Anatomia da Democracia

Extratos dos capítulos homônimos de A Democracia na América, Livro II “De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos”. Alexis de Tocqueville, Paris, 1840 d.C.

 

Tradução de Eduardo Brandão para a Editora Martins Fontes. 

I. A Influência da democracia no movimento intelectual dos Estados Unidos

Da fonte principal das crenças entre os povos democráticos

As crenças dogmáticas são mais ou menos numerosas, conforme os tempos. Elas nascem de diferentes maneiras e podem mudar de forma e de objeto; mas não há como fazer que não existam crenças dogmáticas, isto é, opiniões que os homens recebem em confiança e sem discutir. Se cada um tratasse de formar por si próprio todas as suas opiniões e buscar isoladamente a verdade nos caminhos desbravados apenas por si, não é provável que um grande número de homens viesse a se reunir em alguma crença comum.

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Não há no mundo um filósofo que não creia um milhão de coisas com fé em outrem e que não suponha muito mais verdades do que ele próprio estabelece.

Isso não só é necessário como desejável. Um homem que empreendesse examinar tudo por si mesmo só poderia conceder pouco tempo e atenção a cada coisa; esse trabalho manteria seu espírito numa agitação perpétua, que o impediria de penetrar profundamente uma verdade e fixar-se com solidez numa certeza. Sua inteligência seria a uma vez indepen­dente e frágil. É necessário, portanto, que entre os diversos objetos das opiniões humanas ele faça uma opção e adote muitas crenças sem discuti-las, a fim de aprofundar melhor um pequeno número delas, cujo exame reservou para si.

É verdade que todo homem que acolhe uma opinião com base na palavra alheia põe seu espírito na escravidão; mas é uma servidão salutar, que permite fazer bom uso da liberdade.

Portanto, é sempre necessário, não obstante o que suce­da, que a autoridade se encontre em algum ponto, no mun­do intelectual e moral. Seu lugar é variável, mas ela tem de ter um. A independência individual pode ser maior ou menor, mas não poderia ser ilimitada. Assim, a questão não é saber se existe uma autoridade intelectual nas eras democráticas, mas apenas onde está depositada e qual será sua medida.

Mostrei no capítulo anterior como a igualdade das con­dições fazia os homens conceberem uma espécie de incre­dulidade instintiva pelo sobrenatural e uma idéia elevadíssi­ma e, muitas vezes, exageradíssima da razão humana.

Portanto, os homens que vivem nesses tempos de igual­dade dificilmente são levados a colocar a autoridade intelectual a que se submetem fora e acima da humanidade. É neles mesmos ou em seus semelhantes que, comumente, procuram as fontes da verdade. Isso bastaria para provar que uma nova religião não seria capaz de se estabelecer nesses séculos e que todas as tentativas para fazê-la nascer não seriam apenas ímpias, mas também ridículas e insensatas. Pode-se prever que os povos democráticos não acreditarão facilmente nas missões divinas, que rirão dos novos profetas e quererão encontrar nos limites da humanidade, e não além dela, o árbi­tro principal de suas crenças.

Quando as condições são desiguais e os homens dessemelhantes, existem alguns indivíduos esclarecidíssimos, sapientíssimos e poderosíssimos por sua inteligência, e uma multidão ignorante e limitadíssima. As pessoas que vivem nos tempos de aristocracia são, pois, naturalmente, levadas a adotar como guia de suas opiniões a razão superior de um homem ou de uma classe, ao passo que são pouco dispostas a reconhecer a infalibilidade da massa.

O contrário sucede nas eras de igualdade.

À medida que os cidadãos se tomam mais iguais e mais semelhantes, a propensão de cada um a crer cegamente em certo homem ou em certa classe diminui. A disposição a crer na massa aumenta, e é cada vez mais a opinião que conduz o mundo.

Não apenas a opinião comum é o único guia que resta para a razão individual entre os povos democráticos, como possui, entre esses povos, uma força infinitamente maior do que em qualquer outro. Nos tempos de igualdade, os homens não têm nenhuma fé uns nos outros, por causa da sua similitude; mas essa mesma similitude lhes proporciona uma con­fiança quase ilimitada no juízo do público, porque não lhes parece verossímil que, tendo todos luzes idênticas, a verda­de não se encontre na maioria.

Quando o homem que vive nos países democráticos se compara individualmente com todos os que o rodeiam, sente com orgulho que é igual a cada um deles; mas quando enca­ra o conjunto de seus semelhantes e se situa ele próprio ao lado desse grande corpo, é logo sufocado por sua própria in­significância e por sua fraqueza.

Essa mesma igualdade que o toma independente de cada um dos seus concidadãos em particular entrega-o isolado e sem defesa à ação da maioria.

Portanto, o público possui entre os povos democráticos um poder singular, cuja idéia as nações aristocráticas nem sequer seriam capazes de conceber. Ele não persuade por suas crenças, ele as impõe e as faz penetrar nas almas por uma espécie de imensa pressão do espírito de todos sobre a inte­ligência de cada um.

Nos Estados Unidos, a maioria se encarrega de fornecer aos indivíduos uma enorme quantidade de opiniões já pron­tas, e os alivia assim da obrigação de constituir opiniões pró­prias. Existe lá um grande número de teorias em matéria de filosofia, de moral ou de política, que cada um adota desse modo, sem exame, com fé no público; e se examinarmos bem as coisas, veremos que a própria religião lá reina muito menos como uma doutrina revelada do que como uma opi­nião comum.

Sei que, entre os americanos, as leis políticas são tais que a maioria rege soberanamente a sociedade, o que aumenta muito o império que ela aí exerce naturalmente sobre a inte­ligência. Porque não há nada mais familiar ao homem do que reconhecer uma sabedoria superior naquele que o oprime.

De fato, essa onipotência política dá maioria nos Esta­dos Unidos aumenta a influência que as opiniões do público obteriam sem ela sobre o espírito de cada cidadão; mas não a funda. É na própria igualdade que devemos procurar as fontes dessa influência, não nas instituições mais ou menos populares que homens iguais podem criar para si. É de crer que o império intelectual da maioria seria menos absoluto num povo democrático submetido a um rei do que no seio de uma democracia pura; mas sempre será muito absoluto e, quaisquer que sejam as leis políticas que rejam os homens nas eras de igualdade, podemos prever que a fé na opinião comum se tomará aí uma espécie de religião, de que a maio­ria será o profeta.

Assim, a autoridade intelectual será diferente, mas não será menor; e, longe de crer que deva desaparecer, suponho que se tomaria facilmente grande demais e que poderia vir a encerrar enfim a ação da razão individual em limites mais estreitos do que convém à grandeza e à felicidade da espécie humana. Vejo claramente na igualdade duas tendências: uma, que leva o espírito de cada homem a novos pensamentos; a outra, que o reduziria de bom grado a não mais pensar. E percebo como, sob o império de certas leis, a democracia am­pliaria a liberdade intelectual que o estado social democráti­co favorece, de tal sorte que, após ter rompido todas as peias que certas classes ou homens outrora lhe impunham, o espí­rito humano se encadearia estreitamente às vontades gerais da maioria.

De algumas fontes de poesia nas nações democráticas

A poesia, a meu ver, é a busca e a pintura do ideal.

Quem, subtraindo uma parte do que existe, acrescen­tando alguns traços imaginários ao quadro, combinando certas circunstâncias reais, mas cujo concurso não exista, com­pleta e amplia a natureza, este é poeta. Assim, a poesia não terá por objetivo representar o verdadeiro, mas orná-lo e ofe­recer ao espírito uma imagem superior.

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Mas, nas democracias, o amor pelo gozo material, a ideia do melhor, a concorrência, o encanto próximo do sucesso, são como aguilhões que precipitam o passo de cada homem na trajetória que abraçou e o impedem de se afastar dela um só momento. O principal esforço da alma vai nesse sentido. A imaginação não se apagou, mas se consagra quase exclu­sivamente a conceber o útil e a representar o real.

A igualdade não apenas desvia os homens da pintura do ideal; ela diminui o número dos objetos a pintar.

A aristocracia, mantendo a sociedade imóvel, favorece a firmeza e a dureza das religiões positivas, assim como a esta­bilidade das instituições políticas.

Não apenas ela mantém o espírito humano na fé, mas o dispõe a adotar antes esta fé que aquela. Um povo aristocrático sempre será propenso a colocar potências intermediá­ rias entre Deus e o homem.

