Demônios e endemoniados se encontram

Cenas do Capítulo VII (“Com os Nossos”) da Segunda Parte de Os Demônios de Fiodor Dostoievski. Moscou, 1872 d.C.

Tradução de Paulo Bezerra.

Na Rússia do final dos anos 1860 deflagrou-se uma quantidade incomum de tumultos causados por vanguardas estudantis inspiradas em ideias liberais, socialistas e revolucionárias importadas da Europa ocidental. Em 1869, um dos radicais mais fanáticos, Sergey Nechayev, autor do Catecismo de um Revolucionário, criou em Moscou uma sociedade secreta chamada “Retomada da Sociedade pelo Povo”, um braço da “União Revolucionária Mundial” da qual Nechayev se dizia representante mas que, na verdade, jamais existira. Após um dos correligionários expor num panfleto uma discordância inexpressiva com Nechayev, este e mais alguns camaradas o espancaram, estrangularam e executaram. Horrorizado com o incidente, Dostoievski se propôs a escrever um romance político sobre “o problema mais importante de nosso tempo”. Dois anos depois vinha a público Demônios, também traduzido como Os possuídos.

A trama gira em torno de Nikolai Vsevolodovich Stavróguin, um jovem de alta classe belo, forte, desinibido e refinado que, ao mesmo tempo, segundo o narrador, manifesta algo de repulsivo. Socialmente é confiante e cortês, mas seu comportamento é descrito em geral como “austero, pensativo e aparentemente distraído”. Há algum tempo ele mora na Suíça, enviado pela mãe desde que começara a mostrar atitudes provocadoras ante a sociedade de sua cidade natal numa província da Rússia. Junto à sua mãe vive, numa relação platônica de anos, um intelectual frustrado que fora preceptor de Stravóguin na infância e que é pai de um filho criado à distância. No início da estória a mãe retorna da Suíça alarmada com a irresponsabilidade financeira de Nikolai e apreensiva pelo seu compromisso de noivado com outra aristocrata local, Liza Tushina, já que aparentemente seu filho vinha tendo relações amorosas com uma jovem protegida sua, Lizavieta Nikoláievna. As coisas se complicam quando aparece uma deficiente física e mental que, segundo rumores, teria se casado com Stavróguin. No momento em que as três mulheres e as demais pessoas envolvidas se reúnem na casa da mãe para esclarecer o imbrólio, o mordomo anuncia a chegada de Stavróguin. Mas para a surpresa de todos surge um rapaz desconhecido que logo se revelará ser Piotr Stiepanovich Vierkhoviénski, o filho do velho preceptor Stiepan Vierkhoviénski. Enquanto ele domina a conversação, Nikolai Stavróguin adentra silenciosamente. A mãe exige uma resposta. Impassível, ele só a cumprimenta e se volta à moça demente dizendo com complacência que não é seu marido, só um devotado amigo e que a levará para casa. A discussão se reacende, vários conflitos vêm à tona, e ao fim, Chátov que estivera até então em silêncio, se ergue, fita Stavróguin nos olhos por um longo tempo e lhe dá um soco com toda a força. Stavróguin cai, se recupera, o toma pelos punhos, mas se contém, fixando calmamente Chátov nos olhos, até esse os abaixar e partir arrasado. Liza grita e colapsa desabando no chão.

A contenda vira assunto na cidade. Mas enquanto todos os envolvidos se recolhem, o jovem Vierkhoviénski se entrega ativamente à vida social, ao mesmo tempo em que busca envolver Stavróguin em algum tipo de projeto político radical que este, por sua vez, não nega nem consente, seguindo seus próprios planos. Associado a eles e a Chátov está também Kiríllov, que tem a intenção de cometer suicídio proximamente, não por desespero mas por alguma uns insólita convicção filosófica. À medida que os eventos se desdobram, descobrimos que o soco de Chátov se deu por ter compreendido o motivo da relação secreta entre Stavróguin e a moça deficiente, reagindo com raiva por aquilo que entendeu ser a “queda” de seu colega. De fato eles se casaram e, longe dos olhos de todos, Stavróguin sustenta a casa em que ela mora com o irmão, um militar licenciado bêbado e decadente, e, embora as reações dela sejam cada vez mais desequilibradas, chegando a ponto de agredi-lo num surto, ele promete que declarará publicamente que são casados e que passarão a viver juntos na Suíça. Piotr Vierkhoviénski, sempre buscando a sua cumplicidade, chega a lhe apresentar um marginal, Fiedka, que poderia eliminar a moça em troca de dinheiro, mas Stavróguin continua respondendo às suas investidas com ambiguidade. Paralelamente, Vierkhoviénski prossegue seus planos de infiltração e cooptação na sociedade local. Ele está particularmente empenhado em adquirir influência sobre a mulher do Governador da província, que nutre ambições liberais e cultiva um Salão Literário. Vierkhoviénski e seu colegas revolucionários se valem da nova legitimidade para disseminar um clima de cinismo e frivolidade na sociedade, enquanto na clandestinidade se entregam a jogos de sedução promíscuos, distribuem panfletos revolucionários e agitam tumultos entre o operariado. O grupo – alcunhado “o quinteto” – está especialmente ativo na organização do Baile de Gala Literário a ser promovido pela esposa do Governador para arrecadar doações para os pobres.

Certo dia, Vierkhoviénski faz uma visita a Kiríllov para exigir a promessa de que este cometerá o seu suicídio no momento oportuno para a causa revolucionária. Ele convida Kiríllov e logo depois Chátov e por fim Stávroguin a participarem à uma reunião da célula local da organização revolucionária naquela noite. O encontro é na casa de Virguinski, um funcionário público que, junto com sua mulher, a parteira Arina Prókhorovna Virguínskaia, se professa adepto de ideias progressistas. Sob o pretexto do aniversário do anfitrião – ou seja, o dia do seu santo padroeiro –, encontram-se uns quinze convidados, nas palavras do narrador “a flor do liberalismo mais nitidamente vermelho de nossa antiga cidade”, e embora a maioria não soubesse exatamente a razão do convite, todos, cada um com sua versão, estimavam Vierkhoviénski como um emissário eminente de uma Sociedade Revolucionária Internacional. Entre os convidados, além de três associados de Vierkhoviénski, Lipútin, Liámchin e Chigalióv, está a filha recém chegada do casal, “estudante e niilista”; um major da ativa que sem saber da reunião (apesar de simpático aos grupos liberais) aparecera só para cumprimentar o aniversariante; dois ou três professores secundários, um deles coxo; uns dois ou três oficiais; um “seminarista vadio”; o filho do prefeito e um estudante de dezoito anos que já se assumia como chefe de um “grupo de conspiradores” ginasianos. Enquanto estas pessoas estavam envolvidas em ruidosas altercações por divergências ideológicas, chegam Stavróguin e Vierkhoviénski e faz-se um súbito silêncio.      

 

Vierkhoviénski deixou-se cair com visível displicência numa cadeira em uma ponta da mesa, quase sem cumprimentar ninguém. Estava com cara de nojo e quase arrogante. Stavróguin fez uma reverência cortês, mas, apesar de todos estarem apenas a aguardá-los, os dois fingiram quase não notá-los, como se obedecessem a um comando. A anfitriã dirigiu-se severamente a Stavróguin mal este se sentou.

– Stavróguin, aceita um chá?

– Pode servir – respondeu.

­– Chá para Stavróguin – comandou para a moça que estava servindo.

– E você, quer? (Essa pergunta já era para Vierkhoviénski.)

