Deuses artificiais (no jardim de Satanás)

Excertos do “Poema do Haxixe” dos Paraísos Artificiais de Charles Baudelaire. Paris, 1860 d.C.

Tradução de Alexandre Ribondi

oferecimento

 

 

 

 

Exórdio

 

Minha cara amiga,

O bom-senso nos diz que as coisas da terra não existem inteiramente e que a verdadeira realidade só é encontrada nos sonhos. Para digerir a felicidade natural, como a artificial, é preciso, antes de tudo, ter a coragem de engoli-la e os que talvez merecessem a felicidade são justamente aqueles a quem a felicidade, tal como a concebem os mortais, sempre teve o efeito de um vomitivo.

Aos de espírito néscio parecerá estranho, e mesmo impertinente, que um quadro de volúpias seja dedicado a uma mulher, a mais comum das fontes das mais naturais volúpias. Entretanto, é evidente que, como o mundo natural penetra no espiritual, serve-lhe de alento, e concorre, desta forma, a operar este amálgama indefinível que chamamos de nossa individualidade, a mulher é o ser que projeta a mais negra sombra ou a mais clara luz em nossos sonhos. A mulher é fatalmente sugestiva: ela vive uma outra vida que não a sua; ela vive espiritualmente nas imaginações que ela própria povoa e fecunda.

. . .  Quanto a mim, tenho tão pouco gosto pelo mundo vivo que, semelhante às mulheres sensíveis e ociosas que enviam, comenta-se, pelo correio, suas confidências a amigos imaginários, com prazer escrevia para os mortos.

Mas não é a uma morta que dedico este pequeno livro; é a uma que, embora doente, está sempre ativa e viva em mim e que agora volta todos os seus olhares ao Céu, este local de todas as transformações. Pois, tanto quanto de uma droga perigosa, o ser humano goza do privilégio de poder tirar novos e sutis prazeres da dor, da catástrofe e da fatalidade.

 

O gosto pelo Infinito

 

Os que sabem observar-se a si mesmos e guardam a lembrança de suas impressões, os que souberam, como Hoffmann, construir seu barômetro espiritual, puderam por vezes notar, no observatório de seu pensamento, belas estações, dias felizes, minutos deliciosos. São dias em que o homem se levanta com um gênio jovial e vigoroso. Com suas pálpebras livres do sono que as selava, o mundo exterior se oferece a ele com um relevo bem-marcado, uma nitidez de contornos, uma riqueza de cores admiráveis. O mundo moral abre suas vastas perspectivas, cheias de novas claridades. O homem agradecido por esta beatitude, infelizmente rara e passageira, sente-se ao mesmo tempo mais artista e mais justo, mais nobre, para dizer tudo em uma só palavra… Seria o resultado de uma boa higiene e de um regime sensato? Esta é a primeira explicação que se oferece ao espírito, mas somos obrigados a reconhecer que constantemente esta maravilha, esta espécie de prodígio, produz-se como se fosse o efeito de uma força superior e invisível, exterior ao homem, após um período em que este abusou de suas faculdades físicas. Diremos que é a recompensa pela prece assídua e pelos ardores espirituais? É certo que uma elevação constante do desejo, uma tensão das forças espirituais em direção ao céu, seria o regime ideal para se criar esta saúde moral, tão deslumbrante e gloriosa; mas em virtude de que lei absurda ela se manifesta após culposas orgias da imaginação, após um abuso sofístico da razão, que são para o seu uso honesto e razoável o que as luxações são para a boa ginástica? Eis por que prefiro considerar esta condição anormal do espírito uma verdadeira graça, como um espelho mágico onde o homem é convidado a ver-se belo, isto é, tal qual deveria e poderia ser; uma espécie de exaltação angelical, um apelo à ordem, de forma cerimoniosa.