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A aristocracia leva naturalmente o espírito humano à contemplação do passado, e nele o fixa. A democracia, ao con­trário, dá aos homens uma espécie de repugnância instintiva pelo que é antigo. Nisso, a aristocracia é muito mais favorável à poesia, porque de ordinário as coisas crescem e se velam à medida que se distanciam; e, sob esse duplo aspecto, elas se prestam melhor à pintura do ideal.

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Por serem as diferentes classes de que se compõe um povo aristocrático muito separadas umas das outras e se conhecerem mal entre si, a imaginação sempre pode, ao representá-las, acrescentar algo ao real, ou tirar-lhe.

Nas sociedades democráticas, em que os homens são todos pequenos e semelhantes, cada um, ao se mirar, enxer­ga no mesmo instante todos os outros. Portanto os poetas que vivem nas eras democráticas jamais seriam capazes de tomar um homem em particular para tema de seu quadro, porque um objeto de grandeza medíocre, que percebemos distintamente de todos os lados, jamais se prestará ao ideal.

Assim, pois, a igualdade, ao se estabelecer na terra, es­gota a maior parte das antigas fontes da poesia.

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Pode-se igualmente prever que os poetas que vivem nas eras democráticas pintarão antes paixões e idéias do que pessoas e atos.

A linguagem, os costumes e as ações cotidianas dos homens nas democracias se recusam à imaginação do ideal. Essas coisas não são poéticas por si mesmas e, por sinal, deixariam de sê-lo, pelo fato de serem demasiado bem co­nhecidas de todos aqueles a quem alguém empreendesse delas falar. Isso força os poetas a penetrar sem cessar sob a superfície exterior que os sentidos lhes descobrem, a fim de entrever a própria alma. Ora, não há nada que se preste mais à pintura do ideal do que o homem assim considerado nas profundezas de sua natureza imaterial.

Não preciso percorrer o céu e a terra para descobrir um objeto maravilhoso cheio de contrastes, de grandezas e de pequenezas infinitas, de obscuridades profundas e de singu­lares clarezas, capaz ao mesmo tempo de suscitar a piedade, admiração, o desprezo, o terror. Basta-me considerar a mim mesmo: o homem sai do nada, atravessa o tempo e vai desa­parecer para sempre no seio de Deus. Só o vemos errar um momento no limite entre dois abismos, em que se perde.

Se o homem se ignorasse completamente, não seria poé­tico; porque não se pode pintar aquilo de que não se tem idéia. Se ele se visse claramente, sua imaginação permanece­ria ociosa e nada teria a acrescentar ao quadro. Mas o homem é bastante descoberto para que perceba algo de si mesmo, e bastante velado para que o resto se meta em trevas impene­tráveis, nas quais mergulha sem cessar, e sempre em vão, a fim de acabar de se apreender.

De algumas tendências particulares aos historiadores nas eras democráticas

Os historiadores que escrevem nas eras aristocráticas costumam fazer todos os acontecimentos dependerem da von­tade particular e do humor de certos homens, e relacionam com toda naturalidade aos menorces acidentes as revoluções mais importantes. Ressaltam com sagacidade as menores causas e, muitas vezes, não percebem as maiores.

Os historiadores que vivem nas eras democráticas mos­tram tendências totalmente contrárias.

A maioria deles não atribui ao indivíduo quase nenhu­ma influência sobre o destino da espécie, nem aos cidadãos sobre a sorte do povo. Em compensação, atribuem grandes causas gerais a todos os pequenos fatos particulares. Essas tendências opostas se explicam.

Quando os historiadores das eras aristocráticas correm os olhos pelo teatro do mundo, percebem inicialmente um número mínimo de atores principais que conduzem toda a peça.

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Quando, ao contrário, todos os cidadãos são independentes uns dos outros e cada um deles é fraco, não se descobre nenhum que exerça um poder muito grande, nem so­bretudo duradouro, sobre a massa. À primeira vista, os indivíduos parecem absolutamente impotentes sobre ela, e dir-se-ia que a sociedade caminha sozinha pelo livre e espontâneo concurso de todos os homens que a compõem.

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Quanto a mim, penso que não há época em que não se deva atribuir uma parte dos acontecimentos deste mundo a fatos gerais e outra parte a influências particulares. Essas duas causas sempre se encontram, apenas sua relação se diferen­cia. Os fatos gerais explicam mais coisas nas eras democráticas do que nas eras aristocráticas; as influências particulares, menos. Nos tempos de aristocracia, é o contrário.

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Os historiadores que procuram pintar o que sucede nas sociedades democráticas têm razão, portanto, de atribuir um peso considerável às causas gerais e de se aplicar em primei­ro lugar a descobri-las; mas erram ao negar inteiramente a ação particular dos indivíduos, por ser difícil encontrá-la e acompanhá-la.

Não apenas os historiadores que vivem nas eras demo­ cráticas são levados a atribuir a cada fato uma causa, como também são levados a ligar os fatos entre si e extrair daí um sistema.

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Os historiadores que vivem nos tempos democráticos não recusam, pois, apenas a alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino do povo, mas também retiram dos próprios povos a faculdade de modificar sua sorte e os submetem, seja a uma providência inflexível, seja a uma espécie de fata­lidade cega. Segundo eles, cada nação é irreversivelmente presa, por sua posição, sua origem, seus antecedentes, sua índole, a certo destino, que todos os seus esforços não seriam capazes de alterar. Eles tomam as gerações solidárias umas das outras e, remontando assim, de era em era e de aconte­cimentos necessários em acontecimentos necessários, até a origem do mundo, criam uma corrente estreita e imensa que envolve todo o gênero humano e o prende.

Não lhes basta mostrar como os fatos se produziram; comprazem-se também em apontar que não podiam aconte­cer de outro modo. Consideram uma nação que chegou a certo ponto de sua história e afirmam que ela foi obrigada a seguir o caminho que a conduziu até ali. Isso é mais fácil do que ensinar como ela teria podido fazer para seguir um ca­minho melhor.

Por que os povos democráticos mostram um amor mais ardente e mais duradouro pela igualdade do que pela liberdade

A liberdade manifestou-se aos homens em diferentes tempos e formas; ela não se prendeu exclusivamente a um estado social e podemos encontrá-la fora das democracias. Portanto, ela não poderia constituir o caráter distintivo dos tempos democráticos.

O fato particular e dominante que singulariza esses tem­pos é a igualdade das condições; a paixão principal que agita os homens nesses tempos é o amor a essa igualdade.

Não perguntem que encanto singular encontram os ho mens das eras democráticas em viver iguais, nem os motivos particulares que podem ter para se apegar tão obstinadamen­te à igualdade, mais do que aos outros bens que a sociedade lhes oferece. A igualdade constitui o caráter distintivo da épo­ca em que vivem; apenas isso basta para explicar que a pre­ferem a todo o resto.

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Os males que a ex­trema igualdade pode produzir só se manifestam pouco a pou­co; eles se insinuam gradativamente no corpo social; só são vistos de longe em longe e, quando se tomam mais violentos, o hábito já fez que não sejam mais sentidos.

Os bens que a liberdade proporciona só se revelam a longo prazo, e é sempre fácil desconhecer a causa que os faz nascer.

As vantagens da igualdade se fazem sentir desde já, e cada dia nós as vemos manar da sua fonte.

A liberdade política proporciona, de tempo em tempo, a certo número de cidadãos, prazeres sublimes.

A igualdade proporciona cada dia uma multidão de pequenos prazeres a cada homem. Os encantos da igualda­de são sentidos a todo instante, e estão ao alcance de todos, os mais nobres corações não são insensíveis a eles, e as almas mais vulgares deles fazem sua delícia. A paixão que a igualdade faz nascer deve, pois, ser ao mesmo tempo enér­gica e geral.

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Creio que os povos democráticos têm um gosto natural pela liberdade; entregues a si mesmos, eles a procuram, amam-na e condoem-se quando os afastam dela. Mas têm pela igualdade uma paixão ardente, insaciável, eterna, inven­cível; querem a igualdade na liberdade e, se não a podem obter, querem-na também na escravidão. Suportarão a po­breza, a submissão, a barbárie, mas não suportarão a aristo­cracia.

Isso é verdade em todos os tempos, sobretudo no nos­so. Todos os homens e todos os poderes que quiserem lutar contra essa força irresistível serão derrubados e destruídos por ela. Em nossos dias, a liberdade não pode se estabelecer sem seu apoio, e o próprio despotismo não poderia reinar sem ela.