– Sirva, é claro, isso lá é pergunta que se faça a uma visita? Quero também creme, em sua casa sempre servem uma tremenda porcaria em vez de chá; até mesmo quando há aniversário.

– Quer dizer que você também reconhece o dia do santo? – riu de repente a estudante. – Estávamos falando sobre isso.

– Isso é antiquado – rosnou o ginasiano do outro extremo da mesa.

– O que é antiquado? Desprezar as superstições, mesmo as mais ingênuas, não é antiquado, mas, ao contrário, é uma coisa nova até o dia de hoje, para vergonha geral – declarou de chofre a estudante, projetando-se da cadeira para a frente. – Não existem superstições ingênuas – acrescentou com obstinação.

– Eu quis apenas dizer – inquietou-se terrivelmente o ginasiano – que as superstições, embora sejam evidentemente coisa antiga e precisem ser exterminadas, no que tange ao dia do santo, todos sabem que é uma tolice e uma coisa muito antiquada para que se perca o precioso tempo com elas, tempo que, aliás, o mundo todo já perdeu, de modo que seria possível usar a espirituosidade com coisas mais necessárias…

– Você mastiga demais, não se entende nada – gritou a estudante.

– Acho que qualquer um tem direito à palavra em igualdade com o outro, e se eu quero expor minha opinião como qualquer outra pessoa, então…

– Ninguém está lhe tirando o direito à palavra – cortou rispidamente a própria anfitriã –, pedem apenas que não mastigue tanto, porque ninguém consegue entendê-lo.

– Entretanto permita-me observar que a senhora está me faltando com o respeito; se eu não consegui concluir meu pensamento, não foi por falta de ideias, mas antes por excesso de ideias… – murmurou o ginasiano quase em desespero, e atrapalhou-se por completo.

– Se não sabe falar então fique calado – retrucou a estudante.

O ginasiano chegou até a saltar da cadeira.

– Eu quis apenas declarar – gritou quase ardendo de vergonha e temendo olhar ao redor – que você só se meteu a bancar a inteligente porque o senhor Stavróguin acabou de entrar; é isso aí!

– Sua ideia é sórdida e imoral e exprime toda a insignificância da sua evolução. Peço que não se dirija mais a mim – matraqueou a estudante.

– Stavróguin – começou a anfitriã –, antes da sua chegada aqui andaram falando aos gritos a respeito dos direitos da família: foi esse oficial (apontou com um sinal de cabeça o major seu parente). É claro que não vou incomodá-lo com uma tolice tão antiga, já resolvida há muito tempo. Mas, não obstante, de onde poderiam advir os direitos e as obrigações da família na forma desse preconceito como hoje são concebidos? Eis a pergunta. Qual é a sua opinião?

– Como de onde poderiam advir? – Stavróguin repetiu a pergunta.

– Quer dizer, sabemos, por exemplo, que o preconceito de Deus vem do trovão e do relâmpago – voltou subitamente à carga a estudante, quase fazendo seus olhos saltarem sobre Stavróguin –, sabe-se demais que os homens primitivos, por medo do trovão e do relâmpago, endeusaram um inimigo invisível por se sentirem fracos diante dele. Mas de onde vem o preconceito com a família? De onde pôde advir a própria família?

– Isso não é exatamente a mesma coisa… – quis detê-la a senhoria.

– No meu entender a resposta a essa questão não é simples – respondeu Stavróguin.

– Como assim? – empinou-se a estudante.

Mas no grupo de professores ouviu-se um risinho que encontrou eco imediatamente em Liámchin e no ginasiano, no outro extremo da mesa, e em seguida ouviu-se a gargalhada roufenha também do major.

– Você poderia escrever um vaudeville – observou a anfitriã a Stavróguin.

– Isso depõe demais contra a sua dignidade, não sei como o senhor se chama – cortou a estudante com decidida indignação.

– E tu não metas o bedelho! – deixou escapar o major. – Tu és uma senhorita, deves te comportar com modéstia, mas parece que estás em brasa.

– Faça o favor de ficar calado e não se atreva a me tratar com essa familiaridade e essas comparações obscenas. É a primeira vez que o vejo e não quero saber de nenhum parentesco.

– Ora, mas acontece que sou teu tio; eu te carreguei nos braços quando eras uma criança de colo.

– Que me importa quem o senhor tenha carregado? Não lhe pedi para me carregar, quer dizer que o senhor mesmo sentia prazer com isso, seu oficial descortês. E permita-me observar: se não me tratar como cidadã, não se atreva a me tratar por tu, eu o proíbo de uma vez por todas.

– Veja, são todos assim! – o major deu um murro na mesa, dirigindo-se a Stavróguin, que estava sentado à sua frente. – Não, com licença, gosto do liberalismo e da atualidade, e gosto de ouvir conversas inteligentes, só que de homens, previno. De mulheres, dessas avoadas de hoje, não, isso é o meu tormento! Fica quieta no teu canto – gritou para a estudante, que se levantava de um ímpeto da cadeira. – Não, eu também peço a palavra, estou ofendido.

– Só está atrapalhando os outros, e você mesmo não sabe falar – rosnou indignada a anfitriã.

– Não, vou me manifestar – excitava-se o major, dirigindo-se a Stavróguin. – Conto com o senhor, Stavróguin, como um homem que acabou de entrar, embora não tenha a honra de conhecê-lo. Sem os homens elas morrerão como moscas, eis minha opinião. Toda a questão feminina que elas levantam é apenas falta de originalidade. Eu lhe asseguro que toda essa questão feminina foram os homens que inventaram para elas, por tolice, jogando o problema nas próprias costas – graças a Deus que não sou casado! Não variam em nada, não inventam um simples bordado; são os homens que inventam os bordados por elas! Veja, eu a carreguei nos braços, dancei mazurca com ela quando ela estava com dez anos; ela aparece aqui hoje, precipito-me naturalmente para abraçá-la e, ao articular a segunda palavra, já me diz que Deus não existe. Que dissesse ao menos na terceira, não na segunda palavra, mas é apressada! Bem, suponhamos que as pessoas inteligentes não acreditem, só que isso é porque são inteligentes, mas tu, uma bolha, o que é que entendes de Deus? Ora, foi um estudante que te industriou, mas se tivesse te ensinado a acender lamparinas diante de ícones tu as acenderias.

– Tudo o que o senhor está dizendo é mentira, o senhor é um homem muito mau, acabei de traduzir convincentemente a sua inconsistência – respondeu a estudante com desdém e como que desprezando uma longa explicação com semelhante homem. – Há pouco eu lhe dizia precisamente que todos nós fomos ensinados pelo catecismo: “Se honrares pai e mãe, viverás muito e receberas riquezas”. Isso está no décimo mandamento. Se Deus achou necessário prometer recompensa pelo amor, então esse seu Deus é amoral. Foi com essas palavras que acabei de lhe demonstrar, e não com a segunda palavra, porque o senhor proclamou os seus direitos. De quem é a culpa se o senhor é um bronco e até agora não entendeu nada? O senhor está ofendido e furioso; isso decifra o enigma da sua geração.

– Paspalhona! – proferiu o major.

– E o senhor é imbecil!

– Vai insultando!

– Com licença, Kapiton Maksímovitch, o senhor mesmo disse que não acreditava em Deus – piou Lipútin do outro extremo da mesa.

