A Cidade é para as pessoas

De Jane Jacobs. Revista Fortune. Nova York, 1953 d.C.

 

Este será um ano crítico para o futuro das cidades. Por toda parte nos Estados Unidos lideranças civis e administradores públicos estão preparando diversos projetos de retomada do desenvolvimento que estabelecerão o caráter dos centros das nossas cidades por muitas gerações adiante. Grandes lotes, quadras imensas estão sendo demolidas; somente umas poucas cidades têm os seus projetos para as novas áreas centrais em fase de construção; mas quase toda grande cidade está se preparando para construir, e logo os projetos estarão prontos.

Qual será o aspecto destes projetos? Eles serão espaçosos, parecidos com parques, com baixa densidade populacional. Eles apresentarão grandes panoramas verdes. Eles serão estáveis, simétricos e ordenados. Serão limpos, impressionantes e monumentais. Terão todos os atributos de um digno e muito bem cuidado cemitério. E cada projeto será parecidíssimo com o próximo. […] De cidade em cidade os esboços dos arquitetos irão evocar a mesma e monótona cena; aqui não há espaço para a individualidade nem para extravagâncias ou surpresas, nenhuma indicação de que aqui existe uma cidade com uma tradição e um sabor exclusivamente seus.

Estes projetos não revitalizarão os centros urbanos; eles os matarão. Pois todos operam sob diretrizes antagônicas aos interesses da cidade. Eles banem a rua. Eles banem a sua função. Eles banem a sua variedade. […] Quase sem exceção estes projetos apresentam uma solução padrão para todas as necessidades: comércio, medicina, cultura, governo – seja lá qual for a atividade, eles tomam uma parte da vida da cidade e, abstraindo-a da agitação e da confusão dos centros urbanos, a pré-determinam, como uma ilha autossuficiente, num magistral isolamento.

Certamente há muitas razões para refazer as áreas centrais – vendas a varejo em queda, bases tributárias em risco, estagnação do valor dos imóveis, tráfego e condições de estacionamento inviáveis, sistemas de circulação em massa deficientes, periferização de favelas. Mas sem querer minimizar estes graves problemas, é ainda mais decisivo refletir sobre o que faz com que o centro de uma cidade seja magnético, sobre o que seria capaz de injetar a jovialidade, a maravilha, o alegre burburinho que faz com que as pessoas queiram ir à cidade e permanecer por lá. Pois o magnetismo é o “x” da questão. Todos os valores dos centros urbanos derivam disto. Criar neles uma atmosfera de urbanidade e exuberância não é um objetivo frívolo.

Estamos nos tornando demasiado solenes em relação à zona central. Os arquitetos, os urbanistas – e os empresários – foram tomados por sonhos de ordem, todos fascinados com suas maquetes e suas vastas panorâmicas. Este é um jeito de lidar com a realidade por delegação, de modo vicário, e é, infelizmente, dominante em nossos dias: primeiro vêm os prédios, pois o objetivo é refazer a cidade de modo que ela se encaixe no conceito abstrato do que, pela lógica, ela deveria ser. Mas pela lógica de quem? A lógica dos projetos é a lógica de crianças egocêntricas, brincando com suas lindas quadras e quarteirões e gritando “Olhem só o que eu fiz!” – um ponto de vista muito cultivado em nossas escolas de arquitetura e de desenho industrial. E os cidadãos, que deveriam ser aqueles que realmente entendem do negócio, estão tão fascinados com o puro processo de reconstrução, que os resultados concretos acabam por se tornar secundários.

Com tal abordagem, os resultados concretos serão tão úteis para a cidade quanto as relíquias datadas do movimento City Beatiful, que nos primeiros anos deste século iria rejuvenescer a cidade transformando-a num imenso parque, espaçoso e monumental. Pois a verdade é que a complexidade e a vida subjacentes que, ao fim e ao cabo, fazem com que valha a pena reformar os centros urbanos, jamais podem ser promovidas artificialmente. Ninguém pode saber o que funcionará para as nossas cidades olhando para os bulevares de Paris, como as pessoas do City Beatiful fizeram; e ninguém encontrará a solução olhando para os condomínios e bairros residenciais das cidades-jardim americanas afastadas dos centros urbanos, nem manipulando maquetes, nem inventando cidades dos sonhos.

