A ética dos tempos heróicos

De Juventus Mundi – Os deuses e homens da idade “heróica” de William Ewart Gladstone, quatro vezes Primeiro Ministro da Grã-Bretanha. Londres, 1858 d.C.

 

O ponto em que o tom ético da idade heróica atinge a sua maior altura é, talvez, a força das afeições domésticas. São elas as que prevalecem no Olimpo; e constituem uma amável feição no retrato das divindades, mesmo daquelas que não têm mais nada que as recomende.

Não é só Posseidon que é solícito para o brutal Polifemo, e Zeus para o nobre e galante Sarpedon ou Ares para Ascálafo e Afrodite para Eneias. Na família real de Tróia ha muito pouco de alta moralidade; mas o amor paterno é veemente nos caracteres, de resto pouco extremos, de Príamo e de Hécuba, Ulisses escolhe para título pelo qual queria ser conhecido, o de pai de Telêmaco. O simples retrato de Penélope, ralando-se de saudades durante vinte anos pela ausência de seu marido e pedindo para que ele torne à vida, porque nunca poderá recrear o espirito dum homem mais baixo, não podia ter sido desenhado noutro país senão naquele em que o nível neste grande ramo de moralidade era duma altura incomparável. Este é o exemplo capital e mais saliente. Outros poderão segui-lo, ainda que nenhum possa igualá-lo.

Talvez mesmo que, mais ainda que outras espécies de amor familiar, o sentimento natural que existe entre pais e filhos estivesse profundamente enraizado na moralidade da idade heroica. A afeição de Aquiles por Peleu, de Ulisses por seu pai Laertes e por sua mãe Antileia, é igualmente profunda e terna. Os que morrem novos, como Simoisio à mão de Ajax, morrem antes que tenham tido tempo de pagar a seus pais a sua “treptra”, as penas e os cuidados de os educar. Fênix, no auge da cólera provocada por seu pai, e num país em que o homicídio era considerado mais como uma calamidade do que como um crime, deixa de exercer sobre ele qualquer violência, com medo de vir a ser estigmatizado entre os aqueus com o ferrete do parricídio. Tudo isto era recompensado da parte dos pais: mesmo em Tróia, como podemos julgar pelo procedimento e pelas palavras de Heitor, de Andrômaca, de Príamo. Enquanto o pai de Ulisses anseia na terra pelo seu regresso, sua mãe morre de dor pela ausência. E a sombra de Aquiles no outro mundo implora apenas que lhe digam se Peleu continua a ser honrado; e um momentâneo raio de luz e de alegria lhe ilumina a sombria e lúgubre existência, quando sabe que seu filho Neoptólemo se tem mostrado digno de seu senhor e alcançou um nome glorioso como guerreiro. Até a natureza egoísta de Agamemnon não lhe impede que sinta uma terrível ansiedade por seu irmão Menelau. Aí onde os interesses humanos se alargam e ramificam por esta tenacidade das afeições domésticas, as gerações dos homens unem-se intimamente umas às outras; o cuidado pelo futuro torna-se uma origem de nobres ações; o amor pelo passado determina uma emulação da sua grandeza, e como é na historia que estes sentimentos acham os seus meios de subsistência, o poeta primitivo de um tal país mal pode ser mais do que um historiador.

E certo que não vemos em Homero que ele indique pelo seu nome parentescos que vão para além dos primos direitos. Mas é indubitável que o laço de sangue tinha uma largura maior; e é o que nos mostra aquela passagem da Ilíada onde se vê que as divisões do exército eram subdivididas em tribos e clãs. A hospitalidade transmite-se do mesmo modo através das gerações; Diomedes e Glauco trocam as armas e combinam evitar-se na peleja, porque seus avós tinham sido hóspedes.