– Que importa o que eu tenha dito, eu sou outra história! Talvez eu acredite, só que não inteiramente. Mesmo que eu não acredite inteiramente, ainda assim não afirmo que se deva fuzilar Deus. Todos os poemas dizem que o hussardo vive bebendo e farreando; bem, eu posso ter bebido, mas, acreditem ou não, pulava da cama de noite só de meias e dava de me benzer diante do ícone pedindo que Deus me mandasse fé, porque nem naquela época eu conseguia ter sossego e vivia a me perguntar: Deus existe ou não? Em que apuros isso me deixava! De manhã, é claro, eu me divertia, e novamente era como se a fé desaparecesse; aliás, de um modo geral observei que de dia sempre se perde um pouco a fé.

– Vocês não teriam um baralho? – perguntou Vierkhoviénski à anfitriã, escancarando a boca num bocejo.

– Endosso demais, demais a sua pergunta! – disparou a estudante, corando de indignação com as palavras do major.

– Perde-se um tempo precioso ouvindo conversas tolas – cortou a anfitriã e olhou para o marido com ar exigente.

A estudante encolheu-se:

– Eu queria comunicar à reunião o sofrimento e o protesto dos estudantes, e uma vez que estamos perdendo tempo com conversas amorais…

– Aqui não há nada de moral nem de amoral! – não se conteve o ginasiano e retrucou em cima da bucha, mal a estudante começou a falar.

– Isso, senhor ginasiano, eu já sabia muito antes que lhe ensinassem.

– Mas eu afirmo – enfureceu-se o outro – que você veio criança de Petersburgo com o fim de ilustrar a todos nós quando nós mesmos já estamos a par das coisas. Quanto ao mandamento: “honrarás pai e mãe”, que você foi incapaz de citar e é amoral, já se conhecia na Rússia desde os tempos de Bielínski.

– Será que isso algum dia vai ter fim? – pronunciou categoricamente madame Virguínskaia para o marido. Na condição de anfitriã, ela corava diante da insignificância das conversas, particularmente depois de ter observado alguns sorrisos e inclusive perplexidade entre os hóspedes que ali estavam pela primeira vez.

– Senhores – súbito Virguinski levantou a voz -, se alguém deseja levantar alguma questão mais diretamente relacionada ao assunto ou tem algo a declarar, proponho que comece sem perda de tempo.

 

Segue-se mais uma altercação, dessa vez sobre quem deveria presidir a reunião. Em meio à confusão, o próprio Virguinski acaba por ser eleito.

 

– Senhores, sendo assim – começou o eleito Virguinski –, eu apresento a proposta que fiz há pouco: se alguém deseja levantar alguma questão mais diretamente relacionada ao assunto ou tem algo a declarar, que comece sem perda de tempo.

Silêncio geral. Todos os olhares tornaram a voltar-se para Stavróguin e Vierkhoviénski.

– Vierkhoviénski, você não tem nada a declarar? – perguntou diretamente a anfitriã.

– Rigorosamente nada – espreguiçou-se na cadeira, bocejando. – Aliás, eu queria uma taça de conhaque.

– Stavróguin, você não deseja?

– Obrigado, eu não bebo.

– Não estou perguntando se você deseja beber ou não, não estou falando de conhaque.

– Falar sobre o quê? Não, não quero.

– Vão trazer o seu conhaque – respondeu ela a Vierkhoviénski.

Levantou-se a estudante. Ela já fizera várias investidas.

– Vim aqui falar dos sofrimentos dos estudantes infelizes, e de como incitá-los ao protesto em toda parte…

Mas interrompeu-se; no outro extremo da mesa já aparecia outro concorrente, e todos os olhares se voltaram para ele. Chigalióv, o de orelhas compridas, levantou-se lentamente, carrancudo e com olhar sombrio, e num gesto melancólico pôs na mesa um caderno grosso e escrito em letra extremamente miúda. Estava em pé e calado. Muitos olharam desconcertados para o caderno, mas Lipútin, Virguinski e o professor coxo pareciam satisfeitos com alguma coisa.

– Peço a palavra – declarou Chigalióv com ar sorumbático porém firme.

– Tem a palavra – resolveu Virguinski.

O orador sentou-se, ficou meio minuto calado e pronunciou com voz imponente:

– Senhores…

– Aí está o conhaque – cortou em tom enojado e desdenhoso a parenta que servia o chá; fora buscar o conhaque e agora o punha diante de Vierkhoviénski com a taça que trouxe na ponta dos dedos, sem bandeja nem prato.

O orador, interrompido, parou com dignidade.

– Não é nada, continue, não estou ouvindo – gritou Vierkhoviénski enchendo sua taça.

– Senhores, recorrendo à atenção de todos – recomeçou Chigalióv – e, como verão em seguida, pedindo a sua ajuda em um ponto de importância primordial, é meu dever fazer algumas observações preliminares.

– Arina Prókhorovna, você não me arranjaria uma tesoura? – perguntou subitamente Piotr Stiepánovitch.

– Para que você quer tesoura? – ela arregalou os olhos para ele.

– Esqueci-me de cortar as unhas, há três dias venho tentando – proferiu ele com a maior tranquilidade, examinando as unhas compridas e sujas.

Arina Prókhorovna inflamou-se, mas a donzela Virguínskaia pareceu gostar.

– Parece que eu a vi aqui na janela. – Ela se levantou da mesa, foi à janela, encontrou a tesoura e no mesmo instante a trouxe. Piotr Stiepánovitch sequer a olhou, pegou a tesoura e começou a mexer nela.

Arina Prókhorovna compreendeu que isso era uma atitude autêntica e envergonhou-se de sua suscetibilidade. Os presentes de entreolharam em silêncio. O professor coxo observava Vierkhoviénski com raiva e inveja. Chigalióv prosseguiu:

– Depois de empenhar minhas energias no estudo da organização social da sociedade do futuro, que substituirá a atual, convenci-me de que todos os criadores dos sistemas sociais, desde os tempos mais antigos até o nosso ano, foram sonhadores, fabulistas, tolos, que se contradiziam e não entendiam nada de ciências naturais nem desse estranho animal que se chama homem. Platão, Rousseau, Fourier são colunas de alumínio – tudo isso só serve para pardais, e não para a sociedade humana. Mas como a forma social do futuro é necessária precisamente agora, quando finalmente nos preparamos para agir sem mais vacilações, então proponho meu próprio sistema de organização do mundo. Ei-lo! – bateu no caderno. – Gostaria de expor meu livro aos presentes na forma mais sumária possível; mas vejo que ainda é necessário acrescentar uma infinidade de explicações orais, e por isso toda a exposição vai requerer pelo menos dez serões, de acordo com o número de capítulos do livro. (Ouviu-se um riso.) Além disso, anuncio de antemão que o meu sistema não está concluído. (Novo riso.) Enredei-me nos meus próprios dados, e minha conclusão está em franca contradição com a ideia inicial da qual eu parto. Partindo da liberdade ilimitada, chego ao despotismo ilimitado. Acrescento, não obstante, que não pode haver nenhuma solução da fórmula social a não ser a minha.

O riso se intensificava cada vez mais, porém quem ria eram os mais jovens e, por assim dizer, pouco iniciados. Os rostos da anfitriã, de Lipútin e do professor coxo estampavam certo enfado.

– Se o senhor mesmo não conseguiu moldar o seu sistema e chegou ao desespero, então o que estamos fazendo aqui? – observou cautelosamente um oficial.

