A Verdade enquanto Subjetividade

Dois ensaios sobre a existência de Soren Kierkegaard

I. O peso da interioridade

De O Conceito de Angústia. Copenhagen, 1844 d.C.

A verdade é a obra da liberdade e de tal modo que a liberdade constantemente traz à tona a verdade. O que quero dizer é algo bastante básico e simples, ou seja, que a verdade existe para um indivíduo particular somente na medida em que ele mesmo a produz na sua própria ação. Se o indivíduo impede que a verdade seja assim para si, temos o fenômeno do demoníaco. A verdade sempre teve muitos proclamadores eloquentes, mas a questão é se uma pessoa a reconhecerá no sentido mais profundo, se consentirá a todas as consequências da verdade, ou se terá um refúgio de emergência para si e um beijo de Judas para a consequência.

Fala-se muito sobre a verdade. Mas nosso desafio é justificar a certeza e a interioridade, não de modo abstrato, mas num sentido absolutamente concreto. A certeza e a interioridade determinam se o indivíduo está ou não está na verdade. Não é a falta de conteúdo que provoca a arbitrariedade, a descrença, a ridicularização da religião, mas sim a falta de certeza. Sempre que faltam a interioridade e a apropriação pessoal, o indivíduo não é livre em relação à verdade, ainda que, de uma outra forma, ele “possua” toda a verdade. Ele não é livre porque há algo que lhe causa angústia, a saber, o bem.

Não é minha intenção utilizar palavras grandiosas para falar da nossa Era como um todo. No entanto, você dificilmente negará que a razão para a sua angústia e inquietação está no fato de que enquanto num sentido a verdade cresce em escopo e quantidade – via ciência e tecnologia – no outro a certeza e a confiança declinam resolutamente. Nossa época é especialista em desenvolver verdades e ser, ao mesmo tempo, indiferente à certeza. Falta-lhe a confiança no bem.

Tome o pensamento da imortalidade, por exemplo. O sujeito que sabe como demonstrar a imortalidade da alma mas que não está, ele mesmo, convencido disto, que não vive por isto, sempre estará angustiado. Apesar de todas as suas verdades, ele recua ante a verdade da imortalidade. Ele engana tanto a si mesmo quanto aos outros. No processo de tentar provar a imortalidade ele esquece a imortalidade, uma vez que a imortalidade é precisamente aquilo que teme. Ele permanece angustiado e é, portanto, forçado a buscar uma compreensão maior do que significa crer na imortalidade da alma.

Sem a interioridade um correligionário da mais rígida ortodoxia pode ser demoníaco. Ele sabe tudo. Ele faz a genuflexão ante o sagrado. Ele é cerimoniosamente imaculado. Ele fala sobre encontros ante o trono de Deus e sabe quantas vezes se curvar. Ele sabe tudo, mas somente como a pessoa capaz de demonstrar uma proposição matemática quando as letras são ABC, porém não quando são DEF. Ele é, ainda assim, um angustiado, especialmente quando ouve algo que não corresponde rigorosamente à sua crença. Ele se parece com o filósofo que descobriu uma nova prova para a imortalidade da alma e então, com a sua própria vida em risco, não é capaz de produzir a demonstração por ter esquecido seu caderninho de notas! O que falta a ambos? É a certeza.

Quanto zelo industrial, quanto sacrifício de tempo, quanta diligência e material escrito os teólogos e filósofos de nosso tempo empenharam para provar a existência de Deus! Ainda assim, a excelência dessas provas cresce na mesma proporção em que a certeza declina. O que falta a tais indivíduos? Mais uma vez, a interioridade.

Mas a interioridade também pode faltar na direção oposta. Os chamados cristãos piedosos tampouco são livres. Também a eles falta a autêntica certeza da interioridade. Por isso são tão piedosos! E o mundo tem toda razão de rir deles. Se, por exemplo, um homem manco quer ser um mestre da dança mas não é capaz de executar um único passo, ele é cômico. É exatamente o que acontece com todas essas multidões tão religiosas. Frequentemente ouvimos o piedoso marcando o compasso, por assim dizer, exatamente como alguém incapaz de dançar mas que, não obstante, sabe o suficiente para marcar o passo, e, ainda assim, jamais tem a alegria de entrar na dança. A fim de se reassegurarem a si mesmos, os piedosos se agarram a ideias grandiosas que o mundo abomina. Eles batalham com ideias, mas não com suas vidas. Assim é a vida de quem não possui a interioridade.