. . . É uma espécie de obsessão mas uma obsessão intermitente, da qual deveríamos tirar, se fôssemos sábios, a certeza de uma existência melhor e a esperança de alcançá-la pelo exercício diário de nossa vontade. Esta acuidade de pensamento, este entusiasmo dos sentidos e do espírito devem ter, em todos os tempos, aparecido ao homem como o primeiro dos bens; eis por que, considerando apenas a volúpia imediata, sem se preocupar em violar as leis de sua constituição, buscou na ciência física, na farmacêutica, nos mais grosseiros líquidos, nos perfumes mais sutis, em todos os climas e em todos os tempos, os meios de escapar, mesmo que por algumas horas, à sua morada de lobo e, como disse o autor de Lazare: “Tomar o paraíso de um só golpe”. Infeliz! Os vícios do homem, tão repletos de horror como supomos, contêm a prova (quando não fosse apenas a infinita expansão deles mesmos!) de seu gosto pelo infinito; acontece que é um gosto que sempre toma o caminho errado. Poderíamos entender em um sentido metafórico o provérbio vulgar: Todo caminho leva a Roma, e aplicá-lo ao mundo moral; tudo leva à recompensa ou ao castigo, duas formas de eternidade.

O espírito humano transborda de paixões; tem até para vender, para servir-me de uma outra locução trivial; mas este espírito maravilhoso, cuja depravação natural é tão grande quanto sua aptidão súbita, quase paradoxal, à caridade e às virtudes mais difíceis, é fecundo em paradoxos que lhe permitem empregar para o mal esta superabundância de paixões. Não acredita jamais vender-se por atacado. Esquece, em sua fatuidade, que ele escarnece de alguém mais astuto e mais forte que ele, e que o Espírito do Mal, mesmo quando lhe damos apenas um fio de cabelo, não demora em levar a cabeça inteira. Este senhor visível da natureza visível (falo do homem) quis, portanto, criar o paraíso pelas drogas, pelas bebidas fermentadas, semelhante a um maníaco que substituiria os móveis sólidos e os jardins verdadeiros por cenários pintados sobre tela e emoldurados. É nesta depravação do sentido do infinito que jaz, na minha opinião, a razão de todos os excessos culposos, desde a embriaguez solitária e concentrada do literato que, obrigado a procurar no ópio o alívio de uma dor física, e tendo desta forma descoberto uma fonte de prazeres mórbidos, fez disto pouco a pouco sua única higiene e como que o sol de sua vida espiritual, até a embriaguez mais repugnante dos suburbanos que, com o cérebro carregado de fogo e glória, rolam ridiculamente nos lixos da rua.

Entre as drogas mais próprias a criar o que chamo de Ideal artificial, se deixamos de lado os licores que levam rapidamente ao furor material e abatem a força espiritual, e os perfumes cujo uso excessivo, ao tornar a imaginação do homem mais sutil, esgota gradualmente suas forças físicas, as duas substâncias mais enérgicas, aquelas cujo emprego é mais cômodo e mais à mão, são o haxixe e o ópio. A análise dos efeitos misteriosos e dos prazeres mórbidos que estas drogas podem provocar, dos inevitáveis castigos que resultam de seu uso prolongado e, enfim, da própria imortalidade, implícita nesta perseguição de um falso ideal, constitui o objeto deste estudo. . .

 

O Teatro do Serafim

 

