Estórias da família de Deus

Parábolas do Talmud. Israel e Babilônia, séculos III a VI d.C.

 

Bençãos disfarçadas

Obrigado por uma perseguição violenta a abandonar a sua terra natal, o rabino Akiba viajou por países incultos e desertos áridos. A sua equipagem consistia unicamente dum candeeiro, que acendia de noite para estudar a lei, um galo, que lhe servia de relógio para despertar e lhe anunciar o amanhecer, e um burro em que andava. O sol desaparecia lento no horizonte, a noite aproximava-se rapidamente, e o pobre caminhante não sabia onde abrigar-se, e repousar o corpo fatigado. Cansado e quase exausto, chegou afinal a uma aldeia. Alegrou-se de a ver habitada, pensando que onde morassem seres humanos também encontraria humanidade e compaixão; mas enganou-se. Pediu pousada por uma noite – e negaram-lha. Nenhum dos habitantes o quis acomodar. Foi pois obrigado a refugiar-se num bosque próximo. “É duro, muito duro, disse, não encontrar um teto hospitaleiro que me proteja contra a inclemência do tempo – mas Deus é justo, e tudo quanto faz é para bem.

Sentou-se debaixo duma árvore, acendeu o candeeiro, e começou a ler a lei. Tinha apenas lido um capítulo quando uma violenta tempestade lhe apagou a luz. “O quê, exclamou ele, nem me será permitido prosseguir o meu estudo favorito? – Mas Deus é justo, o que faz é para bem. Estendeu-se na terra fria, desejando se possível fosse descansar umas horas. Tinha apenas fechado os olhos, quando um lobo faminto veio e matou o galo. “Que nova calamidade é esta? gritou Akiba atônito. Lá se me foi o companheiro vigilante! Quem de ora avante me despertará para estudar a lei! Mas Deus é justo; ele sabe o que é mais conveniente para nós, pobres mortais.

Mal tinha acabado de dizer estas palavras quando um leão terrível veio e devorou o burro. “O que hei de fazer agora? exclamou o viajante solitário. Foram-se o meu candeeiro, o meu galo, e o meu pobre burro também se foi, – tudo se foi. Mas louvado seja o Senhor, tudo quanto faz é para bem.” Passou uma noite de insônia, e de manhã cedo dirigiu-se à aldeia a ver se poderia arranjar um cavalo, ou qualquer outra besta de carga que o habilitasse a prosseguir a sua viagem. Mas qual foi o seu espanto quando não encontrou pessoa viva!

Ao que parecia, um bando de ladrões entrara na aldeia durante a noite, e assassinara os habitantes, saqueando as casas. Quando Akiba tornou a si do assombro que esta extraordinária ocorrência lhe causou, levantou a voz e exclamou:

– Vós sois um grande Deus, ó Deus de Abrahão, Isaac, e Jacó, agora conheço por experiência que os pobres mortais são curtos de vista e cegos; muitas vezes considerando como calamidades o que é apenas destinado para sua conservação. Mas só Vós sois justo, bondoso e misericordioso! Se os habitantes de corações endurecidos não me tivessem afugentado da aldeia pela sua inospitalidade, teria seguramente compartilhado da sua sorte. Se o vento não tivesse apagado o meu candeeiro, os ladrões teriam sido atraídos ao lugar, e ter-me-iam assassinado. Compreendo também que foi a vossa misericórdia que me privou dos meus dois companheiros, para que com o seu barulho não indicassem aos salteadores onde eu estava. Louvado pois seja o vosso Nome para todo o sempre!

 

Escárnio aos defeitos corporais

Não desprezes os pobres; não sabes quão cedo poderá a pobreza ser a tua sorte.

Não desprezes o aleijado: os seus defeitos não foram procurados por ele, e porque quererás juntar o insulto á infelicidade?

Não desprezes nenhuma criatura: a mais insignificante é obra do teu Criador.

