A Gaivota, ou: O pequeno teatro do mundo

Do drama A Gaivota. Comédia em quatro atos de Anton Tchekhov. Moscou, 1896 d.C.

 

Tradução de Rubens Figueiredo. Cosac Naify.

oferecimento

 

 

 

 

Primeiro Ato

 

Um trecho do parque na fazendo de Sórin. Um alameda larga que parte da plateia e entra pelo parque rumo a um lago. Está parcialmente encoberta por um tablado construído às pressas, a fim de servir à apresentação de um espetáculo teatral doméstico, de modo que não é possível ver o lago. Há arbustos à direita e à esquerda do tablado, algumas cadeiras, uma mesinha. O sol acaba de se pôr. 

 

TREPLIOV

[olhando de relance para o tablado] Isto sim é um teatro. A cortina, depois o primeiro bastidor, o segundo bastidor e, em seguida, o espaço vazio. Nenhum cenário. A vista se abre direto para o lago e para o horizonte. Levantaremos a cortina exatamente às oito e meia, quando a lua surgir.

SÓRIN

Excelente.

TREPLIOV

Se Zariêtchnaia se atrasar, o efeito estará perdido, é claro. Já era hora de ela estar aqui. O pai e a madrasta a controlam muito e, para ela, sair de casa é tão difícil como sair de uma prisão. [Ajeita a gravata do tio] Sua barba e seu cabelo estão muito compridos. Seria melhor aparar um pouco, não acha?

SÓRIN [penteando a barba]

Esta é a tragédia da minha vida. Na mocidade, eu tinha sempre o aspecto de um beberrão, você nem imagina. As mulheres jamais gostaram de mim. [Senta-se] Por que minha irmã anda de mau humor?

TREPLIOV

Por quê? Está entediada. [Senta-se a seu lado] Sente ciúmes. Já está até contra mim, contra o espetáculo e contra a minha peça, porque não é ela que vai representar, e sim Zariêtchnaia. Nem conhece a minha peça mas já a odeia.

SÓRIN

[Ri] Você está imaginando coisas, francamente…

TREPLIOV

Ela já está aborrecida porque, nesse palco minúsculo, Zariêtchnaia vai brilhar, e não ela. [Olha para o relógio] Minha mãe é um caso psicológico muito curioso. Uma mulher de um talento inegável, inteligente, capaz de chorar sobre as páginas de um livro e repetir de cor todos os versos de Niekrássov; cuida dos doentes como um anjo; mas experimente elogiar Duse diante dela para ver o que acontece. Ah! Só se pode elogiar a ela e a mais ninguém, só se pode escrever sobre ela e aclamá-la e se entusiasmar com a sua extraordinária interpretação em A dama das camélias ou em O enlevo da vida, mas como aqui no campo não existe esse sedativo, ela se aborrece e se irrita, e todos nós viramos seus inimigos, todos nós somos culpados. Além disso, é supersticiosa, tem medo de três velas acesas e do número treze. É avarenta. No banco, em Odessa, tem guardados setenta mil rublos, sei disso com absoluta certeza. Mas tente pedir um empréstimo e vai ver como na mesma hora ela se põe a chorar.

SÓRIN

Você imaginou que sua peça não irá agradar à sua mãe e logo ficou alvoroçado. Acalme-se, sua mãe tem adoração por você.

TREPLIOV

[arrancando as pétalas de uma flor] Bem me quer, mal me quer, bem me quer, mal me quer, bem me quer, mal me quer. [Ri] Está vendo? Minha mãe não me ama. E não é de admirar! Ela quer viver, amar, vestir blusas de cores vistosas, mas eu já tenho vinte e cinco anos e, o tempo todo, a faço lembrar que não é mais jovem. Quando não estou presente, mamãe tem só trinta e dois anos mas, ao meu lado, tem quarenta e três e por isso me odeia. Ela também sabe que eu não tenho grande consideração pelo teatro. Ela ama o teatro e lhe parece que, com isso, presta um grande serviço à humanidade, à arte sagrada, mas para mim o teatro contemporâneo não passa de rotina e superstição. Quando a cortina sobe e, à luz da noite, entre as três paredes, esses talentos formidáveis, os sacerdotes da arte sagrada, representam como as pessoas comem, bebem, amam, andam, vestem seus casacos; quando, das cenas e das frases mais banais, tentam desencavar uma moral — pequenina, fácil de entender, útil para fins domésticos; quando, em mil variantes, me apresentam sempre a mesma coisa, a mesma coisa e a mesma coisa, então eu fujo correndo, como Maupassant fugia da torre Eiffel, que lhe oprimia o cérebro com sua vulgaridade.