A intensidade da admiração do poeta pela beleza da forma, é exibida tanto no que se refere aos homens, como às mulheres, como aos animais. Aquiles, o seu maior guerreiro, é também o seu homem mais belo; Ajax, o segundo soldado, ocupa também a segunda ordem na beleza segundo Ulisses. Nereu, seu rival, é comemorado pela sua beleza, ainda que sobre outros aspectos o declare uma figura insignificante. Ulisses, avelhantado, se não velho, sente-se transportado pela beleza de Nausica. Como Helena, são belas as suas principais mulheres, exceto as de positiva velhice (pois que Penélope ainda está incluída). Ele sentiu intensamente, como transparece em muitas passagens, a beleza do cavalo. Mas esta admiração por toda a beleza da forma parece ter sido um sentimento inteiramente puro. O seu único episodio licencioso, o da Rede de Hefesto, tirou-o duma mitologia oriental. Ele narra-o como tendo sido contado diante de homens e não de mulheres; e não na Grécia, mas na Esquéria, entre um auditório fenício. E em Tróia que os olhos ávidos dos velhos perseguem Helena quando ela passa. Os únicos gregos que o fazem são os dissolutos e detestáveis pretendentes da Odisseia. Os atos de Hera, no canto décimo quarto da Ilíada, não têm nada de impudicos, e um único sentimento de Tétis pode ser criticado. Mas preciso fazer as seguintes observações: Em primeiro lugar, todos os incidentes discutíveis dos sentimentos estão na esfera da mitologia, que a muitos respeitos tendeu para corromper e não para elevar a humanidade. Em segundo lugar, uma verba de licenciosidade tão insignificante contribui para a grande enciclopédia da vida humana que nos é apresentada nos poemas. Em terceiro lugar, mesmo os grandes escritores dos tempos cristãos, pouco suportariam a aplicação dum rígido exame como Homero. E por último, observemos a absoluta inteireza que domina os poemas, onde Artemis, a severamente pura, é comumente representada como um objeto de veneração, enquanto Afrodite é também comumente representada de uma maneira a atrair a aversão ou o desprezo, e onde, entre os caracteres humanos, nenhum ato licencioso é narrado a ponto de confundir ou perverter o sentido do bem e do mal. A maneira como o poeta trata Páris sobre a terra, de quem ele fez o seu único príncipe ou guerreiro desprezível, está inteiramente em harmonia com o modo como trata Afrodite entre os imortais.

Não prestando atenção às coisas indecorosas da pessoa humana, a polidez de Homero é uniforme e talvez sem rival. Em relação às mulheres, não há nem a mais leve alusão a essas coisas indecorosas. Em relação aos homens, as únicas alusões que encontramos são sérias e admiravelmente tratadas. Quando Ulisses ameaça despir Hersites, é apenas para fazer dele um objeto de grande aversão. Príamo anuncia que seu corpo nu será dilacerado pelos animais, o insulto à decência natural serve unicamente para exprimir a intensa agonia de sua alma.

A cena em que Ulisses emerge do mar sobre a costa da Esquéria, é talvez das mais cuidadas, e contudo das mais simples e naturais exibições de verdadeira decência em toda a literatura. E o modo como tudo isto nos é apresentado, sugere-nos que não forma senão uma pintura dos costumes gerais da nação naquele tempo. Sabemos de Tucídides que esta polidez subsistiu durante muito tempo na Grécia.

A moralidade do período homérico é o da infância duma raça: a moralidade dos tempos clássicos pertence à sua virilidade. No que diz respeito aos últimos, pode-se dizer que duas coisas tendem particularmente a levantar o seu nível. Com as formas regulares de organização política e civil, surge no direito escrito um testemunho público em abono, afinal, da verdade, da honestidade e da justiça. Porque, enquanto a conduta privada representa a alma humana pelo ângulo das opiniões pessoais, a lei, como regra geral, diz-nos o que cada uma das nossas percepções afirmaria, se não houvesse tal ângulo para as justificar. Mas, com o direito e a ordem aparece a ideia mais clara gozo mais perfeito dos frutos do trabalho; e em proveito da própria segurança, cada homem reconhece os direitos da propriedade. São estas influências poderosas para o bem num grande departamento da moral. Além disso, com uma beleza mais imponente, mas provavelmente com menos eficácia prática, a inteligência especulativa do homem, meteu-se ao trabalho e estabeleceu teorias abstratas da virtude, do vício e suas consequências, que pela sua clareza e pelo seu método envergonharam a ética indeterminada da remota antiguidade. São estas razões para considerar. Mas as outras deviam, penso eu, predominar, pelo menos, pela simples consideração de que o credo da idade homérica levaria tanto sentimento como o medo da justiça divina a serem peias para o vício e para a paixão. E afinal depois do exame que se fez, era preciso na minha opinião ser muito ousado para asseverar que, ou os deveres do homem para com a divindade, ou os direitos do homem sobre o homem eram melhor compreendidos no tempo de Péricles ou Alexandre, de Sula ou Augusto, do que no tempo de Homero.

Talvez o seguinte esboço da vida grega nos tempos heroicos não esteja muito longe da verdade.