O rabino Eliezer, regressando da residência de seu mestre à sua terra natal, estava sumamente orgulhoso dos grandes conhecimentos que tinha adquirido. Pelo caminho encontrou uma pessoa singularmente defeituosa, e de feições esquisitas, que viajava para a mesma cidade. O forasteiro saudou-o dizendo:

– A paz seja contigo, rabino. Eliezer orgulhoso do seu saber em vez de retribuir o cumprimento apenas notou a deformidade do viajante; e gracejando, disse-lhe:

  • Raca, todos os habitantes da tua cidade são tão defeituosos como tu?

O forasteiro admirado da pouca educação de Eliezer, e provocado pelo insulto respondeu:

  • Eu não sei; mas será melhor fazeres essas perguntas ao grande Artista que me fez.

O rabino compreendeu o seu erro, e apeando-se do animal que montava, deitou-se aos pés do forasteiro, e suplicou que lhe perdoasse uma falta cometida por indiscrição e de que ele sinceramente se arrependia.

  • Não, respondeu o forasteiro, vai primeiro ao grande artista que me fez e dize-lhe: oh! que vaso tão feio produziste!

Eliezer continuou as suas súplicas. O forasteiro teimou na sua recusa. Entretanto chegaram á cidade natal do rabino. Os habitantes, tendo conhecimento da sua chegada, foram em ranchos ao seu encontro, exclamando:

  • A paz seja contigo rabino! Bem-vindo seja o nosso instrutor

  • A quem chamam rabino? perguntou o forasteiro. A multidão apontou para Eliezer. – E dais-lhe a honra de o chamar rabino continuou o pobre homem. Oh! possa Israel produzir poucos iguais a ele!

Contou então o que tinha acontecido. – Ele procedeu mal e confessa-o, disse o povo, perdoai-lhe: porque é um grande homem, bem versado na Lei.

O forasteiro então perdoou-lhe, e insinuou que a sua recusa tinha apenas por fim fixar no ânimo do rabino a impropriedade da ação que tinha cometido. O douto Eliezer agradeceu-lhe; e enquanto oferecia o seu procedimento ao povo como uma advertência, justificou o do forasteiro dizendo que apesar de uma pesca dever ser flexível como um junco, e não teimosa como um cedro, ainda assim insultar a pobreza ou qualquer defeito da natureza não é um pecado venial, nem um de que possamos ser perdoados prontamente.

 

Ponde-vos no lugar dos outros

Mar Ukba era um dos chefes de Israel que juntamente à grande sabedoria e ciência reunia grandes riquezas, das quais ninguém sabia fazer melhor uso do que ele. Independentemente de sua enorme caridade, tinha como regra dar anualmente a certo número de homens pobres uma determinada quantia, suficiente para os manter confortavelmente. Entre estes houve um a quem costumava dar quatrocentas coroas no dia precedente ao da Reparação. Sucedeu uma vez mandar esta dádiva pelo filho, que ao voltar manifestou ao pai que a esmola era conferida a gente muito indigna.

  • Por que, o que aconteceu? perguntou Mar Ukba.

  • Tenho visto, respondeu o filho, aquele homem que julgais tão pobre, e que não cora de viver de caridade, tenho-o visto a ele e à sua família permitirem-se grandes luxos, bebendo dos vinhos mais caros.

  • Viste isso? perguntou o bondoso chefe. Então será porque o infeliz homem tem visto melhores dias. Acostumado a viver bem, não sei como pode passar com a pequena pensão que lhe damos. Aqui tens, leva-lhe esta bolsa com dinheiro; e para o futuro dá-lhe a pensão duplicada.

 

Uma parábola contra a democracia

Diz o Rabino Josué Ben Levi que enquanto as baixas camadas se submeterem á direção das altas camadas da sociedade, tudo irá bem. As últimas decretam, e Deus confirma. Daí resulta a prosperidade do Estado. Mas quando as altas camadas, por motivos corruptos ou falta firmeza, se submetem, ou são influenciadas pelas opiniões das camadas sociais, é certo caírem juntas; e a destruição do Estado será inevitável. Para ilustrar esta verdade importante, relatou a seguinte fábula da cauda e da cabeça da serpente.