SÓRIN

E impossível viver sem o teatro.

TREPLIOV

Precisamos de formas novas. Formas novas são indispensáveis e, se não existirem, então é melhor que não haja nada. [Olha para o relógio] Amo minha mãe, amo de todo o coração; mas ela vive de um modo absurdo, sempre às voltas com esse literato, o nome dela aparece toda hora nos jornais, e isso me aborrece. As vezes, o egoísmo do mais comum dos mortsps toma conta de mim; sinto mágoa por minha mãe ser uma atriz famosa e tenho a impressão de que eu seria mais feliz se ela fosse uma mulher comum. Tio, me diga que situação poderia ser mais desesperadora e mais | tola: às vezes, na companhia de minha mãe, há uma multidão de celebridades, artistas e escritores, e entre eles só eu não sou nada, todos só me aturam porque sou filho dela. Quem sou? O que sou? Tive de deixar a faculdade no terceiro ano, por circunstâncias independentes da minha vontade, como costumam dizer, não tenho nenhum talento, nenhum centavo no bolso e, segundo a minha carteira de identidade, não passo de um pequeno-burguês de Kiev. Tàmbém o meu pai foi um pequeno-burguês de Kiev, embora tenha sido um ator famoso. Então, quando todos aqueles artistas e escritores reunidos no salão de visitas da minha mãe se dignavam a me dar atenção, eu tinha a impressão de que, com seus olhares, eles mediam a minha insignificância… Eu adivinhava os pensamentos dessa gente e a humilha¬ ção me fazia sofrer…

SÓRIN

A propósito, me explique, por favor, que tipo de homem é esse escritor? Eu não o entendo. Vive calado.

TREPLIOV

Um homem inteligente, simples, um pouquinho melancólico, você sabe como é. Muito honesto. Ainda está longe dos quarenta anos, mas já é famoso e se sente farto da vida… Com relação ao que ele escreve… como posso lhe dizer? Item beleza, tem talento… Mas… depois de Tolstói ou de Zola, não dá vontade de ler Trigórin.

SÓRIN

Pois quanto a mim, meu caro, adoro escritores. No passado, eu desejava apaixonadamente duas coisas: casar e ser um escritor, mas não consegui nem uma coisa nem outra. Pois é. No fim das contas, até ser um escritor menor é agradável.

TREPLIOV

[pondo-se a ouvir com atenção] Ouço passos… [Abraça o tio] Não posso viver sem ela… Até o som dos seus passos é bonito… Fico louco de felicidade. [Vai às pressas ao encontro de Nina Zariêtchnaia, que entra] Feiticeira, meu sonho…

NINA

[emocionada] Não cheguei atrasada… Sei que não estou atrasada, estou?

TREPLIOV

[beijando as mãos dela] Não, não, não…

NINA

Fiquei agitada o dia inteiro, senti tanto medo! Tive medo de que papai não me deixasse vir… Mas ele saiu com minha madrasta. O céu está vermelho, a lua já está começando a subir e eu fiz meu cavalo correr e correr tanto! [Ri] Mas estou contente. [Aperta com força a mão de Sórin]

SÓRIN

[Ri] Seus olhinhos parecem ter chorado… Ora, ora! Isso não é bom!

NINA

Não foi nada… Vejam, estou até sem fôlego. Tenho de voltar daqui a meia hora, precisamos nos apressar. Não posso, não posso, não me detenham, pelo amor de Deus. Papai não sabe que estou aqui.

TREPLIOV

Na verdade já é hora de começar. Temos de chamar a todos.

SÓRIN

Eu vou buscá-los. Num minuto. [Segue para a direita e canta] “Dois granadeiros foram para a França…” [Olha para trás] Uma vez cantei assim e um colega procurador me disse: “Vossa Excelência tem a voz possante”… Depois pensou um pouco e acrescentou: “Mas… enjoativa”. [Ri e sai]

NINA

Papai e sua esposa não me deixam vir para cá. Dizem que aqui só há boêmios… Eles têm medo de que eu acabe me tornando uma atriz… Mas eu me sinto atraída para cá, para o lago, como uma gaivota… Meu coração é todo seu. [Olha para trás]

TREPLIOV

Estamos sozinhos.

