Os niilistas estão chegando, ou: Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais

De Pais e Filhos de Ivan Turgueniev. Moscou, 1862 d.C.

Tradução de Ivan Emilianovitch

oferecimento

 

 

 

Após se graduar na Universidade de Petersburgo, Arcádio Kirsanov, acompanhado de seu amigo Bazárov, retorna a uma província remota da Rússia para visitar seu pai, Nicolau Pietróvich, há tempos viúvo e dono de um modesto latifúndio. Constrangido, Nicolau revela ao filho que se casou com uma de suas servas, Fiênitchka, mas Arcádio reage com uma estranha indiferença, dizendo-se adepto de uma nova filosofia de vida. O irmão de Nicolau, Páviel, um ex-militar amargurado, antipatiza de cara com Bazárov, e enquanto esse está fora numa pequena expedição em busca de rãs para seus experimentos científicos, indaga o sobrinho Arcádio, que lhe informa que seu amigo é um “niilista”. Perplexos com o termo inaudito os irmãos tentam compreendê-lo por associação ao latim nihil, nada. Os atritos aumentam com o passar dos dias e Páviel revela ao irmão e ao sobrinho que despreza Bázarov com “toda a sua alma” e que só espera uma oportunidade para um inevitável combate. Agora, os quatro estão reunidos para o chá da tarde.   

 

A palestra girava em torno de um dos fazendeiros vizinhos. “Um aristocratóide crápula” — observou impassível Bazárov, que costumava encontrar a referida pessoa em São Petersburgo.

— Permita que lhe pergunte uma coisa — começou Páviel Pietróvitch, e seus lábios tremiam. — Segundo sua opinião, as palavras “crápula” e “aristocrata” significam a mesma coisa?

— Eu disse “aristocratóide” — respondeu Bazárov, tomando devagar mais um gole de chá.

— Assim o compreendo. Suponho que o senhor tem a mesma opinião dos aristocratas e dos aristocratóides. Devo declarar-lhe que não compartilho esse modo de pensar. Ouso dizer ainda que sou conhecido como um homem liberal e progressista. Por isso mesmo respeito os verdadeiros aristocratas. Lembre-se, meu caro senhor — ao ouvir essas palavras Bazárov fixou seu olhar em Páviel Pietróvitch —, lembre-se, meu caro senhor — repetiu irritado — , dos aristocratas ingleses. Eles não desistem do mínimo dos seus direitos e respeitam os alheios. Exigem que se cumpram todas as obrigações para com eles e por isso mesmo cumprem suas obrigações. A aristocracia libertou a Inglaterra e defende a sua liberdade.

— Já ouvimos essa cantiga muitas vezes — obtemperou Bazárov. — Que quer o senhor provar com isso?

— Com isso, meu caro senhor — Páviel Pietróvitch, quando se zangava, proferia a palavra “isso” contra todas as regras da gramática. Era uma reminiscência dos tempos do Czar Alexandre. Os nobres de então pronunciavam-na às vezes assim, variando um pouco a pronúncia, porque se consideravam russos legítimos, da nobreza tradicional e superiores às regras gramaticais escolares —, com isso, caríssimo senhor, quero demonstrar que, sem a noção da sua própria dignidade, sem o respeito de si mesmo — num aristocrata esses sentimentos estão particularmente evoluídos —, não existe nenhuma base sólida do bien public ou do edifício social. O mais importante, caro senhor, é a personalidade. A personalidade humana deve ser resistente como rochedo, porque sobre ela tudo se constrói. Sei perfeitamente, por exemplo, que o senhor julga ridículos ou contraproducentes meus hábitos, meu vestuário e minha decência, afinal. Tudo decorre dos sentimentos de respeito próprio, do sentimento do dever, sim, do dever. Vivo no campo, no sertão, mas não me abastardo. Respeito em mim um homem.

— Perdoe-me, Páviel Pietróvitch — disse Bazárov. — O senhor respeita a sua personalidade e está aqui sem fazer coisa alguma. Que utilidade advém para o bien public? Seria melhor que não se respeitasse e fizesse alguma coisa de proveitoso.

Páviel Pietróvitch empalideceu.

— Trata-se de um outro assunto. Não lhe devo dar satisfação neste momento sobre o porquê da minha inatividade, como o senhor acaba de defini-la. Quero dizer apenas que a aristocracia é um princípio. Sem princípios, na nossa época, só podem viver homens amorais ou nulos. Já o disse a Arcádio no dia seguinte à sua chegada e repito-lhe agora. Não é assim, Nicolau?