A cauda serpente tinha seguido por muito tempo a direção da cabeça, e tudo estava bem. Um dia começou a estar descontente com este arranjo da natureza, e dirigiu-se nestes termos à cabeça:

  • Há muito tempo que observo com indignação o teu injusto procedimento. Em todas as nossas viagens, és tu que tomas a dianteira, em quanto eu como uma criada servil, sou obrigada a seguir-te. Apareces primeiro em toda a parte, mas eu como uma escrava miserável tenho de ficar atrás. Isto é justo? É direito? Não sou eu um membro do mesmo corpo? Porque não poderei dirigi-lo tão bem como tu?

– Tu, exclamou a cabeça, tu, rabo imbecil, queres dirigir o corpo ? Não tens olhos para ver o perigo, nem ouvidos para te avisarem dele, nem cérebro para o evitar. Não compreendes que é para tua vantagem que eu dirijo e guio?

– Para minha vantagem, na verdade, disse a cauda. Isso é a linguagem de todos os usurpadores. Pretendem reger para bem dos seus escravos: mas não me submeterei por mais tempo a semelhante estado de coisas. Insisto por tomar a dianteira por minha vez.

– Pois bem, replicou a cabeça, assim seja, Guia tu.

A cauda regozijou-se, e tomou a dianteira. A primeira façanha foi arrastar o corpo para uma fossa de lodo. A situação não era das mais agradáveis. A cauda lutou muito, andou às apalpadelas, e com grande esforço conseguiu sair; mas o corpo estava tão coberto de imundice e lama, que não parecia pertencer à mesma criatura. A façanha seguinte foi embaraçar-se entre garças e espinhos. A dor foi intensa; o corpo inteiro se feriu; quanto mais se debatia, mais fundas eram as feridas. Aqui teria acabado a miserável existência, se a cabeça não tivesse vindo em seu auxílio, livrando-a da situação perigosa. Não contente, ainda teimou em levar a dianteira. Continuou a marchar; e quis o acaso que entrasse numa fornalha acesa. Bem depressa começou a sentir os terríveis efeitos do elemento destrutivo. O corpo inteiro ficou congestionado; foi um lance terrível. A cabeça mais uma vez se apressou a conceder-lhe o seu auxílio amigável. Mas ai dela, era tarde. A cauda estava já consumida. O fogo bem depressa chegou às partes vitais do corpo, que foi destruído, e a cabeça arrastada na ruina total.

Qual foi a causa da destruição da cabeça? Pois não foi o permitir ser guiada pela cauda imbecil? Tal será seguramente o destino das altas camadas se se permitirem ser dominadas pelas crendices populares.

 

O rabino Simão e as joias alheias

O rabino Simão comprou uma vez um camelo a um Ismaelita; os seus discípulos levaram-no para casa, e tirando a sela descobriram uma fita com uns brilhantes escondida debaixo dela.

– Rabino! rabino exclamaram, a benção de Deus enriquece-nos! insinuando que era um dom de Deus.

– Levai os brilhantes ao homem a quem comprei o animal, disse o virtuoso rabino, ele vendeu-me um camelo e não pedras preciosas.

Os brilhantes foram pois devolvidos, com grande espanto do próprio dono; mas o rabino conservou as joias mais preciosas- a Honestidade e Integridade.

 

O rabino Safra e o comprador

O rabino Safra quis dispor de uma das suas propriedades, pela qual pediu certo preço. Um indivíduo que tinha algum empenho em ficar com ela, fez-lhe uma oferta que sendo muito inferior ao valor real da propriedade, foi recusada. Algum tempo depois o rabino, precisando de dinheiro, resolveu-se a aceitar a oferta. Entretanto o individuo que tinha feito a oferta, desejando possuir a propriedade, e ignorando a resolução de rabino, veio ter com ele e propôs-lhe dar a primeira quantia que O rabino Safra lhe tinha pedido. Mas o bom Safra recusou aceitá-la.

– Resolvi-me, disse ele, antes que viesses, a aceitar a quantia que primeiro me ofereceste, dá-ma, e ficarei satisfeito; a minha consciência não me permite aproveitar da tua ignorância.