NINA

Parece que tem alguém lá…

TREPLIOV

Não há ninguém. [Beijam-se]

NINA

Que árvore é esta?

TREPLIOV

Um olmo.

NINA

Por que está tão escuro?

TREPLIOV

Já está anoitecendo, todas as coisas ficam escuras. Não vá embora tão cedo, eu imploro.

NINA

É impossível.

TREPLIOV

E se eu também for à sua casa. Nina? Vou ficar no jardim a noite inteira e olhar para a sua janela.

NINA

É impossível. O cão de guarda iria perceber. Tresor ainda não está habituado com você e iria começar a latir.

TREPLIOV

Amo você.

NINA

Psss…

TREPLIOV

[ouvindo passos] Quem está aí? É você, Iákov?

IÁKOV

[atrás do tablado] Sim, senhor.

TREPLIOV

Tomem seus lugares. Está na hora. A lua está subindo?

IÁKOV

Sim, senhor.

TREPLIOV

O álcool está aí? O enxofre também? Quando aparecerem os olhos vermelhos, tem de haver um cheiro de enxofre. [Para Nina] Vá, já está tudo preparado. Está nervosa?…

NINA

Sim, muito. Sua mãe… Não, dela eu não receio nada, mas Trigórin está aqui… Tenho medo e vergonha de representar diante dele… Um escritor famoso… E jovem?

TREPLIOV

É.

NINA

Como os contos dele são maravilhosos!

TREPLIOV

[com frieza] Não sei, nunca li.

NINA

E difícil representar a peça que você escreveu. Não tem personagens vivos.

TREPLIOV

Personagens vivos! Não se deve representar a vida do jeito que ela é, nem do jeito que devia ser, mas sim como ela se apresenta nos sonhos.

NINA

Na sua peça há pouca ação, é só declamação, do início ao fim. E, para mim, uma peça precisa ter amor…

[Saem por trás do tablado. Entram Polina Andréievna e Dorn.]

POLINA

Está ficando úmido. Volte e calce as galochas.

DORN

Estou com calor.

POLINA

O senhor não se cuida direito. E pura teimosia. O senhor é médico e sabe muito bem que o ar úmido lhe faz mal, mas insiste nisso só para me fazer sofrer. Ontem, o senhor passou a noite inteira sentado na varanda, de propósito…

DORN

[cantarola] “Não diga que a mocidade está perdida.”

POLINA

O senhor ficou tão empolgado com a conversa com Irina Nikoláievna… que nem notou o frio. Confesse que gostou dela.

DORN

Tenho cinquenta e cinco anos.

POLINA

Deixe disso: para um homem, isso não é velhice. O senhor está esplendidamente conservado e ainda agrada às mulheres.

DORN

Mas o que a senhora quer dizer, afinal?

POLINA

Diante de uma atriz, todos vocês estão sempre dispostos a ficar de joelhos. Todos!

DORN

[cantarola] “Estou de novo diante de ti…” Se os atores são admirados na sociedade e recebem um tratamento diferente do que se dispensa, por exemplo, aos comerciantes, isso é perfeitamente natural. É o idealismo.

POLINA

As mulheres sempre se apaixonavam pelo senhor e se atiravam nos seus braços. Isso também era idealismo?

DORN

[dando de ombros] Ora! Havia muita coisa boa nas atenções que as mulheres me dedicavam. Em mim, elas estima¬ vam sobretudo o médico competente. Uns dez… ou quinze anos atrás, a senhora se lembra, eu era o único obstetra capaz em toda a província. Além do mais, sempre fui um homem honrado.

POLINA

[segura a mão dele] Meu querido! DORN Fale baixo, vem gente.

[Entram Arkádina e Sórin de braços dados, Trigórin, Chamraiev, Miedviediênko e Macha.]

CHAMRAIEV

Em 1873, na feira de Poltava, ela representou de forma magnífica. Uma maravilha! Um milagre! [Para Arkádina] Por acaso a senhora não sabe por onde anda agora o cômico Pavel Siemiônitch Ifchadin? Ele era incomparável no papel de Raspliuiev, melhor do que Sadovski, eu juro, minha cara. Por onde ele anda agora?