Nicolau Pietróvitch meneou afirmativamente a cabeça.

— O aristocratismo, o liberalismo, o progresso, os princípios! — disse Bazárov. — Quantas palavras estranhas e inúteis! O russo não precisa delas.

— De que precisa o russo? Se dermos crédito às suas palavras, estamos deslocados da humanidade e fora das suas leis. Perdoe-me, mas a lógica da história exige…

— De que nos serve essa lógica? Passamos muito bem sem ela.

— Como?

— Facilmente. Acho que o senhor não precisa de lógica para pôr um pedaço de pão na boca, quando tem fome. De que nos servem essas dilações?

Páviel Pietróvitch deu de ombros.

— Não o compreendo. O senhor ofende o povo russo. Não sei como é possível negar os princípios, as normas. Em que se baseia o senhor para se expressar assim?

— Já lhe disse, meu tio, que nós não reconhecemos autoridades — interveio Arcádio.

— Nós agimos baseados na força do que reconhecemos útil — disse Bazárov.

— Na época atual o mais útil é negar. Por isso negamos.

— Tudo?

— Tudo.

— Como? Não só a arte, a poesia… mas… é pavoroso dizê-lo…

— Tudo — com estupenda calma, repetiu Bazárov.

Páviel Pietróvitch examinou-o fixamente. Nunca esperara semelhante conclusão. Por sua vez, Arcádio até corou de prazer.

— Vamos devagar — disse Nicolau Pietróvitch. — Vocês negam tudo, ou, por outra, destroem tudo… É necessário também construir.

— Não nos compete. Primeiramente é preciso desimpedir o lugar.

— A situação atual do povo assim o exige — acrescentou com importância Arcádio. — Devemos atender a essas exigências. Não temos o direito de satisfazer apenas o nosso egoísmo pessoal.

Estas últimas palavras visivelmente não agradaram a Bazárov. Encerravam um quê de filosofia, isto é, de romantismo, porque Bazárov considerava a própria filosofia como uma simples digressão romântica. Não julgou, entretanto, necessário contradizer seu jovem discípulo.

— Não e não! — exclamou com repentina energia Páviel Pietróvitch. — Não quero crer que os senhores conheçam a fundo o povo russo e sejam representantes das suas necessidades e tendências! Não. O nosso povo é diverso do que os senhores imaginam. Guarda e respeita escrupulosamente suas tradições. É patriarcal e não pode viver sem fé…

— Não quero discutir esse ponto — interrompeu Bazárov. — Estou até pronto a afirmar que nisso o senhor tem toda a razão…

— Se tenho razão…

— Assim mesmo nada prova.

— Efetivamente, nada prova — repetiu Arcádio com a convicção de um experimentado jogador de xadrez que prevê um lance arriscado do seu adversário e não se atrapalha.

— Como nada prova? — exclamou admirado Páviel Pietróvitch. — Suponho que pretendem lutar contra o seu próprio povo?

— Se for preciso… — redarguiu Bazárov. — O povo, quando ouve a trovoada, julga que o profeta Elias está passeando pelo céu em seu carro de fogo. Devo, neste caso, concordar com o povo? Além disso, estamos falando do povo russo, e, porventura, não sou russo?

— Não. Deixa de ser russo depois do que acabou de dizer! Não posso reconhecê-lo como meu compatriota.

— Meu avô cultivava a terra — disse com orgulho Bazárov. — Pergunte a qualquer de seus mujiques: em quem, de nós dois, ele reconhece seu compatriota? Ele tem uma extraordinária capacidade de discernimento. O senhor nem sabe falar com ele.

— O senhor fala com o mujique e despreza-o ao mesmo tempo.

— E se merece o desprezo? Acusa o meu modo de ver e julgar o assunto. Quem lhe disse que esse ponto de vista não é casual em mim e que não é suscitado pelo próprio espírito do povo, em nome de quem está pontificando?

— Naturalmente! Os niilistas são muito necessários!

— Não nos cabe sabê-lo. O senhor também se julga um homem útil.

— Meus senhores, evitemos por favor questões pessoais! — exclamou, erguendo-se, Nicolau Pietróvitch.

Páviel Pietróvitch sorriu e, pondo a mão no ombro do seu irmão, fê-lo sentar-se novamente.