– Tem razão, senhor oficial da ativa – virou-se bruscamente para ele Chigalióv –, e ainda mais porque empregou a palavra “desespero”. Sim, cheguei ao desespero; não obstante, tudo o que está exposto em meu livro é insubstituível e não há outra saída; ninguém vai inventar nada. É por isso que me apresso, sem perda de tempo, a convidar toda a Sociedade a expor sua opinião após ouvir a exposição do meu livro durante dez serões. Se seus membros não quiserem me ouvir, então que nos dispersemos logo no início – os homens para o seu serviço público, as mulheres para as suas cozinhas, porque, depois de terem rejeitado meu livro, não encontrarão outra saída. Ne-nhu-ma! Se deixarem escapar o momento, sairão prejudicados, pois mais tarde voltarão inevitavelmente ao mesmo tema.

Começou uma agitação: “O que será ele, um louco?” – ouviram-se vozes.

– Quer dizer que toda a questão se resume ao desespero de Chigalióv – concluiu Liámchin –, mas a questão essencial é esta: estar ou não estar ele em desespero?

– A proximidade de Chigalióv com o desespero é uma questão pessoal – declarou o ginasiano.

– Proponho votar o seguinte: até que ponto o desespero de Chigalióv diz respeito à causa comum e, ao mesmo tempo, vale a pena ouvi-lo ou não? – resolveu o oficial em tom alegre.

– Não se trata disso – interveio finalmente o coxo. Em geral, ele falava com um riso meio debochado, de sorte que talvez fosse difícil entender se estava sendo sincero ou brincando. – Não se trata disso. O senhor Chigalióv é dedicado demais ao seu objetivo, além de excessivamente modesto. Conheço o seu livro. Ele propõe, como solução final do problema, dividir os homens em duas partes desiguais. Um décimo ganha liberdade de indivíduo e o direito ilimitado sobre os outros nove décimos. Estes devem perder a personalidade e transformar-se numa espécie de manada e, numa submissão ilimitada, atingir uma série de transformações da inocência primitiva, uma espécie de paraíso primitivo, embora, não obstante, continuem trabalhando. As medidas que o autor propõe para privar de vontade os nove décimos dos homens e transformá-los em manada através da reeducação de gerações inteiras são excelentes, baseiam-se em dados naturais e são muito lógicas. Podemos discordar de algumas conclusões, mas é difícil duvidar da inteligência e dos conhecimentos do autor. É uma pena que a condição dos dez serões seja absolutamente incompatível com as circunstâncias, senão poderíamos ouvir muita coisa curiosa.

– Será que está falando sério? – perguntou ao coxo madame Virguínskaia até meio alarmada. – Esse homem, por não saber o que fazer da humanidade, transforma seus nove décimos em escravos? Há muito tempo eu desconfiava dele.

– Quer dizer, a senhora está falando do seu irmão? – perguntou o coxo.

– Parentesco? Estará debochando de mim?

– Além disso, trabalhar para aristocratas e obedecer a eles como deuses é uma infâmia! – observou furiosa a estudante.

– Eu não proponho uma infâmia, mas o paraíso, o paraíso terrestre, e não pode haver outro na terra – concluiu Chigalióv em tom imperioso.

– Pois eu – bradou Liámchin –, em vez do paraíso pegaria esses nove décimos da humanidade, se não tivesse onde metê-los, e os mandaria para os ares com uma explosão, e deixaria apenas um punhado de pessoas instruídas, que passariam a levar a vida com base na ciência.

– Só um palhaço pode falar assim! – inflamou-se a estudante.

– Ele é um palhaço, mas é útil – murmurou-lhe madame Virguínskaia.

– E talvez fosse a melhor solução do problema! – virou-se Chigalióv para Liámchin com entusiasmo. – Você, é claro, nem sabe que coisa profunda conseguiu dizer, senhor alegre. Mas, como sua ideia é quase inexequível, então temos de nos limitar ao paraíso terrestre, se é que foi assim que você o chamou.

– Mas que grandessíssima asneira! – como que escapou dos lábios de Vierkhoviénski. Aliás, ele continuava cortando as unhas com absoluta indiferença e sem levantar a vista.

– Por que asneira? – replicou o coxo incontinente, como se estivesse esperando a primeira palavra dele para aferrar-se à discussão. – Por que precisamente asneira? O senhor Chigalióv é, em parte, um fanático do humanitarismo; mas procure lembrar-se de que Fourier, Cabet e até o próprio Proudhon, em particular, apresentaram uma infinidade de pré-soluções as mais despóticas e as mais fantasiosas para esse problema. O senhor Chigalióv pode até estar resolvendo a questão de um modo bem mais sensato que eles. Eu lhe asseguro que depois de ler o livro dele é quase impossível não concordar com algumas coisas. É possível que ele tenha se afastado do realismo menos que os outros e que seu paraíso terrestre seja quase de verdade, seja o mesmo pelo qual a sociedade humana tem suspirado depois de perdê-lo, se é que algum dia existiu.

– Eu bem que sabia que toparia com isso – tornou a murmurar Vierkhoviénski.

– Com licença – o coxo se exaltava cada vez mais –, as conversas e juízos sobre a organização social do futuro são quase uma necessidade premente de todos os homens pensantes da atualidade. Foi só com isso que Herzen se preocupou a vida inteira. Bielínski, como sei de fonte fidedigna, passava tardes inteiras com seus amigos debatendo e resolvendo de antemão os detalhes mais ínfimos, de cozinha, por assim dizer, da futura organização social.

– Uns chegam até a enlouquecer – observou de repente o major.

– Mesmo assim, é possível chegarmos a algum tipo de acordo em vez de ficarmos aqui sentados e calados com ar de ditadores – sibilou Lipútin, como se finalmente se atrevesse a partir para o ataque.

– Eu não disse que me referi a Chigalióv quando afirmei que era tolice – mastigou Vierkhoviénski. – Vejam, senhores – ergueu levemente a vista –, a meu ver todos esses livros, Fourier, Cabet, todos esses “direitos ao trabalho”, esse “pensamento de Chigalióv”, tudo isso parece romances que podem ser escritos aos milhares. Um passatempo estético. Compreendo que os senhores sintam tédio aqui nesta cidadezinha, por isso se lançam ao manuscrito.

– Com licença – o coxo teve um tique na cadeira –, embora sejamos provincianos e por isso, é claro, dignos de pena, entretanto sabemos que por enquanto ainda não aconteceu no mundo nada de tão novo que nos fizesse chorar, que não tenhamos percebido. Vejam, através de vários panfletos de feitio estrangeiro, lançados às escondidas por aqui, propõe-se que cerremos fileiras e formemos grupos com o único objetivo de provocar a destruição geral, pretextando que é impossível curar o mundo todo por mais que tratemos dele, mas, cortando radicalmente cem milhões de cabeças, facilitaremos a nossa parte e tornaremos possível a transposição do pequeno fosso com mais segurança. A ideia é magnífica, não há dúvida, mas é no mínimo tão incompatível com a realidade quanto o “pensamento de Chigalióv”, ao qual o senhor acabou de se referir com tanto desdém.

– Sim, mas não vim aqui para discutir – Vierkhoviénski falhou consideravelmente ao dizer isso e, como se não notasse absolutamente a falha, trouxe a vela para perto de si, desejando mais claridade.

– É uma pena, uma grande pena que o senhor não tenha vindo para discutir, e é uma grande pena que neste momento esteja tão ocupado com a sua toalete.

– E o que o senhor tem a ver com a minha toalete?

– É tão difícil cortar cem milhões de cabeças quanto reformar o mundo com propaganda. Talvez seja até mais difícil, particularmente se for na Rússia – tornou a arriscar Lipútin.