ARKÁDINA

O senhor sempre pergunta a respeito dessas pessoas antediluvianas. Como vou saber? [Senta-se]

CHAMRAIEV

[suspira] Pachka Tchadin! Não existem mais atores como ele! O teatro entrou em decadência, Irina Nikoláievna! Antigamente, havia carvalhos grandiosos; hoje, só vemos uns toquinhos de árvore.

DORN

Hoje há poucos talentos brilhantes, é verdade, mas o nível dos atores medianos melhorou muito.

CHAMRAIEV

Não posso concordar com o senhor. Aliás, esta é uma questão de gosto. De gustibus aut bene, aut nihil [Sobre o gosto, fale-se bem ou nada se fale”.]

[Trepliov entra, vindo de trás do tablado.]

ARKÁDINA

[para o filho] Meu filho querido, quando a peça vai começar?

TREPLIOV

Num minuto. Tenha paciência.

ARKÁDINA

[recita um trecho de Hamlet] “Meu filho, Hamlet! Tu fizeste meus olhos se voltarem para dentro da minha alma e eu a descobri tão coberta de sangue e de chagas mortais que não pode mais haver salvação!”

TREPLIOV

[também de Hamlet] “Então para que te entregaste ao vício e foste buscar o amor num abismo de crime?”

[Por trás do tablado, tocam um clarim.]

TREPLIOV

Senhores, vai começar! Peço a atenção de todos! Eu começo. [Bate com um bastão e fala bem alto] Oh, veneráveis sombras antigas, que nas horas noturnas pairam sobre este lago, façam-nos dormir e sonhar com aquilo que há de acontecer daqui a duzentos mil anos!

SÓRIN

Daqui a duzentos mil anos, não existirá mais nada.

TREPLIOV

Pois então que nos mostrem como será esse nada.

ARKÁDINA

Assim seja. Já estamos dormindo.

[A cortina se levanta, surge a vista do lago; a lua, logo acima do horizonte, reflete-se na água; sobre uma pedra grande, está sentada Nina Zariêtchnaia, toda de branco.]

NINA

Homens, leões, águias e perdizes, cervos de grandes chifres, gansos, aranhas, peixes silenciosos que habitavam as águas, estrelas do mar e criaturas que os olhos não eram capazes de ver — em suma, todas as vidas, todas as vidas, todas as vidas, depois de concluírem seu triste ciclo, se extinguiram… Há muitos milhares de anos não existe mais uma única criatura viva sobre a terra e esta pobre lua acende sua lanterna em vão. No prado, os grous já não despertam com um grito, nem se ouvem os besouros nos bosques de tílias. Frio, frio, frio. Deserto, deserto, deserto. Horror, horror, horror.

[Pausa]

NINA

Os corpos dos seres vivos se desfizeram em pó e a matéria eterna os transformou em pedra, água, nuvens, e as almas de todos os seres vivos fundiram-se em uma só. A alma do mundo sou eu… eu… Em mim, habita a alma de Alexandre o Grande, de César, de Shakespeare, de Napoleão e a alma da mais reles sanguessuga. Em mim, as consciências de todos fundiram-se com os instintos dos animais e eu me lembro de tudo, de tudo, e sinto em mim todas as vidas viverem de novo.

[Rebrilham fogos-fátuos no pântano.]

ARKÁDINA

[em voz baixa] Isso está um tanto decadentista.

TREPLIOV

[em tom de súplica e de censura] Mãe!

NINA

Estou só. Uma vez a cada cem anos, abro a boca para falar e minha voz ressoa neste deserto tristonho, mas ninguém escuta… E vocês, oh pálidas luzes dos fogos-fátuos, não me escutam… De madrugada, o pântano pútrido as traz ao mundo e vocês, pálidas luzes, vagueiam até a aurora, mas sem pensamentos, sem vontade, sem os tremores da vida. Receoso de que a vida irrompa em vocês, o pai da matéria eterna, o diabo, promove um fluxo incessante de átomos, como acontece com as pedras e a água, e vocês são continuamente transformadas. No universo, só o espírito permanece constante e invariável.