A Eternidade, no entanto, é um pensamento radical, e portanto uma questão de interioridade. Sempre que a realidade eterna é afirmada, o presente se torna algo inteiramente diferente do que era quando separado dela. E este é precisamente o motivo pelo qual os seres humanos a temem (sob o disfarce do medo da morte). Frequentemente ouvimos falar sobre determinados governos que temem certos elementos inquietantes na sociedade. De minha parte, prefiro dizer que toda a nossa Época é uma tirana que vive do medo do único elemento inquietante: o pensamento da eternidade. Ela não ousa pensar nisto. Por que? Porque ela desmorona sob – e evita mais do que qualquer outra coisa – o peso da interioridade.

II. A distância entre a subjetividade e a objetividade

Do Pós-escrito Conclusivo Não-Cientifico às Migalhas Filosóficas. Copenhagen, 1846.

Há dois caminhos para a reflexão. Na reflexão objetiva, a verdade se torna um objeto, e o desafio é neutralizar o sujeito cognoscente (o indivíduo). No sentido oposto, o da reflexão subjetiva, a verdade se torna uma apropriação pessoal, uma vida, interioridade, e o desafio é mergulhar a si mesmo na subjetividade. Pois bem, qual dos dois é o caminho da verdade que importa para a pessoa que existe concretamente?

O caminho da reflexão objetiva considera o indivíduo como acidental, e assim transforma a existência individual num “algo” indiferente e evanescente. O caminho da verdade objetiva vira as costas ao sujeito cognoscente. O sujeito e a subjetividade se tornam irrelevantes, e, correspondentemente, a verdade se torna uma questão de indiferença. O parâmetro é a validade objetiva. Qualquer interesse pessoal é subjetividade. Por esta razão, quem toma o caminho objetivo está convencido de que possui uma segurança que o caminho subjetivo não dá. Ele crê evitar o perigo que está no fim do caminho subjetivo, perigo que, no limite, é o da loucura. Na sua perspectiva, uma definição totalmente subjetiva da verdade faz com que a alucinação e a verdade sejam indiferenciáveis entre si. Permanecendo objetivo ele evita se tornar um lunático. Todavia, a ausência de interioridade não será também uma loucura?

(…)

Tomemos o conhecimento de Deus como um exemplo. O caminho da objetividade se ocupa do objeto sobre o qual reflete, se é ou não o verdadeiro Deus. No caminho da subjetividade, no entanto, o indivíduo busca se relacionar com Deus de tal maneira que este relacionamento seja verdadeiramente com Deus. Ora, de qual lado está a verdade? Em nenhum? Ou, melhor ainda, estaria ela em algum lugar no meio? Mas como isso poderia ser? Uma pessoa existente não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Ela não pode existir como um sujeito-objeto.

Deus é um sujeito, alguém com quem nos relacionamos, não um objeto para ser estudado ou sobre o qual se medita. Ele existe para a interioridade subjetiva. A pessoa que opta pelo caminho subjetivo imediatamente compreende a dificuldade de quem tenta encontrar Deus objetivamente. Ela entende que conhecer Deus significa recorrer a Deus, não em virtude da deliberação objetiva, mas sim da paixão infinita da interioridade. Enquanto o conhecimento objetivo segue ociosamente na longa estrada da deliberação, o conhecimento subjetivo considera todo atraso de decisão um perigo mortal. Quando se conhece subjetivamente, a decisão é tida como tão importante que é imediatamente urgente, como se a oportunidade adiada já tivesse se arruinado como inútil.

Ora, se o problema é determinar onde há mais verdade, se do lado da pessoa que busca só objetivamente o verdadeiro Deus e a verdade aproximativa da ideia de Deus ou, ao contrário, do lado da pessoa que está infinitamente preocupada em se relacionar ela mesma, na paixão de seu anseio, de modo verdadeiro com Deus, então não pode haver dúvida quanto à resposta. Se alguém vive inserido no cristianismo e entra, com conhecimento da verdadeira ideia de Deus, na casa de Deus, a casa do verdadeiro Deus, e reza, mas reza na inverdade, e se, por outro lado, alguém vive numa terra idólatra, mas reza com toda a paixão do infinito, ainda que seus olhos estejam fixados sobre a imagem de um ídolo – então, onde há de haver mais verdade? Um reza em verdade a Deus, embora esteja adorando um ídolo; o outro reza na inverdade ao verdadeiro Deus e portanto está, a bem da verdade, adorando um ídolo. A distância entre a reflexão objetiva e a subjetividade é, de fato, uma distância infinita.