteirar-se do que se passa nelas.

Se a Catalunha ou o País Basco tivessem sido as raças formidáveis que agora creem ser, teriam dado um terrível puxão em Castela quando esta começou a se fazer particularista, isto é, a não contar devidamente com elas. Se acaso a sacudida na periferia tivesse despertado as antigas virtudes do centro, não teríamos, talvez, caído na persistente modorra de idiotia e egoísmo que foi por três séculos nossa história.

Analisemos as forças diversas que atuavam na política espanhola durante todos esses séculos, e se verá claramente seu atroz particularismo. Começando pela Monarquia e seguindo pela Igreja, nenhum poder nacional pensou mais do que em si mesmo. Quando bateu o coração, ao fim e ao cabo estrangeiro, de um monarca espanhol ou da Igreja espanhola pelos destinos profundamente nacionais? Que eu saiba, jamais. Fizeram todo contrário: Monarquia e Igreja se obstinaram em fazer com que os outros adotassem seus próprios destinos como se fossem os verdadeiramente nacionais.

Fomentaram uma geração após a outra, uma seleção invertida na raça espanhola. Seria curioso e cientificamente fecundo fazer uma história das preferências manifestadas pelos reis espanhóis na escolha das pessoas. Ela mostraria a incrível e continuada perversão de valorações que os levou quase indefectivelmente a preferir os homens tolos aos inteligentes, os envilecidos aos irrepreensíveis. Pois bem: o erro habitual, inveterado, na escolha das pessoas, a preferência inveterada pelo ruim ao superior é o sintoma mais evidente de que não se quer realmente fazer nada, empreender, criar nada que logo viva por si mesmo. Quando se tem o coração cheio de um alto empenho se acaba sempre por buscar os homens mais capazes de executá-lo.

Ao invés de renovar periodicamente o tesouro de ideias vitais, de modos de coexistência, de empresas unificadoras, o Poder público foi triturando a convivência espanhola e usou de sua força nacional quase exclusivamente para fins privados.

É estranho que, ao cabo do tempo, a maior parte dos espanhóis, e desde logo a melhor, se pergunte “para que vivemos juntos?” Porque viver é algo que se faz rumo ao avante, é uma atividade que vai deste segundo ao futuro imediato. Para viver não basta, portanto, a ressonância do passado, e basta muito menos para conviver. Por isso dizia Renan que uma nação é um plebiscito cotidiano. No segredo inefável dos corações se realiza todos os dias um fatal sufrágio que decide se uma nação pode de verdade continuar a sê-lo. O que nos convida o Poder público a fazer amanhã em entusiástica colaboração? Já há muito tempo, muito, séculos, o Poder público pretende que os espanhóis existam só para que ele se dê o gosto de existir. Como o pretexto é excessivamente minguado, a Espanha vai se desfazendo, desfazendo… Hoje ela é, antes que um povo, um povaréu, a poeirada que resta quando pelo grande rota histórica passou galopando um grande povo…

Assim, pois, quero crer que o mais importante no separatismo catalão e no basco é precisamente o que menos se costuma apontar neles, a saber: o que têm em comum, por um lado, com o longo processo de secular desintegração que ceifou os destinos da Espanha; por outro lado, com o particularismo latente ou variamente modulado que existe hoje no resto do país. O resto, a afirmação da diferença étnica, o entusiasmo por seus idiomas, a crítica à política central, me parece que, ou não tem importância, ou se a tem, poderia ser aproveitada no sentido favorável.

Mas esta interpretação do separatismo basco-catalão como mero caso específico de um particularismo mais geral existente em toda Espanha é melhor demonstrada se nos fixarmos em outro fenômeno agudíssimo característico da hora presente e que nada tem a ver com províncias, regiões ou raças: o particularismo das classes sociais.

[…]

Não é necessário nem importante que as partes de um todo social coincidam em suas vontades e suas ideias; o necessário e importante é que conheçam cada uma, e em certo modo vivam as das outras. Quando isso falta, perde a classe ou corporação, como certos enfermos da medula, a sensibilidade tátil; não sente em sua periferia o contato e a pressão das demais classes ou corporações; chega consequentemente a crer que só ela existe, que ela é tudo, que ela é um todo. Tal é o particularismo de classe, sintoma muito mais grave de decomposição que os movimentos de separatismo étnico e territorial; porque as classes e corporações são partes num sentido mais radical que os núcleos étnicos e políticos.

Pois bem: a vida social espanhola oferece em nossos dias um extremado exemplo deste atroz particularismo. Hoje a Espanha é, mais do que uma nação, uma série de compartimentos estanques.

Dizem que os políticos não se preocupam com o resto do país. Isto, que é verdade, é contudo injusto, porque parece atribuir exclusivamente aos políticos tal despreocupação. A verdade é que se para os políticos não existe o resto do país, para o resto do país existem muito menos os políticos. E o que acontece dentro desse resto não político da nação? Acaso o militar se preocupa com o industrial, com o intelectual, o agricultor, ou operário? E o mesmo deve ser dito do aristocrata, do industrial, do operário com relação às demais classes sociais. Cada agremiação vive hermeticamente fechada em si mesma. Não sente a menor curiosidade pelo que acontece no recinto das demais. Rodam umas sobre as outras como órbitas estelares que se ignoram mutuamente. Polarizada cada qual em seus tópicos gremiais, não tem nem notícia dos que regem a alma do grupo vizinho. Ideias, emoções, valores criados dentro de um núcleo profissional ou de uma classe, não transcendem minimamente às restantes. O esforço titânico que se exerce em um ponto do volume social não é transmitido, nem obtém repercussão a alguns metros de distância, e morre onde nasce. É difícil imaginar uma sociedade menos elástica que a nossa; ou seja, é difícil imaginar algum conglomerado humano que seja menos uma sociedade. Podemos dizer de toda Espanha o que Calderón dizia de Madri em uma de suas comédias:

Está uma parede aqui
da outra mais distante
que Valladolid de Gante.