[Pausa]

NINA

Como um prisioneiro lançado num poço profundo e vazio, não sei onde estou e o que me espera. Para mim, só é claro que, na batalha encarniçada e cruel contra o diabo, origem das forças materiais, estou destinado a sair vencedor, e, depois disso, a matéria e o espírito se fundirão em uma harmonia maravilhosa e terá início o reino da vontade universal. Mas isso só acontecerá quando, pouco a pouco, ao fim de uma longa série de milênios, a lua, a luminosa Sírius e a terra se houverem transformado em poeira… Até lá, o horror, o horror…

[Pausa: no outro lado do lago, surgem dois pontinhos vermelhos.]

NINA

Eis que se aproxima meu poderoso adversário, o diabo. Vejo seus olhos rubros e medonhos…

ARKÁDINA

Sinto cheiro de enxofre. Será mesmo necessário?

TREPLIOV

É, sim.

ARKÁDINA

[rí] Ah, é um efeito especial.

TREPLIOV

Mãe!

NINA

Ele se entedia, sem ninguém…

POLINA

[para Dorn] O senhor tirou o chapéu. Cubra-se, ou vai se resfriar.

ARKÁDINA

O médico tirou o chapéu porque está diante do diabo, o pai da matéria etema.

TREPLIOV

[com raiva, erguendo a voz] A peça acabou! Chega! Baixem a cortina!

ARKÁDINA

Por que você ficou zangado?

TREPLIOV

Chega! Cortina! Baixem a cortina! [Bate o pé] Cortina!

[A cortina é baixada.]

TREPLIOV

Peço desculpas! Esqueci que só uns poucos eleitos podem escrever peças e representar num palco. Perturbei o monopólio! Para mim… eu… [Ainda deseja falar alguma coisa, mas abana a mão e sai pela esquerda]

ARKÁDINA

Mas o que deu nele?

SÓRIN

Você o ofendeu.

ARKÁDINA

Ele mesmo avisou que era uma brincadeira, então tratei sua peça como uma brincadeira.

SÓRIN

Mesmo assim…

ARKÁDINA

Pois, então, agora ficamos sabendo que ele escreveu uma obra genial! Era só o que faltava! Quer dizer que ele montou esse espetáculo e soltou essa fumaceira com cheiro de enxofre não por brincadeira, mas como um protesto… Quer nos ensinar como se deve escrever e o que se deve representar… No fim, tudo isso me dá tédio. Esses ataques constantes contra mim, ou essas pirraças, se preferirem, são de encher a paciência de qualquer pessoa! Um menino mimado e birrento.

SÓRIN

Ele quis lhe oferecer uma diversão.

ARKÁDINA

Ah, é? No entanto, em vez de escolher uma peça comum, ele nos obrigou a escutar esse disparate decadentista. Pois estou disposta a ouvir uma brincadeira, e até um disparate, mas não essas pretensões a formas novas e a uma nova era na arte. Para mim, não se trata de formas novas, o que há aqui é apenas má índole.

TRIGÓRIN

Cada um escreve como quer e como pode.

ARKÁDINA

Pois que ele escreva como quiser e como puder, mas que me deixe em paz.

DORN

Júpiter, estás irado…

ARKÁDINA

Não sou Júpiter, sou uma mulher. [Acende um cigarro] Não estou irada, só lamento que um jovem passe seu tempo de modo tão enfadonho. Eu não queria ofendê-lo.

MIEDVIEDIÊNKO

Ninguém dispõe dos meios de separar o espírito da matéria, pois talvez o próprio espírito seja um conjunto de átomos. [Animado, para Trigórin] Que tal escrever uma peça sobre como vivem os nossos irmãos professores e levá-la ao palco? E uma vida difícil, muito difícil!

ARKÁDINA

É uma ideia justa, mas não vamos falar mais de peças, nem de átomos. A noite está tão agradável! Escutem! Não estão cantando? [Ouve com atenção] Que bonito!

POLINA

Vem da outra margem.

[Pausa.]

