A profecia de um pai no mundo dos mortos

Anquises revela a Eneias o futuro de Troia

Da Eneida de Publius Vergilius Maro. Século I a.C.

 

Dez anos após a destruição de Troia.

Ao mesmo tempo em que Ulisses navega para casa, alguns sobreviventes troianos vagam pelo mediterrâneo buscando refúgio enquanto resistem à ira de Juno – Hera para os gregos – que os hostiliza tanto para vingar o insulto do príncipe Páris à sua beleza, quanto pela profecia que os predestinava a destruir a sua querida Cartago. Júpiter, o Pai dos deuses e dos homens, já garantira à mãe de Eneias, Vênus Afrodite, que através de sua piedade o herói reconciliaria os troianos à rainha dos deuses, e então eles reinariam sobre o Universo através de seus descendentes: os romanos.

A frota finalmente atraca na península itálica, onde Eneias deverá liderar suas tropas contra Turnus, comandante da coalisão entre rútulos e latinos, pela mão de Lavínia, filha do rei Latinus. Antes, ele faz uma peregrinação ao templo de Apolo em Cumea, próxima a Nápoles. Após suplicar ao deus, lhe é concedido descer a Dis, o mundo dos mortos, para ser instruído pelo espírito de seu pai, Anquises. Guiado pela Sibila, Eneias atravessa o Tártaro, passa pelos campos das lamentações e dos guerreiros revendo gregos e troianos, até chegar à fortaleza do rei Radamantus, onde os piores pecadores são torturados. Saindo de lá, eles descem uma montanha rumo aos Campos Elíseos.

O pai Anquises, no fundo de um vale esverdeado, observava, averiguando criteriosamente os espíritos aprisionados que aguardavam para subir à luz da superfície, e ele passava em revista toda a multidão de seu povo, seus queridos descendentes, e os destinos e as glórias dos heróis, seus semblantes e suas façanhas. E ao ver Eneias sobre os campos vindo na sua direção, estendeu fervorosamente suas mãos, e as lágrimas se precipitaram sobre suas faces, e estas palavras caíram de seus lábios:

“Finalmente! Você veio, como esperava seu pai; sua piedade triunfou sobre o áspero caminho! E a mim me foi permitido rever a sua face, meu filho, e ouvi-lo e lhe falar em nossa própria língua. Sim, pensava eu em meu coração, tinha fé que isto aconteceria, e contava as horas, e minhas esperanças não foram frustradas. Quantas terras e quantos mares percorridos antes que eu o reencontrasse! Quantos perigos, meu filho, você teve de enfrentar! Como temi que os reinos da Líbia lhe fizessem mal”. E Eneias respondeu: “Foi sua imagem aflita, meu pai, que tantas vezes me visitou, que me fez chegar até este lugar; nossos navios estão ancorados nas águas tirrenas. Deixe-me tomar a sua mão, deixe-me, ó pai, e não recuse meus abraços”. Enquanto falava, as lágrimas corriam inundado suas faces. Então, por três vezes ele tentou envolver com seus braços o pescoço de seu pai, e por três vezes o vulto, abraçado em vão, esvaneceu-se em suas mãos, como os ventos ligeiros, como nos sonhos fugazes.

Então, Eneias viu em um vale distante um bosque repleto de arbustos que rumorejavam ao vento, e o rio Lete que corria ao longo de uma aprazível planície. Ao seu redor se conglomeravam inumeráveis tribos e nações; e, tal como nos campos onde as abelhas, na serenidade do verão, pousam sobre as flores cintilantes e se dispersam entre os lírios brancos, toda a planície vibrava com os murmúrios da multidão. Eneias, ante tal visão, foi invadido pelo estupor e, atônito, perguntou pelas razões daquilo tudo: que era aquele rio ao fundo, quem eram todos aqueles homens que numa tão grande aglomeração recobriam as suas margens? Então, o venerável Anquises falou: “Estas são as almas a quem o Destino reservou um segundo corpo: às margens do rio Lete, elas bebem de suas águas puras e caem num esquecimento profundo. Sobre elas, há muito tempo desejo lhe falar, mostrá-las a você face à face e lhe contar em pormenores sobre a minha descendência, para que você possa gozar comigo por sua chegada à Itália”. “Ó Pai”, disse Eneias, “acaso devo crer que alguns destes espíritos retornarão à superfície sob o céu para uma vez mais retomar o peso de seus corpos? Que desejo insano de viver é este que move estas pobres almas?” “Eu lhe direi, filho, e dissiparei a sua perplexidade”, retomou Anquises, que então começou a expor cada verdade em sua devida ordem.