– É na Rússia que hoje se depositam as esperanças – pronunciou o oficial.

– Ouvimos falar que se depositam – replicou o coxo. – Sabemos que há um index secreto apontado para a nossa bela pátria como o país mais capaz de cumprir o grandioso objetivo. Mas vejam só uma coisa: caso se alcance gradualmente o objetivo com propaganda, hei de obter ao menos alguma recompensa pessoal, mesmo que seja jogar conversa fora de maneira agradável e receber de meus superiores uma patente pelos serviços prestados à causa social. Depois, numa solução rápida que passe pelos cem milhões de cabeças, qual será propriamente a minha recompensa? A gente se mete a fazer propaganda e vai ver que ainda nos arrancam a língua.

– A sua forçosamente irão arrancar – disse Vierkhoviénski.

– Vejam. Como, nas circunstâncias mais favoráveis, não se vai terminar essa carnificina antes de cinquenta anos, bem, de trinta, porque eles não são carneiros e talvez não se deixem degolar, não será melhor pegar os seus trastes, mudar-se para umas ilhas sossegadas além dos mares tranquilos e lá fechar os olhos serenamente? Acredite – bateu significativamente com os dedos na mesa –, com essa propaganda o senhor só vai conseguir a emigração, nada mais!

Concluiu com ar triunfal. Era uma cabeça forte da província. Lipútin ria de um jeito traiçoeiro, Virguinski ouvia com certo desânimo, todos os outros observavam a discussão com uma atenção extraordinária, sobretudo as mulheres e os oficiais. Todos compreendiam que o agente dos cem milhões de cabeças havia sido encostado contra a parede e esperavam o desfecho.

– O senhor disse bem – falou Vierkhoviénski com indolência, ainda mais indiferente do que antes, até com uma espécie de tédio. – Emigrar é uma boa ideia. Mas, não obstante, apesar de todas as notórias desvantagens que pressente, a cada dia que passa aparecem mais soldados para a causa comum, de sorte que o senhor é até dispensável. Aqui, meu caro, uma nova religião está substituindo a antiga, por isso estão aparecendo tantos soldados, e a causa é grande. Mas o senhor vai emigrar! E, sabe, eu lhe sugiro Dresden e não as tais ilhas sossegadas. Em primeiro lugar, essa cidade nunca viu epidemia nenhuma, e, como o senhor é um homem evoluído, de repente tem medo da morte; em segundo, fica perto da fronteira russa, de sorte que pode receber mais rápido as rendas provenientes da amável pátria; em terceiro, possui os chamados tesouros das artes, e o senhor é um homem estético, ex-professor de literatura, parece; bem, e por fim tem em si sua própria Suíça em miniatura, o que já serve para a inspiração poética, porque seguramente o senhor faz versos. Numa palavra, um tesouro numa tabaqueira.

Todos se moveram; mexeram-se particularmente os oficiais. Mais um instante e todos começariam a falar ao mesmo tempo. Mas o coxo se precipitou, irritado, para morder a isca:

– Não, pode ser que nós ainda não estejamos deixando a causa comum! É preciso entender isso…

– Como assim, por acaso o senhor entraria para um quinteto se eu lhe propusesse? – deixou escapar Vierkhoviénski, e pôs a tesoura na mesa.

Todos pareceram estremecer. O homem enigmático abriu-se com excessiva precipitação. Até falou diretamente no “quinteto”.

– Qualquer pessoa se sente honrada e não se desvia da causa comum – crispou-se o coxo –, porém…

– Não, aqui não cabe nenhum porém – interrompeu Vierkhoviénski de modo imperioso e brusco. – Senhores, declaro que preciso de resposta direta. Compreendo por demais que, tendo chegado aqui e reunido todos os senhores, eu lhes devo explicações (mais uma revelação inesperada), mas não posso dar nenhuma antes de saber o que os senhores pensam. Deixando as conversas de lado – porque não vamos passar mais trinta anos jogando conversa fora como passaram esses últimos trinta anos –, pergunto o que os senhores preferem: o caminho lento da escrita de romances sociais e da pré-solução burocrática dos destinos humanos, no papel, com mil anos de antecedência, enquanto o despotismo vai comendo os bons bocados que voam para as bocas dos senhores e, no entanto, os senhores mesmos deixam escapam, ou os senhores mantêm a decisão da ação urgente, qualquer que seja, mas que finalmente desatará as nossas mãos e deixará que a sociedade humana construa ela mesma, com ampla liberdade, sua organização social, já de fato e não no papel? Ouve-se gritar:

“Cem milhões!”. Isso ainda pode ser uma metáfora, mas por que temer esse número se, a perdurar os lentos sonhos no papel, o despotismo vai devorar não cem, mas quinhentos milhões de cabeças num espaço qualquer de cem anos? Observem ainda que o doente incurável não vai ser mesmo curado, quaisquer que sejam as receitas que lhe venham a prescrever no papel, mas, ao contrário, se a coisa demorar, ele acabará apodrecendo de tal forma que nos contaminará, estragará todas as forças frescas com as quais ainda podemos contar, de sorte que nós todos acabaremos arruinados. Concordo plenamente que deitar falação à moda liberal é eloquente e muitíssimo agradável e que agir sai meio caro… Aliás, não sei falar; trouxe para cá uns comunicados, e por isso peço a toda a respeitosa assistência não propriamente que vote, mas declare franca e simplesmente o que prefere: o passo de tartaruga na lama ou atravessar a lama a todo vapor?

– Sou positivamente pela travessia a todo o vapor! – gritou entusiasmado o ginasiano.

– Eu também – interveio Liámchin.

– É claro que a escolha não deixa dúvida – murmurou um oficial, depois outro, depois mais alguém.

 

Mais uma vez as altercações dominam o ambiente. Vierkhoviénski insiste que está ali para exigir de cada um um compromisso, que no entanto nunca formula de maneira categórica.  

 

– Senhores. . . . – continuou Vierkhoviénski –. . . . quem mais se comprometeu entre todos fui eu, e por isso proponho que respondam a uma pergunta, evidentemente se quiserem. Fiquem plenamente à vontade.

– Que pergunta? que pergunta? – gritaram todos.

– É uma pergunta para que fique claro se devemos permanecer juntos ou cada um vai pegar o seu chapéu e sair para o seu canto.

– A pergunta, a pergunta.

– Se cada um de nós soubesse que se tramava um assassinato político, denunciaria, prevendo todas as consequências, ou ficaria em casa aguardando os acontecimentos?  Neste caso, as opiniões podem ser diferentes. A resposta à pergunta dirá com clareza se devemos nos dispersar ou permanecer juntos, e nem de longe só por esta noite. Permita-me que lhe pergunte primeiro – voltou-se para o coxo.

– Por que primeiro a mim?

– Porque o senhor começou tudo. Faça o favor de não se esquivar, a astúcia não vai ajudar. Aliás, como quiser; a vontade é toda sua.

– Desculpe, mas semelhante pergunta é até ofensiva.

– Ah, não, não poderia ser mais preciso?

– Nunca fui agente da polícia secreta – crispou-se ainda mais o outro.

– Faça o favor, seja mais preciso, não protele.

O coxo estava tão zangado que até deixou de responder. Calado, fixava por baixo dos óculos um olhar furioso no torturador.

– Sim ou não? Denunciaria ou não denunciaria? – gritou Vierkhoviénski.

– É claro que não denunciaria! – gritou o coxo duas vezes mais forte.