— Não se impressione — disse. — Não me excederei em consequência exatamente daquele sentimento de dignidade tão criticado por este senhor… Senhor doutor: permita-me perguntar-lhe — continuou, dirigindo-se de novo a Bazárov — se por acaso supõe que a sua doutrina é nova. Pura imaginação. O materialismo que prega já é velho e sempre pecou por falta de base…

— Mais uma palavra estranha! — interrompeu Bazárov, que começava a exasperar-se. Sua face tornara-se rude e cor de cobre. — Em primeiro lugar, não pregamos coisa alguma. Não é o nosso hábito…

— Que fazem então?

— Vou dizer-lhe o que fazemos. Antes, ainda há pouco, dizíamos que os nossos funcionários públicos recebiam gorjetas, não tínhamos nem estradas, nem comércio, nem um júri decente…

— Compreendo. Os senhores são caluniadores, e assim posso expressar-me. Com algumas das suas acusações concordo, mas…

— E, em seguida, percebemos que não vale a pena tocar somente nas nossas chagas. Seria uma vulgaridade e doutrinismo. Vimos que os nossos intelectuais ou os homens da vanguarda, acusadores ou caluniadores, não servem para coisa alguma, que nos ocupamos de parvoíces, discutimos sobre uma certa arte, a criação inconsciente, o parlamentarismo, a justiça e tanta coisa inútil, quando o problema consiste no pão de cada dia, quando uma superstição brutal nos sufoca, quando todas as nossas sociedades comerciais ou industriais por ações rebentam, porque faltam homens honestos, quando a própria liberdade, que tanto preocupa o governo, dificilmente nos será proveitosa, porque o nosso mujique é capaz de roubar a si mesmo só para se embriagar na taberna.

— Bem — interrompeu Páviel Pietróvitch —, concordo provisoriamente. Convenceu-se de tudo isso e resolveu não se ocupar seriamente de coisa alguma.

— Resolvemos realmente não nos preocupar com coisa alguma — repetiu em tom lúgubre Bazárov. Invadia-o uma raiva de si mesmo pelo fato de ter-se expandido tanto com aquele aristocrata.

— E somente ofender tudo e a todos? — continuou o aristocrata.

— Ofender também.

— É o niilismo?

— É o niilismo — repetiu Bazárov com ar de desafio. Páviel Pietróvitch fechou de leve os seus olhos.

— Agora compreendo! — disse com voz esquisitamente calma. — O niilismo deve auxiliar-nos em todas as desgraças. Os senhores são nossos salvadores e heróis. Sim. Porque nesse caso acusam os próprios acusadores. Não vivem de palavras vãs como os demais.

— Podemos ter outros pecados, menos esse — disse Bazárov.

— Como? Os senhores agem? Pretendem agir?

Bazárov nada respondeu; Páviel Pietróvitch teve um estremecimento e logo reconquistou o domínio de si mesmo.

— Sim… agir, destruir — continuou. — Destroem sem saber para quê?

— Destruímos, porque somos uma força — explicou Arcádio.

Páviel Pietróvitch olhou para seu sobrinho e sorriu.

— Sim, somos uma força que age livremente — insistiu Arcádio com veemência.

— Desgraçados! — gritou Páviel Pietróvitch. Perdeu definitivamente o controle de si mesmo. — Se ao menos pensasse no que, na Rússia, você está defendendo com essa vulgaridade! Não. Tudo isso é de fazer perder a paciência a um anjo! Força! Num selvagem, num mongol também existe força. De que nos serve ela? É-nos cara a civilização. São-nos caros os seus frutos. Não me diga que os frutos da civilização nada valem. O último dos indecentes, um barbouilleur, um escamoteador de jogo que recebe cinco moedas por noite são mais úteis do que os senhores, porque representam a civilização e não a força brutal dos mongóis! Pensam os senhores que são homens da vanguarda. Estariam bem numa cabana de selvagens! Força! Lembrem-se, afinal, senhores da força, de que são apenas quatro pessoas e meia, e contra os senhores existem milhões que não lhes permitirão calcar aos pés suas crenças sagradas. Esmagá-los-ão!

— Se esmagarem, assim é preciso — disse Bazárov.

— Mas não somos tão poucos como o senhor supõe.

— Como? Pretende chegar seriamente a um acordo com todo o povo?

— Saiba o senhor que a cidade de Moscou já foi destruída pelo incêndio causado por uma vela de um copeque — respondeu Bazárov.