ARKÁDINA [para Trigórin]

Sente-se ao meu lado. Uns dez ou quinze anos atrás, aqui no lago, quase todas as noites se ouvia música e cantoria. Aqui, na beira do lago, existem seis grandes casas de campo. Lembro-me dos risos, das vozes, dos tiros das caçadas, dos namoros, tantos namoros… O jeune premier, o galã e ídolo das seis propriedades, na época, permitam que lhes apresente [acena com a cabeça na direção de DORN], era o doutor Ievguêni Sierguêievitch. Hoje, é um homem encantador, mas era irresistível naquele tempo. Pronto, minha consciência já começou a me torturar. Por que fui ofender o meu pobre menino? Estou tão aflita. [Em voz mais alta] Kóstia! Meu filho! Kóstia!

MACHA

Vou procurá-lo.

ARKÁDINA

Muito obrigada, querida.

MACHA

[saindo pela esquerda] Ei! Konstantin Gavrilovitch… Ei!

[Sai]

NINA

[vindo de trás do tablado] Está claro que a peça não vai mais continuar, por isso já posso sair. Boa noite para todos! [Beija Arkádina e Polina Anãréievna]

SÓRIN

Bravo! Bravo!

ARKÁDINA

Bravo, bravo! Ficamos encantados. Com essa aparência, com essa voz tão fora do comum, é até um pecado ficar escondida aqui no campo. A senhorita parece ter muito talento. Está ouvindo? Seu dever é subir ao palco!

NINA

Ah, esse é o meu sonho! [Suspira] Mas nunca se tornará realidade.

ARKÁDINA

Quem pode saber? Permita que lhe apresente Boris Aleksêievitch Trigórin.

NINA

Ah, muito prazer… [Encabulada] Leio sempre o que o senhor escreve…

ARKÁDINA

[sentando-se ao lado dela] Não fique encabulada, minha querida. Trigórin é uma celebridade mas, por dentro, é um homem simples. Veja, ele mesmo está encabulado.

DORN

Creio que agora já podemos levantar a cortina, pois deste jeito fica tétrico.

CHAMRAIEV

[em voz alta] Iákov, levante a cortina, meu rapaz!

[Ergue-se a cortina.]

NINA

[para Trigórin] Não achou estranha essa peça?

TRIGÓRIN

Não compreendi nada. Mesmo assim, acompanhei tudo com prazer. A senhorita representou com muita sinceridade. E o cenário era magnífico.

[Pausa.]

TRIGÓRIN

Nesse lago deve haver muitos peixes.

NINA

Há, sim.

TRIGÓRIN

Adoro pescar. Para mim, não existe prazer maior do que ficar sentado na beira de um lago, à tardinha, olhando para a boia presa à linha.

NINA

Mas eu imagino que, para quem experimentou o prazer da criação artística, todos os outros prazeres perdem o sentido.

ARKÁDINA

[ri] Não fale assim. Quando lhe dizem coisas gentis, ele fica muito sem graça.

CHAMRAIEV

Lembro que, certa vez, no teatro de ópera em Moscou, o famoso Silva cantou o dó mais grave. Nessa ocasião, como que de propósito, estava sentado na galeria um dos baixos do coro da nossa arquidiocese, e de repente, os senhores podem calcular o nosso espanto, ouvimos uma voz lá na galeria: “Bravo, Silva!’. Uma oitava inteira abaixo… Assim: [com voz grave] “Bravo, Silva!”. O teatro como que congelou.

[Pausa.]

DORN

Passou um anjo por aqui.

NINA

Está na minha hora. Adeus.

ARKÁDINA

Aonde vai? Aonde vai tão cedo? Não a deixaremos ir embora.

NINA

Papai está à minha espera.

ARKÁDINA

Como ele pode fazer isso conosco?

[Beijam-se.]

ARKÁDINA

Bem, o que se vai fazer? É uma pena que a senhorita tenha de ir embora.

NINA

A senhora nem imagina como eu lamento ter de partir.

ARKÁDINA

Alguém devia acompanhá-la até sua casa, meu anjo.

NINA

[assustada] Ah, não. Não!

SÓRIN

[para ela, em tom de súplica] Fique!

NINA

Não posso, Piotr Nikoláievitch.

SÓRIN

Fique só mais uma hora. Por favor…

NINA

[após refletir, em lágrimas] É impossível! [Abana a mão e sai ligeiro]

ARKÁDINA

Uma jovem muitíssimo infeliz. Dizem que sua falecida mãe deixou de herança para o marido toda a sua imensa fortuna, até o último copeque, e agora essa mocinha ficou sem nada, pois o pai já deixou tudo de herança para a segunda esposa. E revoltante.