II. A influência da democracia sobre os sentimentos

Do individualismo nos países democráticos

Mostrei como, nas eras de igualdade, cada homem bus­cava em si mesmo suas crenças; quero mostrar agora como, nessas mesmas eras, dirige todos os seus sentimentos para si próprio.

O individualismo é uma expressão recente que uma no­ vaidéia fez surgir. Nossos pais só conhecem o egoísmo.

O egoísmo é um amor apaixonado e exagerado, que leva o homem a referir tudo a si mesmo e a se preferir a tudo o mais.

O individualismo é um sentimento refletido e tranquuilo, que dispõe cada cidadão a se isolar da massa de seus seme­lhantes e a se retirar isoladamente com sua família e seus ami­gos; de tal modo que, depois de ter criado assim uma peque­ na sociedade para seu uso, abandona de bom grado a grande sociedade a si mesma.

O egoísmo nasce de um instinto cego; o individualismo procede muito mais de um juízo errôneo do que de um sen­timento depravado. Nasce tanto dos defeitos do espírito quan­to dos vícios do coração.

O egoísmo resseca o germe de todas as virtudes, o indi­vidualismo só esgota, a princípio, a fonte das virtudes públicas; mas, com o tempo, ataca e destrói todos as outras e termina se absorvendo no egoísmo.

O egoísmo é um vício tão antigo quanto o mundo. Não pertence mais a uma forma de sociedade do que a outra.

O individualismo é de origem democrática, e ameaça de­senvolver-se à medida que as condições se igualam.

Nos povos aristocráticos, as famílias permanecem du­rante séculos no mesmo estado, e muitas vezes no mesmo lugar. Isso toma, por assim dizer, todas as gerações contem­porâneas. A pessoa conhece quase todos os seus avós e os respeita; crê já perceber seus bisnetos e os ama. Obriga-se de bom grado com uns e outros, e com frequuência sacrifica suas fruições pessoais a esses seres que não existem mais ou ain­da não existem.

Além disso, as instituições aristocráticas têm por efeito li­gar estreitamente cada homem a vários de seus concidadãos.

Sendo as classes muito distintas e imóveis no seio de um povo aristocrático, cada uma delas se toma, para aquele que dela faz parte, uma espécie de pequena pátria, mais visível e mais cara do que a grande.

Como, nas sociedades aristocráticas, todos os cidadãos são postos em posições fixas, uns acima dos outros, resulta ainda que cada um deles sempre percebe acima de si um ho­mem cuja proteção lhe é necessária, e descobre abaixo um outro cujo concurso pode reclamar.

Os homens que vivem nas eras aristocráticas são, pois, quase sempre, ligados de uma maneira íntima a algo que está posto fora deles e não é raro sentirem-se dispostos a se es­quecerem de si mesmos. É verdade que, nesses mesmos sé­culos, a noção geral do semelhante é obscura e que ninguém pensa se dedicar à causa da humanidade; mas é comum as pessoas se sacrificarem a certos homens.

Nas eras democráticas, ao contrário, em que os deveres de cada indivíduo para com a espécie são muito mais claros, a dedicação para com um homem se toma cada vez mais rara: o vínculo das afeições humanas se estende e se relaxa.

Nos povos democráticos, novas famílias saem sem ces­sar do nada, outras nele caem sem cessar, e todas as que per­manecem mudam de fisionomia; a trama dos tempos se es­garça a cada instante, e o vestígio das gerações se apaga. As pessoas esquecem facilmente os que precederam, e não têm a menor idéia dos que sucederão. Apenas os mais próximos interessam.

Como cada classe se aproxima das outras e se mistura com elas, seus membros se tornam indiferentes e como que estranhos uns aos outros. A aristocracia fizera de todos os ci­dadãos uma longa cadeia que ia do campônio ao rei; a de­mocracia rompe a cadeia e põe cada elo à parte.

À medida que as condições se igualam, encontramos um número maior de indivíduos que, apesar de já não serem ricos nem poderosos o bastante para exercer uma grande influência sobre a sorte de seus semelhantes, adquiriram ou conservaram luzes e bens suficientes para poderem se manter por si sós. Não devem nada a ninguém, não esperam, por assim dizer, nada de ninguém; acostumam-se a se considerar sempre isoladamente, imaginam de bom grado que seu des­tino inteiro está em suas mãos.

Assim, não apenas a democracia faz cada homem es­quecer de seus ancestrais, mas lhe oculta seus descendentes e o separa de seus contemporâneos; ela o volta sem cessar para si mesmo e ameaça encerrá-lo, enfim, por inteiro, na solidão de seu próprio coração.

Do gosto pelo bem-estar material na América

Na América, a paixão pelo bem-estar material nem sem­pre é exclusiva, mas é geral; se nem todos a experimentam da mesma maneira, todos a sentem. A preocupação com sa­tisfazer as menores necessidades do corpo e de prover às pe­quenas comodidades da vida toma conta universalmente dos espíritos.

Algo semelhante se manifesta cada vez mais na Europa.

Dentre as causas que produzem esses efeitos análogos nos dois mundos, há várias que se aproximam do meu tema e que devo indicar.

Quando as riquezas são fixadas hereditariamente nas mesmas famílias, vê-se um grande número de homens que desfrutam do bem-estar material, sem ter o gosto exclusivo pelo bem-estar.

O que prende mais vivamente o coração humano não é a posse sossegada de um objeto precioso, mas o desejo im­perfeitamente satisfeito de possuí-lo e o medo incessante de perdê-lo.

Nas sociedades aristocráticas, os ricos, não tendo conhecido um estado diferente do deles, não temem mudar de condição. E não conseguem imaginar outra. O bem-estar ma­terial não é, pois, para eles, o objetivo da vida; é uma manei­ra de viver. Eles o consideram, de certa forma, como a existên­cia mesma e desfrutam-no sem pensar.

Sendo assim satisfeito sem dificuldade e sem temor o gosto natural e instintivo que todos os homens têm pelo bem-estar, sua alma se volta para outra direção e se prende a algum empreendimento mais difícil e maior, que a anima e a arrasta.

Assim, no próprio seio das fruições materiais, os mem­ bros de uma aristocracia revelam muitas vezes um desprezo orgulhoso por essas mesmas fruições e encontram forças singulares quando finalmente têm de privar-se delas. Todas as revoluções que perturbaram ou destruíram as aristocracias mostraram com que facilidade pessoas acostumadas com o supérfluo podiam prescindir do necessário, ao passo que ho­mens que chegaram laboriosamente à comodidade mal po­dem viver depois de a ter perdido.

Se dos níveis superiores passo às classes baixas, verei efeitos análogos produzidos por causas diferentes.

Nas nações em que a aristocracia domina a sociedade e a mantém imóvel, o povo acaba se acostumando à pobreza, como os ricos à sua opulência. Uns não se preocupam com o bem-estar material, porque o possuem sem dificuldade; os outros nem pensam no assunto, porque perderam a espe­rança de adquiri-lo e não o conhecem bastante para desejá-lo.

Nessas espécies de sociedade, a imaginação do pobre é projetada no outro mundo; as misérias da vida real a limitam; mas ela lhes escapa e vai procurar seus deleites fora dela.

Quando, ao contrário, os níveis sociais são confundidos e os privilégios destruídos, quando os patrimônios se divi­dem e a luz e a liberdade se difundem, a vontade de adquirir o bem-estar se apresenta à imaginação do pobre e o medo de perdê-lo ao espírito do rico. Um sem-número de fortunas medíocres se estabelece. Os que as possuem têm fruições ma­teriais suficientes para conceber o gosto por tais fruições, e insuficientes para se contentar com elas. Conquistam-nas sem­pre à custa de muito esforço e só se desfazem delas temerosos.

Prendem-se pois, sem cessar, a perseguir ou a preservar essas fruições tão preciosas, tão incompletas e tão fugidias.

Busco uma paixão que seja natural a homens que a obscuridade da origem ou a mediocridade da fortuna exci­tam e limitam, e não encontro uma mais apropriada do que o gosto pelo bem-estar. A paixão pelo bem-estar material é essencialmente uma paixão de classe média; ela cresce e se amplia com essa classe; toma-se preponderante com ela. É a partir dessa classe que alcança os níveis superiores da sociedade e desce até o seio do povo.