— Vejo primeiramente um orgulho quase satânico. Depois, sacrilégio. Aí está o que preocupa a mocidade! Aí está o que domina os corações inexperientes dos meninos de hoje! Olhe este aqui que está sentado a seu lado. Só falta rezar para o senhor. — Arcádio fitou-o, sério. — Esse mal já se espalhou demasiado, contaminando muitos. Disseram-me que em Roma os nossos artistas não visitam nunca o Vaticano, consideram idiota a Rafael, só porque ele é autoridade. Eles mesmos não têm talento. São verdadeiras nulidades. A sua fantasia ou imaginação não vai além da Jovem da fonte, quando chega para tal. O senhor conhece o valor artístico desse quadro, péssimo em todos os sentidos. Segundo sua opinião, será (essa atitude) um defeito ou ótima qualidade?

— Segundo minha opinião — respondeu Bazárov —, nem Rafael vale um ceitil, nem os nossos são melhores do que Rafael.

— Bravo! Ouça, Arcádio… Assim devem pensar os moços de hoje! Como, nesse caso, não hão de segui-los! Antigamente os moços eram obrigados a estudar: não queriam passar por imbecis e por isso trabalhavam. Agora basta que afirmem: “Tudo no mundo não tem valor!” E está bem. A juventude ficou satisfeita. Outrora os moços eram simples idiotas ou inúteis, hoje se tornaram de súbito niilistas.

— Traiu-o o seu sentimento, tão proclamado, da própria dignidade — observou fleumático Bazárov, enquanto Arcádio assumia um ar importante e seus olhos brilhavam.

— A nossa discussão foi muito longe… É melhor terminá-la. Concordarei somente com o senhor — acrescentou, levantando-se — quando me indicar uma só instituição da nossa época, social ou familiar, que não seja passível de uma negação completa e irrefutável.

— Posso apresentar-lhe milhões de semelhantes instituições e princípios — exclamou Páviel Pietróvitch. — Milhões! A comuna, por exemplo.

Um sorriso frio aflorou aos lábios de Bazárov.

— Quanto à comuna camponesa — respondeu —, é melhor que fale aqui com seu irmão. Ele, parece-me, já experimentou na prática o que é comuna. Ônus comum, temperança e outras coisas mais.

— E, finalmente, a família, sim, a família tal como existe entre os nossos mujiques! — exclamou Páviel Pietróvitch.

— Também essa questão deve ser examinada melhor pelo senhor do que por ninguém. Já ouviu falar em casamenteiros? Ouça-me, Páviel Pietróvitch. Bastam dois dias de prazo e terá qualquer coisa. Examinem todas as nossas classes sociais e pensem bem em cada uma, enquanto nós, eu e Arcádio…

— Rir-se-ão de tudo e de todos — sugeriu Páviel Pietróvitch.

— Não. Iremos dissecar as rãs. Vamos, Arcádio. Até logo, senhores!

Ambos os amigos saíram. Os irmãos ficaram a sós. A princípio entreolharam-se.

— Aí está — disse afinal Páviel Pietróvitch. — É a mocidade de hoje! São os nossos herdeiros!

— Herdeiros — repetiu tristemente, com um suspiro, Nicolau Pietróvitch. Durante toda a discussão se sentia mal e só de soslaio contemplava Arcádio.

— Sabe de que me lembrei, mano? Uma vez discuti com minha mãe. Ela, zangada, não me queria ouvir… Finalmente eu lhe disse que não podia compreender-me porque pertencíamos a gerações diversas. Ela sentiu-se profundamente ofendida, e eu pensei: “Que hei de fazer? A pílula é amarga, mas é necessário engoli-la”.

Chegou agora a nossa vez. Os nossos herdeiros ou descendentes podem declarar-nos:

“Vocês não são da nossa geração”.

— Você é demasiado generoso e modesto — respondeu Páviel Pietróvitch. — Eu, pelo contrário, estou convencido de que ambos temos muito mais razão do que esses senhores, ainda que nos expressemos, possivelmente, numa linguagem um tanto antiquada, vieille, sem possuir aquela confiança ousada… Como é presunçosa a mocidade de hoje! A gente pergunta a qualquer moço: “Que vinho prefere, tinto ou branco?” “Costumo tomar vinho tinto!”, responde em tom grave e com tanta importância, como se todo o universo o contemplasse nesse momento…

— O senhor não quer mais chá? — disse Fiênitchka, cuja cabecinha apareceu de repente à porta. Não se atrevia a entrar na sala de visitas, enquanto ouvia ali as vozes dos que discutiam.

— Não. Pode levar o samovar, ou mande que alguém o leve — respondeu Nicolau Pietróvitch, indo ao seu encontro. Páviel Pietróvitch disse-lhe um breve bonsoir e fechou-se no seu gabinete.

 

Edição: Livraria Martins Editora
OriginalОтцы и дети (Otcy i deti)