O que se experimenta? O que se vê? Coisas maravilhosas, não é? Espetáculos extraordinários? São belos? E terríveis? E perigosos ? Tais são as perguntas que frequentemente fazem, com uma curiosidade misturada a medo, os ignorantes aos adeptos. Diríamos uma impaciência infantil em saber, como a das pessoas que nunca saíram de casa quando se encontram diante de um homem que volta de países longínquos e desconhecidos. Eles imaginam a embriaguez do haxixe como um país prodigioso, um vasto teatro de prestidigitação e escamotagem onde tudo é milagroso e imprevisto. Há aí um preconceito, um desprezo completo e uma vez que, para os leitores e curiosos comuns, a palavra haxixe comporta a ideia de um mundo estranho e confuso, a expectativa de sonhos prodigiosos (seria melhor dizer alucinações, que são, aliás, menos frequentes do que imaginamos), eu chamarei a atenção em seguida para a importante diferença que separa os efeitos do haxixe do fenômeno do sono. No sono, esta viagem aventurosa de todas as noites, há algumas coisas de positivamente milagroso; é um milagre cuja pontualidade acabou com o mistério. Os sonhos do homem são de duas classes. Uns, cheios de vida cotidiana e suas preocupações, seus desejos, seus vícios, combinam-se de uma maneira mais ou menos estranha com os objetos percebidos durante o dia que indiscretamente se fixaram sobre a vasta tela da memória. Eis o sonho natural; é o próprio homem. Mas e a outra espécie de sonho? O sonho absurdo, imprevisto, sem relação nem conexão com o caráter, a vida e as paixões do adormecido? Este sonho, que chamarei de hieroglífico, representa evidentemente o lado sobrenatural da vida, e é justamente por ser absurdo que os antigos julgavam-no divino. Como é inexplicável pelas causas naturais, atribuíram-lhe uma causa exterior ao homem; e ainda hoje, sem falar dos oniromancistas, existe uma escola filosófica que vê nos sonhos deste gênero ora uma admoestação, ora um conselho; em suma, um quadro simbólico e moral gerado no próprio espírito do homem adormecido. É um dicionário que se precisa estudar, uma língua cuja chave podem obter os sábios.

Na embriaguez do haxixe, nada parecido. Não sairemos do sonho natural. A embriaguez, em toda sua duração, será apenas, é verdade, um imenso sonho, graças à intensidade das cores e à rapidez de concepções; mas guardará sempre a tonalidade particular do indivíduo. O homem quis sonhar, o sonho governará o homem; mas este sonho será o filho de seu pai. O ocioso esforçou-se por introduzir artificialmente o sobrenatural em sua vida e em seu pensamento; mas, após tudo e apesar da energia acidental de suas sensações, ele continua sendo o mesmo homem aumentado, o mesmo número elevado a uma altíssima potência. É subjugado; mas, para sua infelicidade, é ele mesmo que se subjuga, isto é, pela parte já dominante dele mesmo; quis ser anjo, tornou-se besta, momentaneamente muito poderosa, se todavia pudermos chamar de poder uma excessiva sensibilidade, sem governo que a modere ou explore.

Que os aristocratas e os ignorantes, curiosos de conhecer prazeres excepcionais, saibam, portanto, que não encontrarão no haxixe nada de miraculoso, absolutamente nada do natural excessivo. O cérebro e o organismo sobre os quais opera o haxixe oferecerão apenas seus fenômenos comuns, individuais, aumentados, é verdade, quanto ao número e à energia, mas sempre fiéis às suas origens. O homem não escapará à fatalidade de seu temperamento físico e moral: o haxixe será, para as impressões e os pensamentos familiares do homem, um espelho que aumenta, mas um simples espelho.

. . . [Falemos do] desenvolvimento regular da embriaguez. Após [uma] primeira fase de alegria infantil, há como que um apaziguamento. Mas novos acontecimentos se anunciam, em seguida, por uma sensação de frescor nas extremidades (que pode mesmo tornar-se um frio muito intenso em alguns indivíduos) e uma grande fraqueza de todos os membros; você tem, agora, mãos de manteiga e em sua cabeça, em todo o seu ser, há um estupor e uma estupefação embaraçantes. Seus olhos dilatam-se; estão como que lançados em todos os sentidos por um êxtase implacável. Seu rosto inunda-se de palidez. Seus lábios se contraem e entram em sua boca, com o movimento da respiração ofegante que caracteriza todo homem presa de grandes projetos, oprimido por vastos pensamentos ou que simplesmente toma fôlego. A garganta se fecha, por assim dizer. O palato é ressecado por uma sede a qual seria infinitamente bom satisfazer se as delícias da preguiça não fossem mais agradáveis e não se opusessem à menor alteração do corpo. De seu peito, escapam suspiros roucos e profundos, como se o seu velho corpo não pudesse mais suportar os desejos e atividades de sua alma nova. De vez em quando, um tremor atravessa seu corpo e o obriga a um movimento involuntário, como estes sobressaltos que, ao fim de um dia de trabalho ou durante uma noite agitada, precedem o sono definitivo….