DORN

Sim, o pai dela, justiça seja feita, é um verdadeiro boçal.

SÓRIN

[esfregando as mãos geladas] Vamos entrar, senhores, antes que fique muito úmido. Minhas pernas estão doendo.

ARKÁDINA

Suas pernas parecem de madeira, quase não se mexem. Vamos lá, velho desafortunado. [Segura-o pelo braço]

CHAMRAIEV

[oferecendo o braço à esposa] Madame?

SÓRIN

Estou ouvindo o cachorro uivar de novo. [Para Chamraiev] Iliá Afanássievitch, faça a gentileza de mandar soltar esse cachorro.

CHAMRAIEV

É impossível, Piotr Nikoláievitch. Tenho medo de que os ladrões entrem no celeiro. Lá, eu guardo o meu painço. [Para Miedviediênko, que caminha a seu lado] Pois foi assim mesmo, uma oitava inteira abaixo: “Bravo, Silva!”. E nem era um cantor de ópera, mas um simples cantor do coro da arquidiocese.

MIEDVIEDIÊNKO

E quanto ganha um cantor do coro da arquidiocese?

[Todos saem, exceto Dorn]

DORN [sozinho] Não sei, talvez eu não entenda mesmo nada, ou esteja maluco, mas gostei da peça. Há alguma coisa, ali. Quando aquela mocinha falou sobre solidão e depois, quando surgiram os olhos vermelhos do diabo, minhas mãos tremeram de emoção. Há um frescor, uma inocência… Ah, parece ser ele quem vem ali. Eu gostaria de lhe dizer muitas coisas agradáveis.

TREPLIOV

[entra] Já não tem mais ninguém.

DORN

Eu estou aqui.

TREPLIOV

A Máchenka andou atrás de mim pelo parque inteiro. Criatura insuportável.

DORN

Konstantin Gavrilovitch, a peça do senhor me agradou imensamente. E um tanto estranha e não pude ver o final, mesmo assim o efeito é forte. O senhor é um homem de talento, deve persistir.

[Trepliov aperta com força sua mão e o abraça, impetuoso.]

DORN

Puxa, como está nervoso! Tem lágrimas nos olhos… Mas o que era mesmo que eu queria lhe dizer? O senhor foi colher seu assunto na esfera das idéias abstratas. E isso é muito bom, porque uma obra de arte deve necessariamente expressar um pensamento elevado. Só o que é sério pode ser belo. Mas como o senhor está pálido!

TREPLIOV

Então o senhor diz que devo persistir?

DORN

Sim… Mas só ponha em cena o que for importante e eterno. O senhor sabe, levei uma vida bem variada e apro¬ veitei bastante o meu tempo, não tenho do que me queixar, mas se me tivesse acontecido de experimentar uma elevação do espírito, como ocorre com os artistas na hora da criação, acho que eu teria desprezado o meu invólucro material e tudo o que é próprio dele, e me deixado levar para as alturas, para bem longe da terra.

TREPLIOV

Perdão, mas onde está Zariêtchnaia?

DORN

E mais uma coisa. Nas obras de arte, deve haver um pensamento claro, bem definido. O senhor precisa saber para que escreve. Senão, ao trilhar esse caminho pitoresco sem ter um objetivo bem definido, vai acabar se perdendo e o seu talento será a sua perdição.

TREPLIOV

[impaciente] Onde está Zariêtchnaia?

DORN

Foi para casa.

TREPLIOV

[em desespero] O que vou fazer agora? Queria falar com ela… Preciso vê-la de qualquer jeito… Vou atrás dela…

[Entra Macha.]

DORN

[para Trepliov] Acalme-se, meu amigo.

TREPLIOV

Irei atrás dela, seja como for. Tenho de ir.

MACHA

E melhor ir para casa, Konstantin Gavrilovitch. Sua mãe espera pelo senhor. Está preocupada.

TREPLIOV

Diga a ela que parti. Peço a todos vocês que me deixem em paz! Deixem-me! Não venham atrás de mim!

DORN

Ora, ora, ora, meu caro… Não se pode agir assim… Não é bom.

TREPLIOV

[entre lágrimas] Adeus, doutor. Muito obrigado… [Sai]

DORN

[suspira] Mocidade, mocidade!