– Ninguém denunciaria, é claro, ninguém – ouviram-se muitas vozes.

– Permita-me perguntar-lhe, senhor major, denunciaria ou não denunciaria? – continuou Vierkhoviénski. – Observe, eu estou lhe perguntando de propósito.

– Não denunciaria.

– Bem, mas se soubessem que uma pessoa queria matar e assaltar outra, um simples mortal, o senhor denunciaria, preveniria?

– É claro, só que este é um caso civil, mas estamos falando de delação política. Nunca fui agente da polícia secreta.

– Aliás, ninguém aqui jamais foi – ouviram-se vozes novamente. – A pergunta é inútil. Todos têm a mesma resposta. Aqui não há delatores.

– Por que aquele senhor está se levantando? – gritou a estudante.

– É Chátov. Por que você se levantou, Chátov? – gritou a anfitriã.

Chátov realmente se levantara; segurava o chapéu na mão e olhava para Vierkhoviénski. Parecia que queria lhe dizer algo, mas vacilava. Tinha o rosto pálido e tomado de fúria, mas se conteve, não disse uma palavra e saiu calado da sala.

– Chátov, veja que isso não é vantajoso para você! – gritou-lhe Vierkhoviénski com ar enigmático.

– Mas em compensação é proveitoso para ti como espião e canalha! – gritou-lhe Chátov da porta e saiu de vez.

Novos gritos e exclamações.

– Eis o teste – gritou uma voz.

– Foi proveitoso! – gritou outra.

– O proveito não terá vindo tarde? – observou uma terceira.

– Quem o convidou? Quem o aceitou? Quem é ele? Quem é Chátov? Vai ou não vai delatar? – espalhavam-se as perguntas.

– Se fosse um delator ele fingiria, mas mandou tudo às favas e saiu – observou alguém. – Veja, Stavróguin também está se levantando, Stavróguin também não respondeu à pergunta – gritou a estudante.

Stavróguin realmente se levantara, e com ele, no outro extremo da mesa, Kiríllov também se levantou.

– Com licença, senhor Stavróguin – perguntou-lhe bruscamente a anfitriã –, todos nós aqui respondemos à pergunta, enquanto o senhor está saindo calado?

– Não vejo necessidade de responder a uma pergunta do seu interesse – murmurou Stavróguin.

– Acontece que nós nos comprometemos e você não – gritaram várias vozes.

– E que me importa que vocês tenham se comprometido? – riu Stavróguin, mas seus olhos brilhavam.

– Como que me importa? Como que me importa? – ouviram-se exclamações. Muitos saltaram das cadeiras.

– Com licença, senhores, com licença – gritava o coxo –, o senhor Vierkhoviénski também não respondeu à pergunta, ele apenas a fez.

A observação produziu um efeito impressionante. Todos se entreolharam. Stavróguin deu uma gargalhada na cara do coxo e saiu, e Kiríllov atrás dele. Vierkhoviénski correu atrás deles para a antessala.

– O que está fazendo comigo? – balbuciou, agarrando Stavróguin pela mão e apertando-a com força na sua. O outro puxou com ímpeto a mão em silêncio.

– Vá agora à casa de Kiríllov, eu irei… Eu preciso, preciso!

– Eu não preciso – cortou Stavróguin.

– Stavróguin vai – concluiu Kiríllov. – Stavróguin, você precisa. Lá eu lhe mostro.

Saíram.

 

Stavróguin acompanha Kiríllov à sua casa. Vierkhoviénski abandona abruptamente a reunião  e rapidamente os alcança. Entre eufórico e contrariado, ele começa a interpelar Stavrógin sobre um suposto dinheiro que seria usado para que o assassino Fiedka eliminasse os traidores da causa, quer dizer, Chátov e também o irmão de sua esposa demente, o general Von Lembke, que supostamente vinha chantageando o grupo. De quebra, sugere Vierkhoviénski, ele poderia matar a própria mulher de Stavrógin. Fiedka aparece, Stavrógin se irrita e abandona o recinto.

 

Vierkhoviénski o alcançou no portão, quase enlouquecido.

– Pare! Nem um passo adiante – gritou, agarrando-o pelo cotovelo. Stavróguin deu um puxão no braço, mas não o tirou. Ficou tomado de fúria: agarrando Vierkhoviénski pelos cabelos com a mão esquerda, atirou-o no chão com toda a força e saiu pelo portão. Mas antes que desse trinta passos o outro tornou a alcançá-lo.

– Façamos as pazes, façamos as pazes – sussurrou-lhe com um murmúrio convulso.

Nikolai Vsievolódovitch sacudiu os ombros, mas não parou nem olhou para trás.

– Ouça, amanhã mesmo eu lhe trago Lizavieta Nikoláievna, quer? Não? Por que não responde? Diga o que quer, que eu faço. Ouça: eu lhe cedo Chátov, quer?

– Então é verdade que você estava decidido a matá-lo? – gritou Nikolai Vsievolódovitch.

– Mas para que lhe serve Chátov? – continuou o desvairado, arquejando no seu matraqueado e a todo instante correndo para a frente e agarrando o cotovelo de Stavróguin, provavelmente sem se dar conta disso. – Ouça, eu o cedo, façamos as pazes. Você está calculando alto, mas… façamos as pazes!

Stavróguin finalmente olhou para ele e ficou impressionado. Não era o mesmo olhar, nem a voz de sempre e de ainda agora no quarto; via um rosto que quase chegava a ser outro. A entonação da voz não era a mesma: Vierkhoviénski implorava, suplicava. Era um homem que ainda não se apecebera da situação, de quem estavam tomando ou já haviam tomado a coisa mais preciosa.

– Mas o que é que você tem? – gritou Stavróguin. O outro não respondeu, ficou correndo atrás dele e fitando-o com o mesmo olhar suplicante, mas ao mesmo tempo inflexível.

– Façamos as pazes! – tornou a murmurar. – Ouça, eu tenho uma faca escondida na bota como Fiedka, mas faço as pazes com você.

– Ora, para que afinal eu lhe sirvo, diabo! – gritou Stavróguin deveras irado e surpreso. – Existe algum segredo? Eu virei um talismã para você?

– Ouça, vamos levantar um motim – balbuciava o outro rápido e quase delirando. – Não acredita que vamos levantar um motim? Vamos levantar tamanho motim que tudo sairá dos alicerces. Karmazínov tem razão quando diz que não temos a que nos agarrar. Karmazínov é muito inteligente. Com apenas uns dez grupos como esses espalhados pela Rússia eu me tornarei inatingível.

– Compostos dos mesmos imbecis – deixou escapar Stavróguin involuntariamente.

–- Oh, seja mais tolo, Stavróguin, seja você mesmo mais tolo! Sabe, você não é tão inteligente a ponto de desejar isso: você tem medo, não acredita, assusta-se com as dimensões da coisa. E por que são imbecis? Não são tão imbecis; hoje ninguém é dono da própria inteligência. Hoje o número de inteligências singulares é ínfimo. Virguinski é um homem puríssimo, mais puro do que pessoas como nós dois, dez vezes mais; bem, que fique para lá. Lipútin é um vigarista, mas conheço seu ponto. Não há um vigarista que não tenha seu ponto fraco. Só Liámchin não tem ponto nenhum, mas em compensação está em minhas mãos. Mais uns grupos assim e terei passaportes e dinheiro em toda parte; pelo menos isso, não? Pelo menos isso. E ainda terei esconderijos seguros, e deixem que procurem. Desentocam um grupo, mas empacam com outro. Vamos levantar o motim… Será que você não acredita que nós dois somos mais do que suficientes?