 

O Homem-Deus

 

É tempo de deixar de lado toda esta prestidigitação e estas grandes marionetes nascidas da névoa dos cérebros infantis. Não temos de falar de coisas mais graves: modificações dos sentimentos humanos e, em uma palavra, a moral do haxixe?

Até o presente, fiz somente uma monografia sumária da embriaguez; limitei-me a acentuar os principais traços, sobretudo os materiais. Mas, o que é mais importante, creio, para o homem espiritual, é conhecer a ação do veneno sobre a parte espiritual do homem, isto é, o engrandecimento, a deformação e a exageração de seus sentimentos habituais e de suas percepções morais que apresentam, agora, em uma atmosfera excepcional, um verdadeiro fenômeno de refração.

… Creio ter falado suficientemente do aumento monstruoso do tempo e do espaço, duas ideias sempre conexas, mas que o espírito afronta então sem tristeza e sem medo. Ele olha com uma certa delícia melancólica através dos anos profundos e se entranha audaciosamente nas infinitas perspectivas. Já adivinhamos, presumo, que este aumento anormal e tirânico se aplica igualmente a todos os sentimentos e a todas as ideias; da mesma forma à benevolência; a este respeito, acredito ter dado uma boa amostra; da mesma forma ao amor. A ideia de beleza deve naturalmente apoderar-se de um vasto local no temperamento espiritual como supus. A harmonia, o equilíbrio das linhas, a eurritmia dos movimentos, surgem ao sonhador como necessidades, como deveres, não apenas para todos os seres da criação, mas para ele próprio, o sonhador, que se acha, neste período da crise, dotado de uma maravilhosa aptidão para compreender o ritmo imortal e universal. E se ao nosso fanático falta-lhe beleza pessoal não pensem que ele sofre por longo tempo por uma confissão a qual sente-se obrigado a fazer, nem que se vê como uma nota distoante do mundo de harmonia e beleza improvisado por sua imaginação. Os sofismas do haxixe são numerosos e admiráveis, tendendo, geralmente, ao otimismo e um dos principais, o mais eficaz, é o que transforma o desejo em realidade. Sem dúvida, acontece o mesmo em muitos casos da vida diária, mas aqui com muito mais ardor e sutileza! Além disto, como um ser tão bem-dotado para compreender a harmonia, uma espécie de sacerdote do Belo, poderia ser uma exceção e uma nódoa em sua própria teoria? A beleza moral e seu poder, a graça e suas seduções, a eloquência e suas proezas, todas estas ideias se apresentam logo como corretivos de uma feiura indiscreta, em seguida como consoladores, enfim, como aduladores perfeitos de um cetro imaginário.

. . . Já que vimos manifestar-se na embriaguez do haxixe uma benevolência singular aplicada até mesmo aos desconhecidos, uma espécie de filantropia feita antes de piedade que de amor (é aqui que se mostra o primeiro germe do espírito satânico que se desenvolverá de maneira extraordinária), mas que vai até o medo de afligir quem quer que seja, podemos adivinhar em que pode se transformar a sentimentalidade localizada, aplicada a uma pessoa querida, desempenhando ou tendo desempenhado um papel importante na vida moral do enfermo. O culto, a adoração, a prece, os sonhos de felicidade se projetam e se arremessam com a energia ambiciosa e o brilho de um fogo de artifício; como a pólvora e as matérias corantes do fogo ofuscam e se esvaem nas trevas. Não há combinação sentimental à qual não possa se prestar o submisso amor de um escravo do haxixe.