“Primeiro, um espírito sopra no interior do céu e da terra, das planícies líquidas, do reluzente globo da Lua e do astro titânico, e uma mente infusa pelos membros do universo agita toda a sua massa e se mistura ao seu imenso corpo. Daí surge a raça dos homens e dos animais, as criaturas que voam e os monstros que o oceano nutre sob suas águas marmóreas. Em seus germes há um vigor de fogo e uma fonte celeste, ao menos enquanto não são sobrecarregados com substâncias nocivas, entorpecidos em membros terrenos e órgãos mortais. Esta é a razão pela qual eles temem e desejam, agonizam e gozam, e já não sentem mais os sopros celestes, reclusos, cegos, como que num cárcere tenebroso. Pior! Mesmo quando a derradeira centelha da vida se apaga, nem assim toda miséria e toda a pestilência fundidas aos corpos destes desgraçados são expelidas, pois é inevitável que, após tanto tempo acumuladas, elas se enraízem em profundidades assustadoras. Por isto eles são retificados pelo castigo, e pagam o suplício por suas velhas perversões; alguns são suspensos e abandonados aos ventos vazios, enquanto a outros, seus crimes infectos são lavados no fundo de uma fossa abissal ou consumidos no fogo; cada um de nós padece a sua própria purgação. Então, somos enviados ao vasto Elísio, uns poucos de nós para viverem em seus prados radiantes, até que o passar do tempo encerre o ciclo dos dias e a horrível mancha seja estancada, só restando o puro senso etéreo e o fogo celestial. A todos, após realizarem uma rotação de mil anos, um deus convoca num imenso rebanho às margens do rio Lete, para que, apagada a sua memória, eles revisitem o mundo da superfície e comecem a ansiar novamente pelo retorno aos seus corpos mortais”.

Assim falou Anquises, e conduziu seu filho e a Sibila em meio aos rumores da multidão, subindo num monte de onde podiam vislumbrar de frente uma longa procissão, discernindo o rosto de cada um dos que chegavam.

“Venha, eu lhe revelarei a glória que há de vir do povo troiano, descendentes nossos, nascidos da raça italiana, nobres almas que avançarão em nosso nome; venha, eu lhe mostrarei o seu destino. Aquele jovem que você vê apoiado na haste de uma lança, cuja sorte reservou um lugar mais próximo à luz, ele será o primeiro a ser elevado à brisa do céu, com sangue italiano correndo em suas veias: Silvius, um nome albano, o último filho que sua mulher, Lavínia, lhe gerará, numa selva, quando você for velho; um rei e pai de reis, a partir do qual nossa descendência dominará na cidade de Alba Longa. Depois vem Procas, glória da nação troiana, e Capis e Numitor, e aquele que ressuscitará seu nome, Silvius Eneias, que há de ser tão excelente na piedade quanto nas armas, se em algum momento vier a reinar em Alba. Que jovens magníficos! Veja o poder que eles exibem, e como suas frontes se erguem à sombra do carvalho sagrado! Eles, para a sua honra, edificarão Nomentum e Gabii e a cidade de Fidena, e fortalezas sobre as colinas de Collatia, Pometii e Inuus, Bola e Cora. Estes hão de ser os nomes de lugares hoje sem nome. Depois, Romulus, filho de Marte, cuja mãe, Ília, do sangue de Assaracus, dará à luz, e que virá a se juntar à corte de seu avô. Você vê a plumagem dupla de seu elmo ereta sobre sua cabeça e como seu pai já o marcou com sua divina honra? Sim, meu filho, sob seus auspícios a gloriosa Roma deverá estender seu império sobre os confins da terra e suas ambições até o Olimpo, e uma cidade deverá cercar as sete colinas com uma muralha, abençoada em uma linhagem de heróis, assim como Berecíntia, a mãe de todos os deuses, avança em seu carro, cercada de torres, através das cidades da Frígia, gozando com sua dinastia celeste, abraçando centenas de filhos, todos seres divinos, todos reinando sobre as alturas.