 

A loucura da idolatria

Reza a tradição que Terah, pai de Abraão, foi não só um idolatra, mas também um fabricante de ídolos, os quais expunha à venda pública. Sendo obrigado um dia a sair para um negócio particular, pediu a Abraão que superintendesse em seu logar. Abraão obedeceu com relutância.

Qual é o preço daquele deus? perguntou um velho que tinha acabado de entrar na casa da venda, apontando para um ídolo que lhe agradara.

– Velho, disse Abraão, permite-me que te pergunte a tua idade.

– Senhor, sessenta anos, respondeu o velho idólatra. – Sessenta anos! exclamou Abraão, – e queres adorar uma coisa talhada pelas mãos dos escravos de meu pai, ainda não há vinte e quatro horas! É estranho que um homem de sessenta anos queira abaixar a sua cabeça grisalha a um objeto que conta apenas um dia!

O homem, corrido de vergonha, foi-se embora. Depois disto veio uma séria e grave matrona, trazendo na mão um grande prato com farinha.

– Aqui, disse ela, trago uma oferta para os deuses. Coloca-a adiante deles, Abraão, e pede-lhes que me sejam propícios.

– Coloca-a tu mesmo, mulher louca! – disse Abraão; bem depressa verás como eles a devorarão sofregamente.

Ela assim fez. Entretanto Abraão pegou num martelo, partiu os ídolos em bocados; todos menos o maior, em cujas mãos colocou o instrumento de destruição.

Terah voltou, e com a maior surpresa e consternação contemplou os estragos feitos nos seus deuses favoritos. – Que significa isto, Abraão? quem foi o profano miserável que tratou os nossos deuses deste modo? – exclamou o enfadado e indignado Terah.

– Porque hei de eu esconder alguma coisa a meu pai? respondeu o filho piedoso. Durante a tua ausência veio uma mulher com aquela oferta para os deuses. Ela colocou-a diante deles. Os deuses mais novos, que, como é fácil acreditar, não tinham provado comer havia muito, estenderam avidamente as mãos, e começaram a comer, antes que o velho deus lhes desse licença. Furioso do seu atrevimento, levantou-se, pegou no martelo, e castigou-os pela sua falta de respeito.

– Estás zombando de mim? querias enganar o teu velho pai? exclamou Terah, furioso. Como se eu não soubesse que não podem comer nem mover-se!

– E apesar disso, replicou Abraão, dás-lhes honras divinas, – adora-os – e querias que eu os adorasse.

Foi em vão que Abraão assim raciocinou com seu pai idólatra. A superstição é Sempre surda e cega. Seu feroz pai entregou-o ao cruel tribunal do igualmente idolatra Nimrod. Mas um Pai mais misericordioso – o benévolo e abençoado Pai de nós todos – protegeu-o contra o perigo e Abraão foi o pai dos crentes.

 

Ponde de parte o orgulho e praticai o bem

O rabino Meir estava acostumado a pregar publicamente, para aproveitamento do povo, na véspera do Sabat. Entre a sua numerosa audiência havia uma mulher que tanto gostou do seu discurso que ficou até ele terminar. Instruída e contente, voltou para casa para gozar a refeição que era geralmente preparada para honrar esse dia; mas ficou muito desapontada quando chegou perto da casa, e viu as luzes apagadas, e o marido à porta de muito mau humor:

– Onde tens estado? exclamou em tom que bem indicava não estar muito contente com a sua ausência.

– Estive a ouvir, respondeu a mulher tranquilamente, o nosso douto rabino pregar, e que lindo discurso!

— Era ? replicou o marido, que se imaginava muito espirituoso. Pois então, já que o rabino agradou tanto não entrarás nesta casa, sem primeiro lhe teres cuspido na cara, como recompensa do divertimento que ele lhe proporcionou.