Não encontrei na América nenhum cidadão tão pobre que não lançasse um olhar de esperança e de cobiça nas fruições dos ricos, e cuja imaginação não se apossasse de antemão dos bens que a sorte se obstinava a lhe recusar.

Por outro lado, nunca percebi entre os ricos dos Es­tados Unidos esse soberbo desdém pelo bem-estar material que se revela às vezes até mesmo no seio das aristocracias mais opulentas e mais dissolutas.

A maior parte daqueles ricos foi pobre; eles sentiram o aguilhão da necessidade; por muito tempo combateram uma fortuna adversa e, agora que a vitória foi alcançada, sobrevi­vem a eles as paixões que acompanharam sua luta; eles fi­cam como que embriagados no meio dessas pequenas frui­ções que perseguiram por quarenta anos.

Não é só nos Estados Unidos, mas também em outros lugares, que encontramos um número de ricos bastante gran­de que, tendo seus bens por herança, possuem sem esforços uma opulência que não adquiriram. Mas mesmo esses não se mostram menos apegados às fruições da vida material. O amor ao bem-estar tomou-se o gosto nacional e dominante; a grande corrente das paixões humanas vai nessa direção e a tudo arrasta em seu curso.

Como a aristocracia poderia originar-se da indústria

Quando um artesão se dedica sem cessar e unicamente à fabricação de um só objeto, acaba realizando esse trabalho com uma destreza singular. Mas perde, ao mesmo tempo, a faculdade geral de aplicar seu espírito à direção do trabalho. Torna-se cada dia mais hábil e menos industrioso, e pode­mos dizer que, nele, o homem se degrada à medida que o operário se aperfeiçoa.

Que devemos esperar de um homem que passou vinte anos da sua vida fazendo cabeças de alfinetes? A que pode se aplicar, agora, essa poderosa inteligência humana que existe nele e que tantas vezes revolveu o mundo, a nâo ser para procurar o melhor meio de fazer cabeças de alfinete?

Quando um operário consumou dessa maneira uma por­ção considerável de sua existência, seu pensamento deteve- se para sempre perto do objeto cotidiano de seus labores; seu corpo contraiu certos hábitos fixos de que não lhe é mais permitido desfazer-se. Numa palavra, ele não pertence mais a si mesmo, mas sim à profissão que escolheu. Foi em vão que as leis e os costumes quebraram em tomo desse homem todas as barreiras e lhe abriram de todos os lados mil caminhos diferentes para a fortuna; uma teoria industrial mais poderosa do que os costumes e as leis prendeu-o a um ofício, e não raro a um lugar que não pode mais deixar. Ela lhe atribuiu na sociedade certa posição de que não pode mais sair. No meio do movimento universal, tomou-o imóvel.

À medida que o princípio da divisão do trabalho recebe uma aplicação mais completa, o operário se toma mais fra­co, mais bitolado e mais dependente. A arte faz progressos, o artesão retrocede. Por outro lado, à medida que fica mais manifesto que os produtos de uma indústria são tão mais per­feitos e tão mais baratos quanto mais vasta a manufatura e maior o capital, homens muito ricos e muito esclarecidos se apresentam para explorar indústrias que, até então, tinham sido entregues a artesãos ignorantes ou inábeis. A grandeza dos esforços necessários e a imensidão dos resultados os atraem.

Assim, portanto, ao mesmo tempo que rebaixa sem ces­ sar a classe dos operários, a ciência industrial eleva a dos pa­trões.

Enquanto o operário concentra sua inteligência cada vez mais no estudo de um só detalhe, o patrão passeia seus olhos por um conjunto cada dia mais vasto e seu espírito se ex­pande na mesma proporção que o do outro se estreita. Em breve, o segundo não precisará mais que da força física sem a inteligência; o primeiro necessita da ciência, e quase do gê­nio, para ser bem-sucedido. Um se parece cada vez mais com o administrador de um vasto império, o outro com um bruto.

Aqui, portanto, patrão e o operário não têm nada de se­melhante, e se diferenciam cada dia mais. Só se ligam um ao outro como os dois elos extremos de uma longa cadeia. Ca­ da um ocupa um lugar que é feito para si e do qual não sai. Um se encontra numa dependência contínua, estreita e necessária em relação ao outro, e parece nascido para obede­cer, como o outro para comandar.

Que é isso, senão uma aristocracia?

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Não apenas os ricos não estão solidamente unidos entre si, mas podemos dizer que não existe um vínculo verdadeiro entre o pobre e o rico.

Eles não estão perpetuamente fixados um perto do outro; a cada instante o interesse os aproxima e os separa. O operá­rio depende em geral dos patrões, mas não de determinado patrão. Esses dois homens se veem na fábrica e não se conhe­cem fora dela e, ao passo que se tocam num ponto, permane­cem muito afastados em todos os outros. O manufatureiro não pede ao operário mais que seu trabalho, e o operário dele não espera mais que o salário. Um não se compromete a proteger, nem o outro a defender, e os dois não são ligados de forma permanente nem pelo hábito, nem pelo dever.

A aristocracia que o negócio faz nascer quase nunca se fixa no meio da população industrial que dirige; sua finali­dade não é governá-la, mas servir-se dela.

Uma aristocracia assim constituída não poderia ter gran­de influência sobre aqueles que ela emprega; e, se chega um momento a dominá-los, logo lhe escapam. Ela não sabe que­rer e não pode agir.

A aristocracia territorial dos séculos passados estava obrigada, pela lei, ou se acreditava obrigada pelos costumes, a socorrer seus servidores e aliviar suas misérias. Mas a aris­tocracia manufatureira de nossos dias, depois de ter empobrecido e embrutecido os homens de que se serve, entrega- os em tempos de crise à caridade pública para alimentá-los. Isso resulta naturalmente do que precede. Entre o operário e o patrão, as relações são frequentes, mas não há verdadeira associação.

Penso que, tudo somado, a aristocracia manufatureira que vemos se elevar diante de nossos olhos é uma das mais duras que já apareceu na terra; mas ela é, ao mesmo tempo, uma das mais restritas e menos perigosas.

Todavia, é para esse lado que os amigos da democracia devem dirigir sem cessar e com inquietude seus olhares; por­ que, se algum dia a desigualdade permanente das condições e a aristocracia vierem a penetrar novamente no mundo, po­demos predizer que é por essa porta que entrarão.

III. A influência da democracia sobre os costumes propriamente ditos

Como os americanos compreendem a igualdade entre o homem e a mulher

Há gente na Europa que, confundindo os atributos dife­rentes dos sexos, pretende fazer do homem e da mulher seres não apenas iguais, mas semelhantes. Essa gente dá a um e à outra as mesmas funções, impõem-lhes os mesmos deveres e concedem-lhes os mesmos direitos; misturam-nos em todas as coisas, trabalhos, prazeres, negócios. É fácil conceber que esse esforço para igualar assim um sexo ao outro degrada a ambos; e que dessa mescla grosseira das obras da natureza nunca sairia nada mais que homens fracos e mu­lheres desonestas.

Não foi assim que os americanos compreenderam a es­pécie de igualdade democrática que pode se estabelecer entre a mulher e o homem. Pensaram que, como a natureza tinha estabelecido tamanha variedade entre a constituição física e moral do homem e da mulher, seu objetivo claramente indi­cado era dar a suas diferentes faculdades um emprego dife­rente; e julgaram que o progresso não consistia em pôr seres dessemelhantes para fazer mais ou menos as mesmas coisas, mas sim em conseguir que cada um deles realizasse o me­lhor possível sua tarefa. Os americanos aplicaram aos dois sexos o grande princípio de economia política que domina em nossos dias a indústria. Dividiram cuidadosamente as funções do homens e da mulher, para que o grande trabalho social fosse mais bem realizado.

Como o aspecto da sociedade, nos Estados Unidos, é ao mesmo tempo agitado e monótono

Nos povos aristocráticos, cada homem está mais ou me­nos fixo em sua esfera; mas os homens são prodigiosamente dessemelhantes; têm paixões, idéias, hábitos e gostos essencialmente diferentes. Nada entre eles se move, tudo se dife­rencia.

Nas democracias, ao contrário, todos os homens são se­melhantes e fazem coisas mais ou menos idênticas. São su­jeitos, é verdade, a grandes e contínuas vicissitudes; mas, como os mesmos sucessos e os mesmos reveses voltam continuamente, somente o nome dos atores é diferente, a peça é a mesma. O aspecto da sociedade americana é agitado, por­ que os homens e as coisas mudam constantemente; e é monótono, porque todas as mudanças são iguais.