O mancebo de alto nascimento, que então não vivia tão separado do de baixo nascimento como hoje em dia, é educado, por preceptores, na reverência a seus pais e no desejo de rivalizar com a sua fama; toma parte em jogos graciosos e varonis; adquire o uso das armas; exercita-se na perseguição, nesse tempo a mais indispensável de todas – a caça dos animais ferozes; obtém o conhecimento da medicina e naturalmente também o da lira. Algumas vezes, com uma inteligência plurilateral, aprende mesmo a construir a sua própria casa ou navio, ou a guiar o arado nos sulcos do terreno, assim como a segar o trigo.

Depois, já homem, pega em armas para a defesa da pátria ou da tribo, toma parte no governo, aprende pela instrução direta, e pela prática a maneira de dirigir os homens pelo uso do raciocínio e do poder de persuasão nas assembleias políticas, colabora e assiste aos sacrifícios dos deuses. Porque ele esteve durante todo esse tempo em relações cordiais e livres não só com seus pais, sua família, seus iguais da mesma idade, mas com os próprios seres que o conheceram desde criança no domínio de seu pai.

No que ele é indubitavelmente mal instruído é no uso da força bruta. A vida humana custa pouco, tão pouco que até um mancebo dócil e pacifico pode se arriscar a largá-la numa contenda casual de algum divertimento infantil. E mesmo através de toda a sua vida nalguma ocasião, a besta feroz traria as suas paixões à superfície, acordaria, dentro dele, e fa-lo-ía perder a sua humanidade durante algum tempo até que a razão restabelecesse o seu domínio.

Afora crises tão graves, e apesar de incapaz, por coisa alguma, de roubar o seu amigo ou vizinho, não deixaria de lhe agradar um triunfo à custa dele, com alguma prática de assinalado engenho; enquanto de uma tribo hostil ou de uma região estranha, ou de um indivíduo que se tornou seu inimigo, adquirirá à força o que puder, não escrupulizando de lhe infligir por estratagema mesmo, algum dano mortal. Mas devia dar liberalmente a todos os necessitados, ao viandante, ao pobre, a todo aquele que pede abrigo e proteção. Por outro lado, se desperdiçava os seus bens, as contribuições liberais e francas familiares não se fariam esperar muito para os substituir.

A sua tenra juventude não é solicitada para o vício por estar em voga o excesso sensual, nem se daria a ocasião dele relampejar nos seus olhos ou ressoar nos seus ouvidos. A gula mal é conhecida; a embriaguez é notada apenas pela sua degradação e pelas más consequências que traz consigo; e é detestada. Mas gosta dos jantares festivos e regozija-se quando os convivas desfrutam uma hospitalidade liberal e o vinho espuma nas taças; ouve então os threnos do aedo, que celebra os contos heroicos mais novos e mais caros, e lhes incute a ambição de por uma vez serem os heróis da sua terra. Dança, também, nas festas religiosas, a mão da donzela sobre o seu pulso e o gládio dourado cintilando na cinta, à medida que vão passando e rodopiando. Essa donzela, alguma Nausica ou alguma Hermione dum distrito vizinho, casa quando for tempo, com regozijo das famílias, e faz com que todos os do seu lar a estremeçam “desde a florescência da vinha até ao amadurecer do cacho” com respeito, fidelidade e amor.

Quer como governante quer como governado, a política não lhe traz, em circunstâncias normais, nenhum motivo de inquietação. O governo é uma máquina cujas rodas se movem muito facilmente, porque são bem lubrificadas pela simplicidade dos usos, ideias e desejos, pela unidade dos interesses, pelo respeito da autoridade e daqueles em cujas mãos ela repousa, pelo amor da pátria comum, do altar comum, das festas e dos jogos comuns, a que se concede uma grande importância; durante a paz acalma as disputas do seu povo; e na guerra dá-lhe o precioso exemplo duma coragem heróica. Consulta-os e aconselha-se com eles em todos os negócios graves; e o cuidado que tem pelos seus interesses é remunerado pelos amplos domínios que o povo reserva para o príncipe. Finalmente solta o último suspiro, transmitindo o cetro a seu filho, depois de ter espalhado em roda dele a paz e a felicidade.

Tal era, segundo toda a probabilidade, o estado da sociedade, em cuja última fase se passou a juventude de Homero. Mas à guerra de Tróia parece ter sucedido uma tenebrosa e profunda revolução que já se repercute na Odisseia. O próprio Ulisses mal pôde lutar com ela, apesar de se encontrar num meio limitado como Ítaca. No continente bem depressa se desfazem os laços da velha sociedade. As casas de Pelops, de Neleu, de Eneias naufragam; a desorganização origina a entrada de novas forças, que a vêm dominar; as lanças dóricas eriçam-se nas praias etólias, e a Grécia primitiva, a Grécia patriarcal, a Grécia de Homero, já não existe.