A mulher admirada duma ordem tão pouco razoável, ao princípio julgou que o marido estava gracejando, e começou a congratular-se da volta do seu bom humor; mas bem depressa se convenceu de que não era um gracejo. O bruto insistiu em que ela cuspisse no rosto do pregador como única condição de ser readmitida em casa: e como ela era muito piedosa para insultar deste modo qualquer pessoa, muito menos um homem tão douto, viu-se obrigada a ficar na rua. Uma vizinha caritativa ofereceu-lhe abrigo, que ela aceitou alegremente. Aí se conservou algum tempo, tentando em vão aplacar o marido que continuava a persistir na sua primeira ordem.

O caso divulgou-se na cidade, e o rumor da questão chegou aos ouvidos do rabino Meir, que imediatamente andou chamar a mulher. Ela veio. O bom rabino mandou-a sentar. Fingindo ter dores nos olhos, ele, sem falar no que lhe tinham dito, perguntou-lhe se ela sabia algum remédio para isso.

– Mestre, respondeu a mulher, eu sou apenas uma pobre e ignorante criatura. Como hei de eu teus olhos?

  • Pois bem, replicou o rabino, faz o que eu te ordeno, cospe sete vezes nos meus olhos, poderá fazer algum bem. A mulher acreditando haver qualquer virtude na operação, depois duma pequena hesitação consentiu. Assim que ela acabou, Meir dirigiu-se a ela nestes termos:

– Boa mulher, vai para casa, e dize a teu marido: Era teu desejo que eu cuspisse no rosto do rabino uma vez. Fiz isso, porém fiz mais, cuspi nele sete vezes: agora sejamos amigos.

Os discípulos de Meir, que tinham observado o procedimento do mestre, atreveram-se a questionar a ele, por ter permitido a mulher fazer-lhe tal indignidade, observando que por este modo o povo desprezaria a Lei e os seus mestres.

  • Meus filhos, disse o seu piedoso instrutor, pensais que o vosso mestre deve ser mais escrupuloso da sua honra do que o Criador? Ele próprio, o adorável, louvado seja, permitiu que o seu nome sagrado fosse obliterado, para assim promover a paz entre marido e mulher; e hei de considerar como indigna qualquer coisa que possa atingir tão desejável fim? Aprendei pois, que não é indigna nenhuma ação que tende a promover a felicidade e paz da humanidade. Só o vicio e a depravação nos podem aviltar.

 

O herdeiro legítimo

Um Israelita rico, que morava a uma considerável distancia de Jerusalém, tinha um filho único, que mandou para a Cidade Santa para se educar. Durante a sua ausência, o pai adoeceu repentinamente. Vendo a morte aproximar-se, fez o seu testamento pelo qual instituiu universal herdeiro um escravo, com a cláusula que a seu filho seria permitido escolher da propriedade uma coisa que ele quisesse. Assim que o patrão morreu, o escravo exaltando correu a Jerusalém, para informar o filho do que se tinha passado, e mostrar-lhe o testamento. O jovem Israelita ficou possuído do maior desgosto ouvindo esta notícia inesperada rasgou a roupa, pôs cinzas na cabeça, e chorou a morte do pai, que amava ternamente, e cuja memória ainda respeitava. Quando os primeiros arrebatamentos de sua dor tinham passado e os dias de luto acabaram, o jovem encarou seriamente a situação em que se encontrava. Nascido na opulência, e criado na expectativa de receber pela morte do pai as propriedades a que tinha tanto direito, viu ou imaginou ver as suas esperanças perdidas, e as suas perspectivas mundanas malogradas. Neste estado de espírito, foi ter com o seu professor, um homem afamado pela sua piedade e sabedoria, deu-lhe a conhecer a causa da sua aflição, e fê-lo ler o testamento; e na amargura do seu desgosto, atreveu-se a desabafar os seus pensamentos – que o pai fazendo um tal testamento, e dispondo tão singularmente dos seus bens, não tinha mostrado bom-senso, nem amizade pelo seu filho único.

– Não digas nada contra teu pai, meu rapaz, disse o piedoso instrutor; teu pai era ao mesmo tempo um homem douto e um parente afetuoso; a prova mais evidente é este testamento.