Os homens que vivem nas eras democráticas têm mui­tas paixões; no entanto, a maior parte delas conduz ao amor às riquezas ou vem dele. Não vem do fato de que a alma de­las é menor, mas de que a importância do dinheiro é, então, realmente maior.

Quando os concidadãos são todos independentes e in­diferentes, é só pagando que se pode obter o concurso de cada um deles, o que multiplica ao infinito o uso da riqueza e aumenta seu valor.

Como o prestígio que se prendia às coisas antigas desa­pareceu, o nascimento, a posição, a profissão, já não distin­guem os homens, ou mal os distinguem; não resta mais que o dinheiro a criar diferenças visíveis entre eles e capaz de colocar alguns numa posição fora do ordinário. A distinção que nasce da riqueza aumenta com o desaparecimento e a diminuição de todas as demais.

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A variedade desaparece no seio da espécie humana; as mesmas maneiras de agir, de pensar e de sentir são encontradas em todos os cantos do mundo. Isso não decorre apenas do fato de que todos os povos con­vivem mais e se copiam com maior fidelidade, mas de que em todos os países os homens, afastando-se cada vez mais das idéias e dos sentimentos particulares de uma casta, de uma profissão, de uma família, alcançam simultaneamente ao que mais próximo está da constituição do homem, que é o mesmo em toda a parte. Tornam-se semelhantes, assim, ape­sar de não se terem imitado. São como viajantes espalhados numa grande floresta, cujos caminhos levam todos para o mesmo ponto. Se todos percebem ao mesmo tempo o ponto central e dirigem para ele seus passos, se aproximam insen­sivelmente uns dos outros, sem se buscar, sem perceber e sem se conhecer, e ficarão enfim surpresos ao se verem reunidos no mesmo lugar. Todos os povos que tomam como objeto de seus estudos e de sua imitação, não determinado homem, mas o próprio homem, acabarão se encontrando nos mes­mos costumes, como esses viajantes na clareira.

Por que as grandes revoluções serão raras

Quase todas as revoluções que mudaram a face dos po­vos foram feitas para consagrar ou destruir a desigualdade. Afaste as causas secundárias que produziram as grandes agi­tações dos homens e chegará quase sempre à desigualdade. Ou foram os pobres que quiseram tomar os bens dos ricos, ou foram os ricos que tentaram agrilhoar os pobres. Portanto, se você fundar um estado de sociedade em que cada um tenha algo a guardar e pouco a tomar, terá feito muito pela paz do mundo.

Não ignoro que, num grande povo democrático, sempre há cidadãos paupérrimos e cidadãos riquíssimos; mas os pobres, em vez de constituírem a imensa maioria da nação, como se dá em nossos dias nas sociedades aristocráticas, são em pequeno número e a lei não os prendeu uns aos outros pelos laços de uma miséria irremediável e hereditária

Os ricos, por sua vez, são esparsos e impotentes; não têm privilégios que atraiam os olhares; sua riqueza mesma, não estando mais incorporada à terra e representada por ela, é inapreensível e como que invisível. Do mesmo modo que não há mais estirpes de pobres, não há mais estirpes de ricos; estes saem cada dia do seio da multidão e retomam a ele sem cessar. Portanto, não formam uma classe à parte, que se pos­sa facilmente definir e espoliar; e prendendo-se de resto por mil fios secretos à massa de seus concidadãos, o povo não poderia atingi-los sem atingir a si mesmo. Entre esses dois extremos de sociedades democráticas encontra-se uma mul­tidão incalculável de homens quase iguais, que, sem ser pre­cisamente nem ricos nem pobres, possuem bens suficientes para desejar a ordem e não têm bens em tal quantidade que provoque a cobiça.

Estes são naturalmente inimigos dos movimentos vio­lentos; sua imobilidade mantém em repouso tudo o que se en­contra acima e abaixo deles e garante a estabilidade do corpo social.

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Não pretendo que os homens que vivem nas sociedades democráticas sejam naturalmente imóveis; penso, ao contrá­ rio, que reina no seio de tal sociedade um movimento eterno e que ninguém nela conhece o repouso; mas creio que os homens nela se agitam dentro de certos limites que não ul­trapassam. Variam, alteram ou renovam todos os dias as coi­sas secundárias; tomam o maior cuidado para não tocar nas principais. Apreciam a mudança, mas temem as revoluções.

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Se a América passar um dia por grandes revoluções, elas serão provocadas pela presença dos negros no território dos Estados Unidos: isto é, não será a igualdade de condições, mas sua desigualdade que as fará nascer.

Quando as condições são iguais, cada um se isola em si mesmo e esquece o público.

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De fato, há pouca gente ociosa nas nações democráticas. A vida transcorre aí no meio do movimento e do barulho, e os homens se entregam a tal ponto à ação que lhes resta pouco tempo para pensar. O que quero notar sobretudo é que, não apenas eles são ocupados, mas que suas ocupações os apaixonam. Estão perpetuamente em ação e cada uma das suas ações absorve sua alma; o ardor que introduzem nos negócios os impede de se inflamar pelas idéias.

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Enquanto, no seio de um povo semelhante, as influên­cias individuais são fracas e quase nulas, o poder exercido pela massa sobre o espírito de cada indivíduo é enorme. Ex­pliquei os motivos disso em outro passo. O que quero dizer neste momento é que seria um equívoco acreditar que isso depende unicamente da forma do governo e que a maioria desse povo deve perder seu império intelectual junto com seu poder político.

Nas aristocracias, os homens muitas vezes têm uma gran­deza e uma força que lhes são próprias. Quando se acham em contradição com a maioria de seus semelhantes, recolhem-se em si mesmos, em si se amparam e se consolam. O mesmo não se dá entre os povos democráticos. Neles, o fa­vor público parece tão necessário quanto o ar que se respira e é, por assim dizer, não viver, estar em desacordo com a mas­sa. Esta não precisa empregar as leis para dobrar os que não pensam como ela. Basta-lhe desaprová-las. O sentimento de seu isolamento e de sua impotência logo as acabrunha e as desespera.

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Não importa como se organizem e se ponderem os poderes de uma sociedade democrática, será sempre dificílimo acreditar no que a massa rejeita e profes­sar o que ela condena.

Isso contribui maravilhosamente para a estabilidade das crenças.

Quando uma opinião se firma num povo democrático e se estabelece no espírito da maioria, ela subsiste em seguida por si mesma e se perpetua sem esforços, porque ninguém a ataca. Os que a tinham repelido de início como equivocada acabam recebendo-a como geral, e os que continuam a com­ batê-la no fundo do coração não o demonstram, mas tomam o máximo cuidado para não se empenhar numa luta perigosa e inútil.

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O que mais temo para as gerações vindouras não são as revo­luções.

Se os cidadãos continuarem a se encerrar cada vez mais estreitamente no círculo dos pequenos interesses domésticos e a nele se agitar sem descanso, podemos apreender que aca­bem se tornando como que inacessíveis a essas grandes e poderosas emoções públicas que perturbam os povos, mas os desenvolvem e renovam. Quando vejo a propriedade tornar-se tão móvel e o amor à propriedade tão inquieto e tão ardente, não posso me impedir de temer que os homens che­guem ao ponto de encarar toda teoria nova como um perigo, toda inovação como uma incômoda perturbação, todo progres­so social como um primeiro passo em direção a uma revolu­ção, e se recusem inteiramente a se mover, com medo de se­ rem arrastados. Estremeço, devo confessar, com a idéia de que eles se deixem enfim possuir tão bem por um covarde amor aos prazeres presentes que o interesse de seu futuro mesmo e do de seus descendentes desapareça, e prefiram seguir lan­guidamente o curso de seu destino a fazer, se necessário, um súbito e enérgico esforço para corrigi-lo.

Muitos acreditam que as novas sociedades vão mudar de fisionomia cada dia, e eu temo que elas acabem por se fixar demasiado invariavelmente nas mesmas instituições, nos mesmos preconceitos, nos mesmos costumes; de tal sorte que o gênero humano se detenha e se bitole; que o espírito se volte e torne a se voltar eternamente para si mesmo, sem produzir novas idéias; que o homem se esgote em pequenos movimentos solitários e estéreis e que, movendo-se sem ces­sar, a humanidade não avance mais.