. . . Eis, portanto, meu homem suposto, o espírito de minha escolha chegado a este grau de prazer e serenidade, onde é levado a admirar-se a si mesmo. Toda contradição desaparece, todos os problemas filosóficos tornam-se límpidos, ou pelo menos assim parecem. Tudo é motivo de prazer. A plenitude de sua vida atual lhe inspira um orgulho desmesurado. Uma voz nele fala (infeliz! é a sua própria voz) e lhe diz: “Você tem agora o direito de se considerar superior a todos os homens; ninguém conhece ou poderia compreender tudo o que você pensa e sente; seriam mesmo incapazes de apreciar a benevolência que lhe inspiram. Você é um rei que os passantes desconhecem, e que vive na solidão de sua convicção: mas que importa? Você por acaso não possui este desprezo soberano que torna a alma tão boa?”

. . . Ninguém ficará surpreso se um pensamento final, supremo, brotar do cérebro do sonhador: “Tornei-me um Deus!” Se um grito selvagem, ardente, arrojar-se de seu peito com uma tal energia, um tal poder de projeção que, se as vontades e as crenças de um homem ébrio tivessem uma virtude eficaz, este grito reviraria os anjos disseminados nos caminhos do céu: “Sou um deus!” Mas logo este furacão de orgulho se transforma em uma temperatura de êxtase calmo, mudo, repousado, e a universalidade dos seres se apresenta colorida e como que iluminada por uma aurora sulfurosa. Se por acaso uma vaga lembrança penetra na alma deste deplorável feliz: não haveria um outro deus? estejam certos de que ele tomará uma atitude altiva diante daquele, discutirá suas vontades e o afrontará sem temor. Qual o filósofo francês que, para ridicularizar as modernas doutrinas alemãs, dizia: “Sou um deus que jantou mal?” Esta ironia não afligiria um espírito enlevado pelo haxixe e ele responderia tranquilamente: “É possível que tenha jantado mal, mas eu sou um deus”.

 

Moral

 

Mas o dia seguinte! o terrível dia seguinte! todos os órgãos relaxados, cansados, os nervos acalmados, os titilantes desejos de chorar, a impossibilidade de se dedicar a um trabalho contínuo, mostram-lhe cruelmente que você se entregou a um jogo proibido. A natureza medonha, despojada de sua iluminação da véspera, assemelha-se aos restos melancólicos de uma festa. A vontade, sobretudo, é atacada, de todas as faculdades a mais preciosa.

. . . É realmente supérfluo, após todas estas considerações, insistir no caráter imoral do haxixe. Mesmo que eu o compare ao suicídio, a um suicídio lento, a uma arma sempre sanguinolenta e sempre afiada, nenhum espírito razoável terá em que me censurar. Mesmo que eu o associe à feitiçaria, à magia, que querem, ao operarem sobre a matéria, e por meio de arcanos, cuja falsidade não pode ser melhor provada que sua eficiência, conquistar um domínio proibido ao homem ou permitido somente àquele considerado digno, nenhuma alma filosófica criticará esta comparação. Se a Igreja condena a magia e a feitiçaria, é que elas militam contra as invenções de Deus, suprimem o trabalho do tempo e querem tornar supérfluas as condições de pureza e moralidade; e que ela, a Igreja, apenas considera legítimos, verdadeiros, os tesouros ganhos pela boa intenção assídua. Chamamos de trapaceiro o jogador que achou um meio de jogar para ganhar infalivelmente; como denominaremos o homem que quer comprar, com alguns trocados, a felicidade e o gênio? É a própria infalibilidade do meio que constitui a imoralidade, como a suposta infalibilidade da magia lhe impõe seu estigma infernal. Seria necessário acrescentar que o haxixe, como todos os prazeres solitários, torna o indivíduo inútil aos homens e a sociedade supérflua para o indivíduo, levando-o a se admirar a si próprio sem cessar e empurrando-o, dia a dia, ao abismo luminoso onde ele admira sua face de Narciso?