– Este testamento exclamou, o jovem – este testamento seguramente, meu venerando mestre, não falas seriamente. Não vejo sabedoria em conferir os seus bens a um escravo, nem amizade despojando o seu filho único dos seus direitos legítimos.

– Teu pai nada disso fez, replicou o sábio instrutor; mas como pai justo e afetuoso, por este testamento garantiu-te a propriedade, se tiveres o bom senso de te aproveitar dele.

– Como? Como o exclamou, o jovem com o maior espanto. – Como é isso? A mim, a propriedade? Na verdade não compreendo.

  • Escuta então, disse o instrutor amigo: escuta meu filho, e terás motivo para admirar a prudência do teu pai. Quando viu a morte aproximar-se, e que teria de seguir o caminho que todos seguem mais cedo ou mais tarde, pensou consigo: Hei de morrer; o meu filho está longe de mais para tomar posse imediata de minha propriedade; os meus escravos assim que se certificarem de minha morte, saquearão a minha casa, e para evitar serem descobertos, hão de esconder a minha morte a meu querido filho, e assim privá-lo até da triste consolação de chorar por mim. Para evitar esta primeira coisa deixou a propriedade a um escravo, que decerto teria o maior interesse em tomar conta dela. Para evitar a segunda, estabeleceu a condição que poderias escolher qualquer coisa dessa propriedade. O escravo, pensou ele, para assegurar o seu, aparentemente, legitimo direito, não deixaria de te informar, como de facto ele fez, do que acontecera.

  • Mas então, exclamou o jovem um pouco impaciente, que proveito tiro disso tudo? Qual é a vantagem que daí resulta para mim? O escravo não me restituirá com certeza a propriedade de que tão injustamente fui despojado.

  • Ah! respondeu o bom velho, vejo que a sabedoria pertence apenas aos velhos. Sabes que tudo quanto um escravo possui pertence ao seu dono legitimo? E teu pai não te deu a faculdade de escolher dos seus bens qualquer coisa que quisesses? O que te impede de escolher aquele próprio escravo, como a parte que te pertence? E possuindo-o terás direito à propriedade toda. Sem duvida era esta a intenção de teu pai.

O jovem israelita, admirando a sabedoria do pai, tanto como a sabedoria do seu mestre, aprovou a ideia; escolheu o escravo como a sua parte, e tomou posse da herança. Depois do que deu a liberdade ao escravo, juntamente com um bom presente; ao mesmo tempo convencido de que a sabedoria pertence aos velhos, e de que a compreensão é resultado do tempo.

 

Uma parábola da vida

Uma raposa um belo dia aproximou-se dum bonito jardim onde avistou árvores muito altas, carregadas de fruto que lhe fazia luzir os olhos. Um tão belo espetáculo, junto à sua gulodice habitual, excitou nela o desejo da posse. De bom grado provaria a fruta proibida, mas erguia-se entre ela e o objeto dos seus desejos um muro alto. Andou à procura duma entrada, e finalmente achou uma fenda no muro: mas era apertada demais para o corpo. Impossibilitada de entrar, recorreu à sua manha natural. Jejuou três dias, e tornou-se bastante magra para se introduzir na pequena fenda. Conseguindo entrar, andou passeando despreocupadamente nesta deliciosa região, tratando sem cerimônia os seus produtos, e comendo os frutos raros e deliciosos. Ficou durante algum tempo saciando o seu apetite; quando de repente, um pensamento lhe veio: era possível que fosse observada, e assim pagaria caro o prazer gozado. Portanto retirou-se para o lugar por onde tinha entrado, e tentou sair; mas com grande consternação sua, viu que as suas tentativas eram baldadas – tinha engordado de tal modo, que já não podia passar pelo mesmo lugar.

– Estou numa boa situação, disse consigo mesma. Suponhamos que o dono do jardim me aparecia agora a pedir contas, o que seria de mim! Vejo que a minha única esperança de fugir é jejuar e quase morrer de fome.