IV. Da influência que as ideias e os sentimentos democráticos exercem sobre a sociedade política

A igualdade dá naturalmente aos homens o gosto pelas instituições livres

A igualdade, que toma os homens independentes uns dos outros, os faz contrair o hábito e o gosto de, em suas ações particulares, seguir tão somente sua vontade. Essa inteira inde­pendência, de que desfrutam continuamente ante seus iguais e no uso da vida privada, os dispõe a considerar com descontentamento toda autoridade e lhes sugere, ao contrário, a idéia e o amor à liberdade política. Os homens que vivem nesse tempo caminham pois numa trilha natural que os leva às insti­tuições livres. Tome um deles ao acaso; remonte, se puder, até seus instintos primitivos e descobrirá que, entre os diferentes governos, aquele que ele primeiro concebe e mais apreça é o governo cujo chefe ele elegeu e cujos atos ele controla.

De todos os efeitos políticos que a igualdade de condi­ções produz, é esse amor à independência que primeiro cha­ma a atenção e com que mais os espíritos tímidos se apavo­ram, e podemos dizer que estão totalmente equivocados por se apavorarem, porque a anarquia tem características mais as­sustadoras nos países democráticos do que em outros. Como os cidadãos não têm nenhuma influência uns sobre os outros, no instante em que o poder nacional que contém to­dos eles em seu devido lugar falta, parece que a desordem logo vai atingir seu ápice e que, como cada cidadão se retira para seu canto, o corpo social vai se encontrar de repente reduzido a poeira.

Estou convencido todavia de que a anarquia não é o mal principal que os tempos democráticos devem temer, mas o menor.

A propriedade produz, de fato, duas tendências: uma leva diretamente os homens à independência e pode impeli-los de repente à anarquia, a outra os conduz por um caminho mais longo, mais secreto, porém mais seguro, à servidão.

Os povos veem facilmente a primeira e resistem a ela; deixam-se levar pela outra sem a ver; é particularmente im­portante mostrá-la.

Que as idéias dos povos democráticos em matéria de governo são naturalmente favoráveis à concentração dos poderes

A ideeia de poderes secundários, situados entre o sobe­rano e os súditos, se apresenta naturalmente à imaginação dos povos aristocráticos, porque esses poderes encerravam em seu seio indivíduos ou famílias que o nascimento, as lu­zes, as riquezas, mantinham sem par e pareciam destinados a comandar. Essa mesma ideeia está naturalmente ausente do espírito dos homens nas eras de igualdade, por motivos con­trários; em tais tempos, ela só pode ser introduzida artificial­mente e só é assimilada com dificuldade; ao passo que con­cebem, por assim dizer, sem pensar, a ideia de um poder único e central que conduz todos os cidadãos por si mesmo.

Em política, aliás, como em filosofia e em religião, a in­teligência dos povos democráticos recebe com delícia as ideias simples e gerais. Os sistemas complicados a repelem e ela se compraz em imaginar uma grande nação em que todos os cidadãos se assemelham a um só modelo e são dirigidos por um só poder.

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A ideia de um direito inerente a certos indivíduos desaparece rapidamente do espírito dos homens; a ideia do direito onipotente e, por assim dizer, único da sociedade vem tomar seu lugar. Essas idéias se arraigam e crescem à medi­da que as condições se tomam mais iguais e os homens mais semelhantes; a igualdade as faz nascer e elas apressam por sua vez os progressos da igualdade.

Na França, onde a revolução de que falo é mais avançada do que em qualquer outro povo da Europa, essas mesmas opiniões se apoderaram inteiramente da inteligência. É só ou­vir atentamente a voz de nossos diferentes partidos para constatar que não há nenhum que não as adote. A maioria deles estima que o governo age mal; porém todos pensam que o governo deve agir sem cessar e meter-se em tudo. Os mesmos que se combatem mais rudemente não deixam de concordar sobre esse ponto. A unidade, a ubiquidade, a oni­potência do poder social, a uniformidade de suas regras, cons­tituem o traço saliente que caracteriza todos os sistemas po­líticos dados à luz em nossos dias. Encontramo-los no fundo das mais esquisitas utopias. O espírito humano ainda perse­gue essas imagens quando sonha.

Que os sentimentos dos povos democráticos estão de acordo com suas ideias para levá-los a concentrar o poder

Como não têm nem superiores, nem inferiores, nem asso­ciados habituais e necessários, os homens que habitam os países democráticos se voltam espontaneamente para si mes­mos e se consideram isoladamente. Tive a oportunidade de mostrá-lo demoradamente quando tratei do individualismo.

Portanto, é sempre com certo esforço que esses homens largam seus negócios particulares para se ocupar dos negó­cios comuns; sua inclinação natural é deixá-los exclusivamen­te ao encargo do representante visível e permanente dos in­teresses coletivos, que é o Estado.

Não apenas eles não têm naturalmente o gosto de se ocupar das coisas públicas, mas em geral falta-lhes tempo para isso. A vida privada é tão ativa nos tempos democráticos, tão agitada, tão cheia de desejos, de trabalhos, que quase não resta mais energia nem tempo para a vida política de cada homem.

Que tais propensões não são irreversíveis, não sou eu quem vai negar, pois meu objetivo principal ao escrever este livro foi combatê-las. Sustento apenas que, em nossos dias, uma força secreta as desenvolve sem cessar no coração hu­mano e que basta não as deter para que elas tomem conta dele.

Tive igualmente a oportunidade de mostrar como o cres­cente amor ao bem-estar e a natureza móvel da propriedade faziam os povos democráticos temerem a desordem mate­rial. O amor à tranquuilidade pública muitas vezes é a única paixão política que esses povos conservam, e ela se toma mais ativa e mais poderosa à medida que todas as outras se debi­litam e morrem; isso dispõe naturalmente os cidadãos a dar sem cessar novos direitos ao poder central, ou a deixar que os tome esse poder que lhes parece ser o único a ter o inte­resse e os meios de defendê-los da anarquia, defendendo-se ele próprio.

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Esse ódio imortal e cada vez mais aceso que anima os povos democráticos contra os menores privilégios favorece singularmente a concentração gradual de todos os direitos po­líticos nas mãos do único representante do Estado. O sobera­ no, estando necessária e incontestavelmente acima de todos os cidadãos, não estimula a inveja de nenhum deles, e cada um crê tomar de seus iguais todas as prerrogativas que ele lhe concede.

O homem das eras democráticas só obedece com extre­ma repugnância a seu vizinho, que é seu igual; recusa-se a reconhecer a este luzes superiores às suas; desconfia da sua justiça e vê com inveja seu poder; teme-o e despreza-o; gos­ta de lhe fazer sentir a cada instante a dependência comum em que ambos se acham quanto ao mesmo amo.

Que entre as nações européias de nossos dias opoder soberano aumenta conquanto os soberanos sejam menos estáveis

Em toda a parte o Estado tende cada vez mais a dirigir por si mes mo os menores cidadãos e a conduzir sozinho cada um de­les nos menores negócios.

Quase todos os estabelecimentos caridosos da antiga Eu­ropa estavam nas mãos de particulares ou de corporações; caíram todos mais ou menos sob a dependência do sobera­no e, em vários países, são regidos por ele. O Estado assu­miu quase sozinho a tarefa de dar pão aos que têm fome, socorro e um asilo aos enfermos, trabalho aos ociosos; ele se fez reparador quase único de todas as misérias.

A educação, tanto quanto a caridade, tomou-se na maior parte dos povos de nossos dias uma tarefa nacional. O Es­tado recebe e muitas vezes toma a criança dos braços da mãe para confiá-la a seus agentes; é ele que se encarrega de inspirar sentimentos e fornecer idéias a cada geração. A uniformidade reina nos estudos como em tudo o mais; a diver­sidade, como a liberdade, desaparecem deles a cada dia.

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Nos povos aristocráticos, o poder social se limitava comumente a dirigir e a vigiar os cidadãos em tudo o que tinha uma relação direta e visível com o interesse nacional, mas deixava-os de bom grado entregues a seu livre-arbítrio em tudo o mais. Nesses povos, o governo parecia esquecer com freqüência que há um ponto em que as faltas e as misérias dos indivíduos comprometem o bem-estar universal e que impedir a ruína de um particular às vezes deve ser um as­sunto público.

As nações democráticas de nosso tempo pendem para um excesso contrário.