E se ainda, à custa de sua dignidade, de sua honestidade e de seu 1ivre arbítrio, o homem pudesse tirar do haxixe grandes benefícios espirituais, fazer dele uma espécie de máquina de pensar, um instrumento fecundo? É uma indagação que ouvi sempre ser feita e a respondo. Primeiramente, como expliquei longamente, o haxixe não revela ao indivíduo nada além do próprio indivíduo. É verdade que este indivíduo é, por assim dizer, elevado ao cubo e levado ao extremo. E como é igualmente certo que a memória das impressões sobrevive à orgia, a esperança destes utilizadores não parece à primeira vista totalmente desprovida de razão. Mas rogarei que observem que os pensamentos, dos quais contam com tirar um partido tão grande, não são realmente tão belos quanto parecem em seus disfarces momentâneos e recobertos de ouropéis mágicos. Tais pensamentos estão mais para a terra que para o céu, e devem uma grande parte de sua beleza à agitação nervosa, à avidez com a qual o espírito se lança sobre eles. Em seguida, esta esperança é um círculo vicioso: admitindo por um instante que o haxixe suscita ou pelo menos aumenta o gênio, esquecem que é da natureza do haxixe diminuir a vontade e que, desta forma, dá de um lado o que tira do outro, isto é, a imaginação sem a faculdade de dela tirar proveitos. Enfim, há que sonhar, imaginando um homem correto e vigoroso o suficiente para se preservar esta alternativa, deste outro perigo, fatal, terrível, que é o de todos os hábitos. Todos se transformam logo em necessidade. Aquele que puder recorrer a um veneno para pensar, em breve não poderá mais pensar sem veneno. É possível supor o terrível destino de um homem cuja imaginação paralisada não soubesse mais funcionar sem o recurso do haxixe ou do ópio?

Nos estudos filosóficos, o espírito humano, à imitação da marcha dos astros, deve seguir uma curva que o devolva a seu ponto de partida. Concluir é fechar um círculo. No começo, falei deste estado maravilhoso onde o espírito do homem se encontrava, às vezes, lançado como que por uma graça especial; disse que ao ansiar incessantemente a reanimação de suas esperanças e a sua elevação ao infinito ele mostrava, em todos os países e em todos os tempos, um gosto frenético por todas as substâncias, mesmo que perigosas, e, ao exaltar sua personalidade, pudessem suscitar por um instante aos seus olhos este paraíso de segunda mão, objeto de todos os seus desejos e disse, enfim, que este espírito arrojado levado, sem o saber, até o inferno, confirmava assim a sua grandeza original. Mas o homem não está tão abandonado, tão privado de meios honestos para ganhar o céu, a ponto de ser obrigado a invocar as drogas e a feitiçaria, não é necessário vender sua alma para pagar as carícias embriagantes e a amizade das huris. Que paraíso é este comprado à custa de sua saúde eterna? Imagino um homem (um brâmane? um poeta? um filósofo cristão?) colocado no árduo Olimpo da espiritualidade, à sua volta as Musas de Rafael ou de Mantegna, para consolá-lo de seus longos jejuns e de suas preces assíduas, combinam-se nas mais nobres, olham-no com seus mais doces olhares e seus mais iluminados sorrisos; o divino Apolo, mestre em tudo saber (o de Francavilla, de Albert Durer, de Goltzius ou de qualquer outro, que importa? não há um Apolo para todo homem que o mereça?), acaricia com seu arco as cordas mais vibrantes. Abaixo dele, ao pé da montanha, nas sarças e na lama, a multidão dos humanos, o bando dos párias, simula os esgares do prazer e solta urros provocados pelas dentadas do veneno; e o poeta entristecido diz a si mesmo: “Estes infortunados que não jejuaram, nem oraram e que recusaram a redenção pelo trabalho, buscam na magia negra os meios de se elevarem, de uma só vez, à existência sobrenatural. A magia os engana e acende para eles uma falsa felicidade e uma falsa luz; enquanto nós, poetas e filósofos, regeneramos nossa alma pelo trabalho sucessivo e pela contemplação; pelo exercício assíduo da vontade e pela nobreza permanente da intenção, criamos para nosso uso um jardim de beleza verdadeira. Confiantes na promessa que diz que a fé remove montanhas, realizamos o único milagre cuja licença nos foi concedida por Deus!”

 

Edição: L&PM (1986)
Ilustração: Le Paradis. Óleo sobre tela de Marc Chagall. França, 1961. Coleção do Musee National Marc Chagall de Nice.