Assim fez com grande relutância; e depois de sofrer a fome durante três dias, com muita dificuldade fugiu. Assim que se viu fora de perigo, deitou um olhar de despedida para o jardim, o lugar das suas delicias e trabalhos; e assim se lhe dirigiu:

– Jardim! Jardim és encantador e deleitoso, os teus frutos deliciam; mas de que proveito és para mim? O que me fica de todo o meu trabalho e manha? Eu estou tão magra como dantes.

Assim é com o homem. Nu entra no mundo – nu há de sair dele; e de todos os seus trabalhos e fadigas, nada mais pode levar consigo do que os frutos da sua honradez.

 

O trocista

Um habitante de Jerusalém, indo a Atenas em negócio seu, entrou em casa dum negociante com ideia de procurar hospedagem. O dono da casa, estando um pouco alegre com vinho, e desejando divertir-se, disse-lhe que por uma lei recente, não podia hospedar um estranho sem que tivesse dado três grandes passadas para a rua.

– Como hei de eu saber, respondeu o hebreu, as passadas em uso entre vós? Mostrai-me e saberei imitar-vos.

O ateniense deu uma grande passada, que o trouxe ao meio da loja, à segunda chegou à porta, e à terceira foi ter ao meio da rua. O nosso viajante, tão depressa o viu na rua, fechou a porta ao ateniense.

– O quê, gritou o ultimo, pões-me fora de casa? – Não tens razão para te queixares, respondeu o hebreu. Apenas te fiz o que tencionavas fazer-me. Lembra-te que aquele que tenta enganar outro, não tem o direito de se queixar de ter sido enganado.

 

Dar o que é devido

Os rabinos têm ensinado que um homem não deve vender ao seu vizinho sapatos feitos do couro dum animal que morreu de moléstia, como se fosse do couro dum animal que tenha sido morto no matadouro, por duas razões: primeiro porque o engana (visto que o couro dum animal que morre de morte natural, não dura tanto como o dum animal morto no matadouro); segundo, por haver perigo (porque o animal poderia ter sido mordido por uma serpente, e o veneno introduzindo-se no couro podia ser fatal a quem usasse sapatos feitos daquele couro). Um homem não deve mandar ao seu vizinho um barril de vinho, com azeite boiando à superfície; porque aconteceu que um homem assim fez, e o destinatário convidou os amigos para uma festa, para a preparação da qual entrava o azeite como principal ingrediente; mas quando os convidados se reuniram, viu-se que o casco continha vinho e não azeite; e como o dono da casa não tinha mais nada preparado para uma festa digna, suicidou-se. Nem os convidados devem dar qualquer das coisas que puseram diante deles ao filho ou filha do dono da casa, a não ser que o pai lhes dê licença; porque aconteceu uma vez que num período de carestia um homem convidou três amigos para jantar, e apenas tinha três ovos para lhes dar. Entretanto, quando os convidados se sentaram à mesa, o filho do dono da casa entrou no quarto e primeiro um dos convidados lhe deu a sua parte, e os outros dois seguiram o seu exemplo. Um pouco depois o pai entrou, e vendo a criança com a boca e as mãos cheias, deu-lhe tão grande pancada que ela caiu por terra, e morreu no mesmo instante; a mãe vendo isto atirou-se do telhado da casa para a rua, e o pai seguiu o seu exemplo. Assim, disse o rabino Eliezar ben Jacob, pereceram três almas de Israel.

Do quanto vale uma esmolinha

Conta-se de Benjamim o honrado que era guarda duma caixa de esmolas, que uma mulher foi ter com ele em tempo de fome, pedindo-lhe alimento.

– Para o culto de Deus, – respondeu, não há nada na caixa.

Ela então exclamou:

– Oh! rabino se não me alimentas e a meus sete filhos morremos de fome.

Ouvindo isto socorreu-a da sua bolsa. Passado algum tempo adoeceu e esteve à morte. Então os anjos intercederam com o Santo dos Santos – louvado seja Ele! – e disseram:

– Senhor do Universo, vós dissestes que quem preservasse uma alma de Israel era como se preservasse a vida do mundo inteiro, ides deixar morrer tão prematuramente Benjamim o honrado, que preservou a vida duma pobre mulher e seus sete filhos ?