É evidente que a maioria de nossos príncipes não quer apenas dirigir o povo inteiro; dir-se-ia que eles se julgam responsáveis pelas ações e pelo destino individual de seus súditos, que empreenderam conduzir e esclarecer cada um deles nos diferentes atos de sua vida e, se preciso, torná-lo feliz independentemente da vontade dele.

Por sua vez os particulares veem cada vez mais da mes­ma forma o poder social; em todas as suas necessidades, eles o chamam em seu socorro e voltam a cada instante para ele seus olhares, como se fosse um preceptor ou um guia. Afirmo que não há país da Europa em que a administra­ção pública tenha se tomado não apenas mais centralizada, senão também mais inquisitiva e mais detalhada; em toda a parte ela penetra mais fundo do que outrora nos negócios pri­vados; ela regula à sua maneira mais ações, e ações meno­res, e se estabelece cada vez mais todos os dias, ao lado, em torno e acima de cada indivíduo, para assisti-lo, aconselhá-lo e coagi-lo.

Que espécie de despotismo as nações democráticas devem temer

Parece que, se o despotismo viesse se estabelecer entre as nações democráticas de nossos dias, teria [suas próprias] caracte­rísticas: seria mais extenso e mais doce, e degradaria os ho­mens sem os atormentar.

Não duvido de que, em tempos de luzes e igualdade como os nossos, os soberanos consigam reunir facilmente todos os poderes públicos e penetrar mais habitual e profundamente no círculo dos interesses privados do que qualquer um dos soberanos da Antiguidade foi capaz de fazer. Mas essa mesma igualdade, que facilita o despotismo, o tempera; vimos como, à medida que os homens são mais semelhantes e mais iguais, os modos públicos se tornam mais humanos e mais doces; quando nenhum cidadão tem um grande poder nem gran­ des riquezas, a tirania carece, de certa forma, de ocasião e de teatro. Se todas as fortunas são medíocres, as paixões são naturalmente contidas, a imaginação limitada, os prazeres sim­ples. Essa moderação universal modera o próprio soberano e detém em certos limites o elã desordenado de seus desejos.

Independentemente dessas razões tiradas da própria na­ tureza do estado social, poderia acrescentar muitas outras que tomarei fora do meu tema; mas quero ater-me aos limites que me fixei.

Os governos democráticos poderão se tornar violentos e cruéis em certos momentos de grande efervescência e de gran­des perigos; mas essas crises serão raras e passageiras.

Quando penso nas pequenas paixões dos homens de nossos dias, na languidez de seus costumes, na extensão das suas luzes, na pureza da sua religião, na candura da sua moral, em seus hábitos laboriosos e ordenados, no comedimento que quase todos conservam tanto no vício como na virtude, não temo que encontrem, em seus chefes, tiranos, mas antes tutores.

Creio pois que a espécie de opressão com que os povos democráticos são ameaçados não se parecerá em nada com a que a precedeu no mundo; nossos contemporâneos não poderiam encontrar uma imagem dela em suas lembranças. Procuro em vão em mim mesmo uma expressão que reproduza exatamente a idéia que formo dela e a encerra; as ve­lhas palavras – despotismo e tirania – não convêm. A coisa é nova, é preciso pois procurar defini-la, já que não posso no­meá-la.

Quero imaginar sob que novos traços o despotismo po­deria produzir-se no mundo: vejo uma multidão incalculável de homens semelhantes e iguais que giram sem repouso em torno de si mesmos para conseguir pequenos e vulgares prazeres com que enchem sua alma. Cada um deles, retirado à parte, é como que alheio ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares formam para ele toda a es­pécie humana; quanto ao resto de seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os mas não os sente – cada um só existe em si mesmo e para si mesmo e, se ainda lhe resta uma família, podemos dizer pelo menos que pátria ele não tem.

Acima desses se ergue um poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de assegurar o proveito e zelar pela sor­te deles. É absoluto, detalhado, regular, previdente e doce. Ele se pareceria com o poder paterno se, como este, tivesse por objeto preparar os homens para a idade viril; mas, ao contrário, procura tão-somente fixá-los de maneira irreversível na infância; ele gosta de que os cidadãos se regozijem, contanto que não pensem em outra coisa que regozijar-se. Trabalha de bom grado para a felicidade deles; mas quer ser o único agente e o único árbitro dela; provê à segurança deles, prevê e garante suas necessidades, facilita seus praze­res, conduz seus principais negócios, dirige sua indústria, regra suas sucessões, divide suas heranças; por que não lhes pode tirar inteiramente o incômodo de pensar e a dificuldade de viver?

Assim, todos os dias ele torna menos útil e mais raro o emprego do livre-arbítrio; encerra a ação da vontade num espaço menor e defrauda pouco a pouco cada cidadão até mesmo do uso de si. A igualdade preparou os homens para todas essas coisas; ela os dispôs a suportá-las e muitas vezes até a considerá-las um benefício.

Depois de ter colhido assim em suas mãos poderosas cada indivíduo e de o ter moldado a seu gosto, o soberano estende seus braços sobre toda a sociedade; cobre a superfície desta com uma rede de pequenas regras complicadas, minu­ciosas e uniformes, através das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não poderiam abrir-se cami­nho para ultrapassar a multidão; não quebra as vontades, mas amolece-as, submete-as e dirige-as; raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impe­ de que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, desvigora, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos e industriosos, de que o governo é o pastor.

Sempre acreditei que essa espécie de servidão regrada, doce e calma que acabo de pintar poderia combinar-se me­lhor do que se imagina com algumas das formas exteriores da liberdade e que não lhe seria impossível estabelecer-se à sombra mesma da soberania do povo.

Nossos contemporâneos são incessantemente trabalha­dos por duas paixões inimigas: sentem a necessidade de ser conduzidos e a vontade de permanecer livres. Não podendo destruir nem um nem outro desses instintos contrários, es­forçam-se para satisfazer ambos ao mesmo tempo. Imaginam um poder único, tutelar, onipotente, mas eleito pelos cida­dãos. Combinam a centralização com a soberania do povo, o que lhes proporciona certa trégua. Eles se consolam por estar tutelados pensando terem eles próprios escolhido seus tutores. Cada indivíduo suporta que o prendam, porque vê que não é um homem nem uma classe, mas o próprio povo que segura a porta da cadeia.

Nesse sistema, os cidadãos saem um momento da de­pendência para indicar seu senhor e voltam a entrar nela.

Continuação dos capítulos anteriores

Creio que é mais fácil estabelecer um governo absoluto e despótico num povo em que as condições são iguais do que em qualquer outro, e penso que, se tal governo fosse estabelecido uma vez em tal povo, não apenas ele oprimiria os homens, mas com o tempo roubaria de cada um deles vários dos principais atributos da humanidade.

O despotismo parece-me, pois, particularmente temível nas eras democráticas.

Eu teria, creio, amado a liberdade em todos os tempos; mas sinto-me inclinado a adorá-la nos tempos em que estamos. Estou convencido, por outro lado, de que todos os que, nos tempos em que entramos, tentarem basear a autoridade no privilégio e na aristocracia, fracassarão. Todos os que qui­serem atrair e reter a autoridade no seio de uma só classe fracassarão. Não há, em nossos dias, soberano hábil e forte o suficiente para fundar o despotismo restabelecendo distin­ções permanentes entre seus súditos; não há tampouco le­gislador tão sábio e poderoso que seja capaz de manter instituições livres, se não tomar a igualdade como princípio pri­meiro e símbolo. Portanto é necessário que todos os nossos contemporâneos que desejem criar ou assegurar a indepen­dência e a dignidade de seus semelhantes se mostrem ami­gos da igualdade; e o único meio digno de se mostrarem tais é sê-lo: o sucesso de sua santa iniciativa disso depende.

Assim, não se trata de reconstruir uma sociedade aristo­crática, mas de fazer a liberdade sair do ventre da sociedade democrática em que Deus nos faz viver.

Essas duas primeiras verdades me parecem simples, cla­ras e fecundas, e levam naturalmente a considerar que espé­cie de governo livre pode se estabelecer num povo em que as condições são iguais.

Resulta da própria constituição das nações democráticas e de suas necessidades que, nelas, o poder do soberano deve ser mais uniforme, mais centralizado, mais extenso, mais pene­trante, mais poderoso do que alhures. A sociedade, nelas, é naturalmente mais ativa e mais forte, o indivíduo mais subordi­nado e mais fraco: uma faz mais, o outro menos, é forçoso.