– Fique com Chigalióv, mas me deixe em paz…

– Chigalióv é um homem genial! Sabe, é um gênio como Fourier; porém mais ousado que Fourier, mais forte que Fourier; vou cuidar dele. Ele inventou a “igualdade”!

“Está com febre, e delirando; aconteceu-lhe alguma coisa muito especial” – olhou-o mais uma vez Stavróguin. Os dois caminhavam sem parar.

– O caderno dele tem boas coisas escritas – continuou Vierkhoviénski –, tem espionagem. No esquema dele cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são escravos e iguais na escravidão. Nos casos extremos recorre-se à calúnia e ao assassinato, mas o principal é a igualdade. A primeira coisa que fazem é rebaixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis! Os talentos superiores sempre tomaram o poder e foram déspotas. Os talentos superiores não podem deixar de ser déspotas, e sempre trouxeram mais depravação do que utilidade; eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas – eis o chigaliovismo. Os escravos devem ser iguais: sem despotismo ainda não houve nem liberdade nem igualdade, mas na manada deve haver igualdade, e eis aí o chigaliovismo! Ah, ah, ah, está achando estranho? Sou a favor do chigaliovismo!.

Stavróguin procurava apressar o passo e chegar o mais depressa em casa. “Se esse homem está bêbado, onde teve tempo de embriagar-se? – passou-lhe pela cabeça. – Terá sido o conhaque?”

– Ouça, Stavróguin: igualar as montanhas é uma ideia boa, e não é cômica. Sou a favor de Chigalióv! Não precisamos de educação, chega de ciência! Já sem a ciência há material suficiente para mil anos, mas precisamos organizar a obediência. No mundo só falta uma coisa: obediência. A sede de educação já é uma sede aristocrática. Basta haver um mínimo de família ou amor, e já aparece o desejo de propriedade. Vamos eliminar o desejo: vamos espalhar a bebedeira, as bisbilhotices, a delação; vamos espalhar uma depravação inaudita; vamos exterminar todo e qualquer gênio na primeira infância. Tudo será reduzido a um denominador comum, é a plena igualdade.

“Aprendemos o ofício, somos gente honesta, não precisamos de mais nada” – é essa a resposta recente dos operários ingleses. Só o indispensável é indispensável – eis a divisa do globo terrestre daqui para a frente. Mas precisamos também da convulsão; disso cuidaremos nós, os governantes. Os escravos devem ter governantes. Plena obediência, ausência total de personalidade, mas uma vez a cada trinta anos Chigalióv lançará mão também da convulsão, e de repente todos começam a devorar uns aos outros, até um certo limite, unicamente para não se cair no tédio. O tédio é uma sensação aristocrática; no chigaliovismo não haverá desejos. Desejo e sofrimento para nós, para os escravos o chigaliovismo.

– Você exclui a si mesmo? – outra vez deixou escapar Stavróguin.

– A você também. Sabe, pensei em entregar o mundo ao papa. Que ele saia andando a pé e descalço e apareça à plebe: “Vejam, dirá, a que me levaram!” – e todos se precipitarão atrás dele, até as tropas. O papa na cúpula, nós ao redor, e abaixo de nós o chigaliovismo. Basta apenas que a Internacional concorde com o papa; assim será. O velhote concordará num piscar de olhos. Aliás, não lhe restará outra saída, você há de ver, ah, ah, ah; tolice? Diga, é tolice ou não?

– Basta – murmurou Stavróguin com enfado.

– Basta! Escute, abandonei o papa! Ao diabo com o chigaliovismo! Ao diabo com o papa! Precisamos de um tema do dia a dia e não do chigaliovismo, porque o chigaliovismo é coisa de ourivesaria. É o ideal, é coisa do futuro. Chigalióv é um ourives e um tolo como qualquer filantropo. Precisamos de trabalho braçal, mas Chigalióv despreza o trabalho braçal. Ouça, o papa ficará no Ocidente, e aqui, aqui na Rússia, ficará você!

– Largue de mim, seu bêbado! – murmurou Stavróguin, e apressou o passo.

– Stavróguin, você é belo! – bradou Piotr Stiepánovitch quase em êxtase. – Você sabe que é belo! O mais valioso em você é que às vezes você não sabe disso. Oh, eu o estudei! Frequentemente eu o olho de lado, de um canto! Em você há até simplicidade e ingenuidade, sabia disso? Ainda há, há! Vai ver que você sofre, e sofre sinceramente por causa dessa simplicidade. Amo a beleza. Sou niilista, mas amo a beleza. Porventura os niilistas não amam a beleza? Eles só não gostam de ídolos, mas eu amo o ídolo! Você é meu ídolo! Você não ofende ninguém, e no entanto o odeiam; você vê todos como iguais e todos o temem, isso é bom. Ninguém chegará a você e lhe dará um tapinha no ombro. Você é um tremendo aristocrata. Quando o aristocrata caminha para a democracia ele é encantador! Para você nada significa sacrificar a vida, a sua e a dos outros. Você é justamente a pessoa de que preciso. Eu, eu preciso justamente de alguém assim como você. Não conheço ninguém assim a não ser você. Você é o chefe, o sol, e eu sou seu verme…

Súbito beijou-lhe a mão. Stavróguin sentiu um calafrio e arrancou a mão assustado. Os dois pararam.

– Louco! – murmurou Stavróguin.

– Talvez eu esteja até delirando, talvez esteja até delirando! – replicou o outro, matraqueando – mas descobri o primeiro passo a ser dado. Chigalióv nunca irá descobrir o primeiro passo. Há muitos Chigalióv! Mas só um, só um homem na Rússia descobriu o primeiro passo e sabe como dá-lo. Esse homem sou eu. Por que me olha assim? Preciso, preciso de você, sem você sou um zero. Sem você sou uma mosca, uma ideia dentro de uma garrafa, um Colombo sem América.

Em pé, Stavróguin olhava fixamente seus olhos loucos.

– Ouça, primeiro vamos levantar um motim – apressava-se em demasia Vierkhoviénski, a todo instante agarrando Stavróguin pelo braço esquerdo. – Eu já lhe disse: vamos penetrar no seio do próprio povo. Sabe que já agora somos terrivelmente fortes? Os nossos não são apenas aqueles que degolam e ateiam fogo, e ainda fazem disparos clássicos ou mordem. Gente assim só atrapalha. Não concebo nada sem disciplina. Ora, sou um vigarista e não um socialista, eh, eh! Ouça, tenho uma relação de todos eles: o professor de colégio que ri com as crianças do Deus delas e do berço delas, já é dos nossos. O advogado que defende o assassino culto que por essa condição já é mais evoluído do que suas vítimas e que, para conseguir dinheiro, não pode deixar de matar, já é dos nossos. Os colegiais que matam um mujique para experimentar a sensação, são dos nossos. Os jurados que absolvem criminosos a torto e a direito são dos nossos. O promotor que treme no tribunal por não ser suficientemente liberal é dos nossos. Os administradores, os escritores, oh, os nossos são muitos, um horror, e eles mesmos não sabem disso! Por outro lado, a obediência dos colegiais e dos imbecis chegou ao último limite; os preceptores andam cheios de bílis; em toda parte a vaidade atingiu dimensões incomensuráveis, há um apetite feroz, inaudito… Sabe você, sabe você de quantas ideias prontas lançamos mão? Quando saí daqui grassava a tese de Littré segundo a qual o crime é uma loucura; quando voltei, o crime já não era uma loucura, mas justamente o bom senso, quase um dever, quando nada um protesto nobre. “Ora, como um assassino evoluído deixaria de matar se precisa de dinheiro!” Mas isso são apenas filigranas. O Deus russo já se rendeu à “vodca barata”. O povo está bêbado, as mães estão bêbadas, as crianças estão bêbadas, as igrejas estão vazias, e ouve-se nos tribunais: “um balde de vodca ou duzentas chibatadas”. Oh, deixem crescer a geração! Só lamento que não haja tempo para esperar, senão era só deixá-la ainda mais beberrona! Ah, que pena que não haja proletários! Mas haverá, haverá, para isso caminhamos…

– Também é uma pena que tenhamos ficado tolos – murmurou Stavróguin e seguiu em frente.