No mesmo instante a sentença de morte que já estava lavrada foi rasgada, e mais vinte e dois anos acrescentados à sua vida.

O aroma da pureza

O rabbi Shim’on ben-Levi dizia: a quem quiser ser impuro [imoral] estão abertas as portas, ou seja não lhe faltarão boas ocasiões, quem ao contrário quer ser puro, encontrará ajuda. Essa afirmação era explicada na escola do rabbi Ishma’el com a seguinte parábola. Um homem vendia peixe e bálsamo. Quando chegava alguém para comprar peixe, o vendedor dizia: está tudo ali adiante, pesa e traz. Se ao invés disso  queria o bálsamo, o vendedor dizia: espere, peso eu, para que também eu sinta o aroma.

A cada um o seu

O rabbi Itzchaq dizia que mesmo que todos os homens sejam iguais ante a morte, para cada justo foi preparado um lar especial, segundo o seu mérito. E explicava com uma parábola. Quando o rei com os seus servos entra em uma cidade, todos passam através das mesmas portas; mas quando ficam para passar a noite, a cada um é designado um lugar segundo o seu grau.

Sempre limpos

O rabbi Eli’ezer ensinou: “arrependei-vos na véspera de morrer.” Então os discípulos disseram: “Mas como faz o homem para saber o dia no qual morrerá?” “Então quer dizer – rebatia o rabbi – que deve corrigir a si mesmo, porque pode morrer amanhã; desse modo transcorrerá a vida em penitência, como é dito: que as tuas vestes sejam sempre cândidas, e que o óleo para a tua cabeça nunca falte.” O rabbi Yochanan acrescentou a seguinte parábola. Um rei convidou os seus servidores para um banquete, mas não anunciou antecipadamente a hora estabelecida. Os vassalos prevenidos vestiram suas roupas melhores e aguardaram nos arredores do palácio, pensando que lá estivesse tudo pronto. Os tolos por sua vez foram aos seus negócios, pensando que para um banquete real fossem necessários longos preparativos. Repentinamente o rei chamou os convidados. Aqueles prevenidos apresentaram-se ante ele com as roupas limpas e com ricos ornamentos, enquanto os estultos vieram com as roupas sujas. Então o rei disse: “Quem se apresentou com as roupas limpas sente-se e coma; quem ao contrário vestiu roupas sujas fique em pé olhando.”

A vida do homem e a Lei de Deus

Quando Moisés subiu ao monte de Deus, os arcanjos perguntaram a Deus:

– Que quer entre nós este nascido de mulher?

– Ele veio – respondeu Deus -, para receber a Lei.

– Como é possível – prosseguiram eles – que Tu dês ao ser humano o tesouro que foi conservado pela criação do mundo por 974 gerações? Que é o homem para que Tu penses nele, e o filho do homem para que Tu o olhes? Omnipotente é o Teu nome, Senhor, sobre toda a terra e a Tua grandeza resplandece nos céus!

– Responde tu – disse Deus a Moisés.

– Tenho medo – disse ele – que eles me incinerem com o sopro de suas bocas.

– Segura-te no trono da minha glória e dá a eles a resposta.

– Senhor do universo – começou a dizer Moisés -, o que há na lei que me queres dar? Acaso não começa assim: Eu sou o Senhor Deus, que te resgatou do Egito. Porventura vós anjos morastes no Egito ou trabalhastes para o Faraó? Portanto de que vos serve esta lei? Mais adiante se diz: não sejam os vossos deuses os deuses estrangeiros; porventura vós vivestes entre idólatras? Depois é dito: observa o dia de sábado; porventura trabalhais para terdes necessidade de repouso? Diz-se ainda: não jures em falso; porventura entre vós há litígios? E ainda: honra o teu pai e a tua mãe; mas porventura tendes pais? Enfim, se diz: não mates, não cometas adultério, não roubes; mas entre vós se realizam ações como essas?

Deus aprovou Moisés e os arcanjos o amaram.

Da série Biblioteca Internacional, V. 5. e outras fontes.