Portanto, não se deve esperar que, nos países democrá­ticos, o círculo da independência individual seja um dia tão largo quanto nos países de aristocracia. Mas isso não é dese­jável, porque, nas nações aristocráticas, a sociedade muitas vezes é sacrificada ao indivíduo, e a prosperidade da maioria o é à grandeza de alguns.

É ao mesmo tempo necessário e desejável que o poder central que dirija um povo democrático seja ativo e podero­so. Não se trata de torná-lo fraco ou indolente, mas apenas de impedi-lo de abusar de sua agilidade e de sua força.

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Creio firmemente que não seria possível fundar de novo no mundo uma aristocracia; mas penso que os simples cida­dãos, associando-se, podem constituir seres opulentos, in­fluentes, fortes – numa palavra, pessoas aristocráticas.

Obter-se-iam dessa maneira várias das maiores vantagens políticas da aristocracia, sem suas injustiças nem seus peri­gos. Uma associação política, industrial, comercial ou mes­mo científica e literária é um cidadão esclarecido e poderoso que não se consegue dobrar à vontade nem oprimir na som­bra e que, defendendo seus direitos particulares contra as exigências do poder, salva as liberdades comuns.

Nos tempos de aristocracia, cada homem está sempre ligado de uma maneira íntima a vários de seus concidadãos, de tal modo que não seria possível atacar um sem que os outros não corressem em sua ajuda. Nos tempos de igualdade, cada indivíduo é naturalmente isolado; não tem amigos hereditários, não tem classe cujas simpatias lhe estejam ga­rantidas; põem-no facilmente à parte e pisoteiam-no impunemente. Em nossos dias, um cidadão oprimido só tem um meio de se defender: dirigir-se à nação inteira e, se ela lhe for surda, ao gênero humano. E só há um meio para fazê-lo, a im­prensa. Assim, a liberdade de imprensa é infinitamente mais preciosa nas nações democráticas do que em todas as ou­tras; só ela cura a maioria dos males que a igualdade pode produzir. A igualdade isola e debilita os homens; mas a imprensa coloca ao lado de cada um deles uma arma poderosís­sima, de que o mais fraco e o mais isolado pode lançar mão. A igualdade tira de cada indivíduo o apoio de seus próxi­mos; mas a imprensa lhe permite chamar em seu socorro todos os seus concidadãos e todos os seus semelhantes. A tipogra­fia apressou os progressos da igualdade e é um de seus me­lhores corretivos.

Penso que os homens que vivem nas aristocracias po­dem, a rigor, prescindir da liberdade de imprensa; mas os que vivem nos países democráticos não o podem fazer. Para garantir a independência pessoal destes, não confio nas gran­des assembléias políticas, nas prerrogativas parlamentares, na proclamação da soberania do povo.

Todas essas coisas se conciliam até certo ponto com a servidão individual; mas essa servidão não seria completa com a imprensa livre. A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade.

Direi algo análogo do poder judiciário.

É da essência do poder judiciário ocupar-se de interes­ses particulares e de fixar seus olhos em pequenos objetos expostos à sua vista; é também da essência desse poder não ir por conta própria socorrer os oprimidos, mas estar o tem­po todo à disposição do mais humilde deles. Este, por mais fraco que se o suponha, sempre pode forçar o juiz a ouvir sua queixa e responder a ela. Isso é inerente à própria constituição do poder judiciário.

Semelhante poder é pois especialmente aplicável às exi­gências da liberdade, num tempo em que o olho e a mão do soberano se introduzem sem cessar entre os mais ínfimos de­talhes das ações humanas e em que os particulares, fracos demais para se protegerem, são demasiado isolados para po­derem contar com o socorro de seus semelhantes.

Visão geral do tema

O mundo que se ergue ainda está em parte sob os es­ combros do mundo que cai e, no meio da imensa confusão que os assuntos humanos apresentam, ninguém poderia dizer o que permanecerá de pé das velhas instituições e dos anti­gos modos e o que acabará por desaparecer. (…) Como o passado não ilumina mais o futuro, o espírito caminha nas trevas.

No entanto, no meio desse quadro tão vasto, tão novo, tão confuso, já entrevejo alguns traços principais desenharem-se, e os indico.

Vejo que os bens e os males se repartem de forma bas­tante igual no mundo. As grandes riquezas desaparecem; o número das pequenas fortunas aumenta; os desejos e os prazeres se multiplicam; não há mais prosperidades extraordinárias nem misérias irremediáveis. A ambição é um senti­mento universal, há poucas ambições vastas. Cada indivíduo é isolado e fraco; a sociedade é ágil, previdente e forte; os particulares fazem pequenas coisas, o Estado, imensas.

As almas não são enérgicas, mas os costumes são bran­dos e as legislações, humanas. Embora encontremos poucas grandes devoções, poucas virtudes elevadas, brilhantes e pu­ras, os hábitos são ordenados, a violência é rara, a crueldade quase desconhecida. A existência dos homens se toma mais longa e sua propriedade mais segura. A vida não é muito or­nada, mas cômoda e tranquila. Há poucos prazeres delica­dos e grosseiros, pouca polidez nas maneiras e pouca bruta­lidade nos gostos. Não se encontram homens muito sábios nem populações muito ignorantes. O gênio se toma mais raro e as luzes mais comuns. O espírito humano se desenvolve pelos pequenos esforços combinados de todos os homens, e não pelo poderoso impulso de alguns. Há menos perfeição, porém mais fecundidade nas obras. Todos os vínculos de raça, de classe, de pátria se afrouxam; o grande vínculo da humanidade se estreita.

Se, entre todas essas diversas características, procuro a que me parece mais geral e mais notável, consigo ver que o que se nota nas fortunas se representa sob mil outras formas. Quaase todos os extremos se atenuam e se embotam; quase todos os pontos salientes se apagam para ceder lugar a algo médio, que é ao mesmo tempo menos elevado e menos baixo, menos bri­lhante e menos obscuro do que o que se via no mundo.

Passeio meus olhares por essa multidão inumerável com­posta de seres semelhantes, em que nada se eleva nem se abaixa. O espetáculo dessa uniformidade universal me entris­tece e me gela, e sou tentado a lamentar a sociedade que não existe mais.

Quando o mundo estava cheio de homens enormes e mínimos, riquíssimos e paupérrimos, muito sábios e muito ignorantes, eu desviava meu olhar dos segundos para só o fixar nos primeiros, e estes enchiam minha vista; mas compreendo que esse prazer nascia da minha fraqueza: é por não poder ver ao mesmo tempo tudo o que me rodeia que me é permitido escolher assim e separar, dentre tantos obje­tos, os que me agrada contemplar, O mesmo não se dá com o Ser onipotente e eterno, cujo olhar envolve necessaria­mente o conjunto das coisas e que vê distintamente, apesar de ao mesmo tempo, todo o gênero humano e cada homem.

É natural crer que o que mais satisfaz os olhares desse criador e conservador de homens não é a prosperidade singu­lar de alguns, mas o maior bem-estar de todos. Portanto o que me parece uma decadência é, a seus olhos, um progresso; o que me fere lhe agrada. A igualdade é menos elevada talvez; porém é mais justa, e sua justiça faz sua grandeza e sua beleza.

Esforço-me por penetrar nesse ponto de vista de Deus e é daí que procuro considerar e julgar as coisas humanas.

Ninguém na terra ainda pode afirmar de uma maneira absoluta e geral que o novo estado das sociedades seja su­perior ao estado antigo; mas já é fácil ver que é outro.

Há certos vícios e certas virtudes que eram ligadas à cons­tituição das nações aristocráticas e que são a tal ponto con­trárias ao gênio dos novos povos que não poderiam ser in­troduzidas em seu seio. Há boas inclinações e maus instintos que eram estranhos aos primeiros e que são naturais aos se­gundos; ideias que se apresentam por si mesmas à imaginação de uns e que o espírito dos outros rejeita. São como duas humanidades distintas, cada uma das quais tem suas vantagens e seus inconvenientes particulares, seus bens e seus males que lhe são próprios.

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As nações de nossos dias não seriam capazes de fazer que as condições sejam iguais em seu seio; mas delas depen­de que a igualdade as conduza à servidão ou à liberdade, às luzes ou à barbárie, à prosperidade ou às misérias.