– Ouça, eu mesmo vi uma criança de seis anos levando a mãe bêbada para casa, e esta a insultava com palavras indecentes. Você pensa que estou contente com isso? Quando a coisa estiver em nossas mãos, talvez os curemos… Se for necessário, nós os mandaremos para o deserto por quarenta anos… Mas hoje precisamos da depravação por uma ou duas gerações; de uma depravação inaudita, torpe, daquela em que o homem se transforma num traste abjeto, covarde, cruel, egoísta – eis de que precisamos! E de mais um “sanguinho fresco” para que se acostumem. De que está rindo? Eu não me contradigo. Contradigo apenas os filantropos e chigaliovianos, mas não a mim. Sou um vigarista e não um socialista. Ah, ah, ah! Só é pena que o tempo seja pouco. Prometi a Karmazínov começar em maio, aí pelo Dia do Manto da Virgem. Falta pouco? Eh, eh! Saiba o que vou lhe dizer, Stavróguin: até hoje não houve cinismo no povo russo, embora ele xingue com palavras indecentes. Sabe que esse escravo servo respeitava mais a si mesmo do que Karmazínov se respeita? Era açoitado, mas defendia os seus deuses, já Karmazínov não se defende.

– Bem, Vierkhoviénski, é a primeira vez que o ouço, e ouço com surpresa – pronunciou Nikolai Vsievolódovitch –, quer dizer que não é francamente um socialista, mas um político… egoísta?

– Um vigarista, um vigarista. Você se preocupa que eu seja assim? Vou lhe dizer agora que eu sou assim, que era a isso que eu queria chegar. Não foi à toa que beijei sua mão. Mas é preciso que o povo também acredite que somos pessoas que sabem o que querem e não só “agitam o porrete e batem nos seus”. Ah se houvesse tempo! O único mal é que não há tempo. Proclamaremos a destruição… porque… porque mais uma vez essa ideiazinha é muito fascinante. Mas precisamos, precisamos desentorpecer os ossos. Espalharemos incêndios… Espalharemos lendas… Aí qualquer “grupo” sarnento será útil. No meio desses mesmos grupos encontrarei pessoas tão dispostas que darão qualquer tipo de tiro e ainda ficarão agradecidas pela honra. Bem, aí começará o motim! Haverá uma desordem daquelas que o mundo nunca viu… A Rússia ficará mergulhada em trevas, a terra haverá de chorar os velhos deuses… Bem, é aí que nós vamos lançar… Quem?

– Quem?

– Ivan Czariêvitch.

– Quem?

– Ivan Czariêvitch; você, você!

Stavróguin pensou um minuto.

– Um impostor? – perguntou de súbito, olhando profundamente surpreso para o desvairado. – Ah, enfim eis o seu plano.

– Diremos que ele “está escondido” – pronunciou Vierkhoviénski baixinho, com um sussurro algo afetuoso, como se estivesse mesmo bêbado. – Você sabe o que significa a expressão “ele está escondido”? Só que ele vai aparecer, vai aparecer, espalharemos a legenda melhor do que os skoptzi. Ele existe, mas ninguém ainda o viu. Oh, que lenda podemos espalhar! E o principal é que uma nova força está se formando. E é dela que se precisa, é por ela que se suspira. O que o socialismo trouxe: destruiu as velhas forças e não introduziu novas. Mas no nosso caso existe força, e que força, inaudita! Precisamos de uma alavanca, só por uma vez, para levantar o mundo. E tudo se levantará!

– Quer dizer que você contava seriamente comigo? – Stavróguin deu um riso maldoso.

– De que está rindo com tanta maldade? Não me assuste. Neste momento sou como uma criança, podem me dar um susto de morte só com um riso assim. Ouça, não vou mostrá-lo a ninguém, a ninguém: assim é preciso. Ele existe, mas nunca ninguém o viu, está escondido. Sabe, poderia mostrá-lo a um só em cem mil, por exemplo. E por toda a terra se espalharia: “Vimos, vimos”. E vimos Ivan Fillípovitch, o deus Sabaoth, subindo ao céu numa carruagem diante das pessoas, vimos com o “próprios” olhos. Mas você não é Ivan Fillípovitch; você é belo, orgulhoso como um deus, não procura nada para si, tem a auréola do sacrifício, “está escondido”. O principal é a lenda! Você os vencerá, lançará um olhar, vencerá. Traz uma nova verdade e “está escondido”. E aí lançaremos mão de umas duas ou três sentenças de Salomão. Os grupos, os quintetos, não precisam de jornais! Se de dez mil pedidos você atender a apenas um, todos nos seguirão com seus pedidos. Em cada volost qualquer mujique saberá que em algum lugar existe um oco de árvore com indicação para depositar os pedidos. E toda a terra gemerá lamentos: “Uma nova lei justa está em vigor”, e o mar ficará encapelado, e o barracão de madeira desmoronará, e então pensaremos como construir um edifício de pedra. Pela primeira vez! Nós haveremos de construir, nós, só nós!

– Isso é um desvario! – pronunciou Stavróguin.

– Por que, por que você não quer? Tem medo? Veja, eu me agarrei a você porque você não tem medo de nada. Será isso insensatez? Vamos, por ora eu ainda sou um Colombo sem América; porventura é razoável um Colombo sem América?

Stavróguin calava. Nesse ínterim chegaram à sua casa e pararam à entrada.

– Ouça – Vierkhoviénski inclinou-se para o ouvido dele –, você não precisa me pagar para fazer isso; amanhã eu termino o assunto Mária Timofêievna… sem pagamento, e amanhã mesmo lhe trago Liza. Quer Liza amanhã mesmo?

“Será que ele enlouqueceu de fato?” – sorriu Stavróguin. A porta do alpendre abriu-se.

– Stavróguin, a América é nossa? – Vierkhoviénski segurou-lhe o braço pela última vez.

– Para quê? – pronunciou Nikolai Vsievolódovitch em tom sério e severo.

– Você não tem vontade, eu bem que sabia! – bradou o outro num ímpeto de raiva desvairada. – Está mentindo, fidalgote reles, lascivo, estragado; não acredito, seu apetite é enorme!… Compreenda, afinal, que a conta em que agora o tenho é alta demais e não posso abrir mão de você! Na terra não existe outro como você! Eu o inventei mal cheguei do estrangeiro; inventei-o enquanto o fitava. Se não o tivesse observado de um canto nada me teria vindo à cabeça!…

Stavróguin se foi escada acima sem responder.

– Stavróguin – gritou-lhe Vierkhoviénski –, eu lhe dou um dia… dois… bem, três; mais de três não posso, e então você me dará a resposta.

 

Edição: Editora 34.