Você precisa sair e andar. Ande, e você verá que muitas das pressuposições das quais todos estes projetos dependem são visivelmente erradas. Você verá, por exemplo, que um centro institucional digno e bem mantido não necessariamente traz melhoras aos seus arredores. […] Você verá que a amenidade típica dos bairros residenciais afastados não é o que as pessoas buscam nas regiões centrais. […]

Você verá que a descentralização não faz parte da natureza dos centros urbanos. Note o quão incrivelmente pequenos são os seus espaços; o quão abruptamente eles dão lugar, fora do seu pequeno e superpoderoso núcleo, a áreas pouco utilizadas. Sua tendência não é a de se evadir, mas de se tornar mais denso, mais compacto. E tal tendência, por sua vez, não é um mero resquício do passado; o número de pessoas trabalhando dentro dos núcleos está aumentando e, dado o longo período de crescimento do trabalho de tipo corporativo, o número será cada vez maior. A tendência a se tornarem mais densos é uma qualidade fundamental dos centros urbanos e ela persiste por boas e sensatas razões.

Se você sair e andar, você verá todos os tipos de sinais. Por que o centro da cidade é uma mistura tão grande de coisas? […] Por que uma boa churrascaria está geralmente num edifício antigo? Por que os quarteirões menores tendem a ser mais movimentados do que os mais espaçados?

É a premissa deste artigo que a melhor maneira de se fazer planos e projetos para os centros urbanos é ver como as pessoas os utilizam hoje; buscar os seus pontos fortes, explorá-los e reforçá-los. Não existe uma lógica que possa ser sobreposta à cidade; as pessoas fazem a lógica, e é em favor delas, e não dos edifícios, que devemos moldar nossos projetos. Isto não significa se resignar ao presente; os centros urbanos realmente precisam de uma revisão; eles são sujos, são congestionados. Mas há também as coisas certas, e pela boa e velha observação podemos ver quais são. Podemos ver o que as pessoas gostam.

[…]

A extraordinária complexidade e vivacidade dos centros urbanos jamais poderá ser criada pela lógica abstrata de um punhado de homens. Os centros urbanos têm essa capacidade de oferecer algo para todos somente porque foram criados por todos. E assim deveria ser no futuro; os urbanistas e arquitetos têm uma contribuição vital a fazer, mas a contribuição do cidadão é ainda mais vital. Afinal de contas, é a sua cidade; sua tarefa não é simplesmente vender projetos confeccionados por outros, mas sim botar, ele mesmo, a mão na massa do planejamento urbano.

Ele não precisa ser um urbanista ou um arquiteto, nem arrogar as suas funções, para fazer as perguntas certas:

– Como novos edifícios ou projetos potencializam as qualidades únicas das cidades? Acaso a cidade é margeada por algum rio, lago ou mar que possa ser aproveitado? Alguma topografia incomum?

– Como a cidade pode coligar os velhos edifícios aos novos, de modo que cada um complemente o outro reforçando a característica da continuidade que uma cidade deveria ter?

– Os novos projetos podem ser conectados às ruas da cidade? Os melhores terrenos talvez estejam fora da região central – mas quão longe? Acaso a escolha do local do empreendimento antecipa um crescimento normal ou ele está tão afastado que acabará por não ganhar nenhum suporte da região central e tampouco lhe dará algum?

– O novo edifício explora as qualidades mais marcantes da rua – ou virtualmente oblitera a rua?

– O novo projeto mistura todos os tipos de atividades conjugadas, ou equivocadamente as segrega?

Em uma palavra, a cidade será de algum modo divertida? Nisto o cidadão pode ser um perito de primeira categoria; tudo o que precisa é de um olho observador, de curiosidade em relação às pessoas, e de uma predisposição a caminhar. Ele deveria andar não somente pelas ruas de sua própria cidade, mas de qualquer cidade que venha a visitar.

Sempre que tiver a oportunidade, ele deveria insistir em uma hora de caminhada pelo parque mais agradável, pela praça pública mais interessante da cidade, e onde houver um banco à mão ele deveria se sentar e observar as pessoas por alguns instantes. Ele compreenderá ainda mais a sua própria cidade – e talvez roube uma ou outra ideia.

Deixemos que os cidadãos decidam quais resultados finais querem atingir, e que, assim o fazendo, eles adaptem o maquinário urbanístico a estes propósitos. Se novas leis são necessárias, eles poderão se mobilizar para implementá-las. […] Com efeito, os cidadãos de todas as metrópoles que estiverem planejando grandes reestruturações devem pressionar as autoridades rumo a uma legislação especial.

Que extraordinário desafio à nossa frente! Raras vezes no passado o cidadão teve tamanha oportunidade de remodelar a cidade, e de fazer dela o tipo de cidade que ele gosta e que os outros também gostarão. Se isso significa abrir espaço para incongruências, vulgaridades e extravagâncias, isto é parte do desafio, não o problema.

Projetar uma cidade dos sonhos é fácil; reedificar uma cidade viva exige imaginação.

 

Imagem: Piazza d’Italia con la Torre Rossa, óleo sobre tela de Giorgio de Chirico, 1943, coleção privada. 
Tradução: Marcelo Consentino
Interpretação: Zeza Mota
Original: Downtown is for People