“Agora vire seus olhos, observe este povo, os seus romanos. Eis César e toda a linhagem de Júlus, destinada a atravessar o grande arco do céu. Eis ali, eis o herói que tantas vezes lhe foi prometido, Augustus César, filho de um deus, que fundará novamente uma era de ouro através dos campos outrora dominados pelo Saturno latino, e estenderá seu império além dos povos indianos e dos garamantes no norte da África; até a terra que está além das constelações, além dos caminhos do ano e do sol, onde Atlas faz rolar sobre seus ombros a abobada estrelada. Ante sua aproximação já agora os reinos cáspios recuam sob os oráculos dos deuses, e a terra dos meótidas e as sete desembocaduras trêmulas do Nilo se turbam. Não!, nem Hércules percorreu tantas terras, ele que flechou a cerva dos pés de bronze, que pacificou os bosques de Erimantus, e que com seu arco fez tremer a hidra de Lerna; nem tampouco aquele conquistador que conduziu seu carro com rédeas trançadas por videiras, Baco, guiando seus tigres desde os vértices de Nisa. Pois acaso hesitaremos em empregar nossa coragem em grandes aventuras, acaso o medo nos impedirá de botarmos os pés na terra da Ausônia?

“E quem é aquele, afastado, imponente, portando ramos de oliveira e emblemas sagrados? Eu reconheço os longos cabelos e a barba grisalha do rei romano por quem, pela primeira vez, serão estabelecidas as leis em nossa cidade, enviado da humilde Cures e de uma terra pobre rumo a um imenso império. A ele se sucederá Tulus, que romperá a tranquilidade de sua pátria, e erguerá às armas homens tardos e tropas então desacostumadas aos triunfos. Depois dele, um tanto vanglorioso, Ancus, demasiado afeito aos clamores populares. Você vê ainda os reis Tarquínios, o soberbo espírito de Brutus, o vingador, e os fasces cívicos que ele resgatou? Ele será o primeiro a receber a autoridade de um cônsul e os cruéis machados, e mesmo sendo pai, quando seus filhos provocarem novas rebeliões, os executará em nome da liberdade. Pobre homem, seja lá como a posteridade venha a avaliar tais feitos, o amor à pátria e o imenso desejo de glória hão de prevalecer.

“Mais adiante, observe os Décius e os Drúsus, Torquatus com seu machado impiedoso e Camilus trazendo de volta os estandartes. Mas estes espíritos que você vê brilhar entre armas emparelhadas, em harmonia agora enquanto são prisioneiros da noite, aí de nós, quão grande será a guerra que moverão uns contra os outros se chegarem a ver a luz da vida, quantas batalhas, quantas carnificinas! O sogro se precipitando das alturas alpinas e da fortaleza de Monecus; o genro, contra ele, apoiado pelos povos do Oriente. Não, meus filhos, não acostumem seus espíritos a tantas e tão grandes guerras, nem voltem contra suas próprias entranhas as forças vivas da sua pátria; e você, o primeiro de todos, você que descende do Olimpo, seja o primeiro a mostrar misericórdia, deixe cair as armas de sua mão, você, meu sangue!

“Aquele ali conduzirá, vitorioso, seu carro até o cume do Capitólio após o triunfo sobre Corinto, celebrado por abater os gregos. Aquele outro devastará Argos e a Micenas de Agamemnon, ele mesmo filho dos eácidas, descendente do poderoso guerreiro Aquiles, vingando os ancestrais de Troia e os templos profanados de Minerva. Quem poderá passar por você em silêncio, grande Catão, ou você, Cossus? E pela família dos Gracus ou pelos dois Cípios, dois trovões da guerra, os flagelos da Líbia? E Fabricius, poderoso em sua pobreza, ou você, Serranus, semeando sulcos? Aonde você me leva com tanta pressa, ofegante, ó Fábius? Você é aquele Maximus que sozinho, com sua resiliência, salvará o nosso Estado.

“Outros hão de forjar estátuas de bronze com tanta graça que parecerão respirar, sim, creio mesmo que hão de extrair do mármore faces vivas, hão de argumentar e debater melhor, e, descrevendo com seus bastões os movimentos do céu, hão de desvendar as origens das constelações; mas você, romano, lembre o seu poder para governar sobre os povos da Terra, pois suas artes hão de ser estas: pacificar, impor o império da lei, poupar os vencidos e abater os soberbos”.